Introdução ao tema: Família em debate
Introdução ao tema: Família em debate.
A discussão sobre a família, enquanto porta de entrada para compreensão de uma sociedade, começa exatamente com o questionamento sobre o significado do termo família e sobre o estatuto teórico que damos a este.
Portanto, se temos um novo perfil de família revisitamos essa porta de entrada que já nos dá acesso a uma nova sociedade, cujos os dados estatísticos nos faz deduzir por mudanças sociais, econômicas, políticas e jurídicas de grande relevo.
Delimitar o conceito de família significa delimitar um grupo concreto composto de certo número de pessoas ligadas por consaguinidade ou vínculos e que ocupam lugares diferentes numa hierarquia interna de poder e de papéis.
Ou trata-se de uma representação social que os diversos grupos e sociedades fazem das relações de aliança e de consaguinidade, sendo, nesse sentido, não é uma realidade positiva e visível, mas uma realidade simbólica, e portanto, mais construída que expressa, produzindo, reproduzindo e legitimando valores que transcendem as fronteiras do grupo, uma mentalidade e uma maneira de se situar na vida.
É praticamente inevitável discutir a questão do estatuto teórico do termo família sem recorrer aos dados empíricos da realidade. Isto, por paradoxal que possa parecer à primeira vista, não se deve a nenhum recurso discursivo, mas sim à postura de que toda teoria deve dar conta e integrar estes dados.
De qualquer forma, devemos conjugar os fatos empíricos e os simbólicos, dentro da concepção de que a realidade é constituída de ambos. Além disso, numa sociedade em que se percebe historicamente, é importante levar em conta a inserção desses fatos numa perspectiva de grandes períodos históricos.
Cogitar sobre a família no Brasil implica necessariamente em se remeter a uma formulação já clássica sobre o tema que é a de família patriarcal elaborada por Gilberto Freyre .
Em “Casa-Grande & Senzala” como em seus livros subsequentes. Freyre delineia o perfil da família patriarcal brasileira no período colonial, e nos períodos posteriores (Sobrados e mocambos ). Esse perfil tem sido objeto de várias leituras e interpretações, dentre as quais, tendo-se em vista o debate sobre o estatuto teórico possível para o termo família, podemos destacar basicamente duas.
A primeira leitura do perfil gilbertiano de família patriarcal brasileira reivindica a comprovação dos argumentos de Freyre no sentido de testá-los enquanto válidos para explicar o que poderíamos chamar de organização familiar. As pesquisas históricas particulamente as referentes ao sul permitem que se argumente contra os dados levantados por Freyre para a elaboração da arqueologia da família brasileira.
O que sugere uma série de questões como a abrangência da família patriarcal brasileira para o Brasil como um todo. O que nos leva a uma relativização do modelo gilbertiano que o transformaria numa crônica de algumas famílias recifenses e um mito para o restante do Brasil colonial. Um mito que, tendo sido construído no contexto da década de 20 e 30 nos induz a outras indagações sobre o modelo de família como uma constução ideológica das primeiras décadas do século XX e sem base empírica alguma na história.
Numa segunda leitura de Gilberto Freyre interpreta seu pefil de família patriarcal brasileira como uma construção ideológica que, constituída de traços básicos do comportamento familiar, serve de referência para a prática no que tange a padrões de relações afetivas, sexuais, de solidariedade e de hostilidade.
Assim, o modelo retratado por Freyre aparece não propriamente como descrição de uma família brasileira, mas como uma representação desta. Enfim, “tudo mundo conhece seu lugar” está a cada momento sendo subvertida, real ou aparentemente, por força de favores entre pessoas hierarquizadas. Assim o patriarcalismo tece uma estrutura de relações entre desiguais: pais e filhos, homem e mulher, branco e negro, senhor e escravo, senhor e agregado e assim por diante. As contribuições de Angela Mendes de Almeida e Roberto Da Matta situam-se mais dentro desta segunda leitura.
Assim, o modelo gilbertiano sintetiza a lógica das decisões familiares no tocante aos processos de perfilhamento, divórcio, herança e alforria, processos exemplares para se perceber claramente a distinção entre o bem e o mal, ou seja, entre o legítimo e o ilegítimo.
Os livros de memória e de histórias familiares também permitiriam esse tipo de constatação ao revelarem os sentimentos de sucesso ou insucesso medidos em valores, como os ressaltados por Freyre.
Enquanto estrutura de relações entre desiguais, o modelo gilbertiano também é tomado como instrumento importante para pensar a sociedade brasileira contemporânea, não somente no tocante à mentalidade que rege a vida familiar, mas inclusive à ética social e política abrangente.
Muitas situações em que se vivencia a infelicidade, seja definida de forma implícita ou explicitamente por oposição a valores tidos como positivos, tais como: ser poderoso, ter amigos poderosos, arranjar marido, ter um marido que sustenta a casa, e, assim pod diante, como se a realidade ou a sorte de cada um estivesse em desacordo com o que deveria ser com o modelo, com o ideal de homem, de mulher, de relação entre homem e mulher, entre senhor e escravo, entre diferentes.
O patriarcalismo retratado revela a maneira sui generis de exercer a exploração e a subordinação: a brandura advinda da intimidade entre superiores e inferiores.
De modo que todos manuseiam dois códigos a um só tempo: todos são desiguais mas simultaneamente aparecem como iguais. A brandura da intimidade entre superiores e inferiores.
Essas duas interpretações da obra de Gilberto Freyre são exemplares de dois dos planos de análise possíveis para o tema família brasileira. A opção por um desses planos não garante de per si, a solução de todas as questões atinentes ao tema, pois ambos têm suas limitações.
Se tomarmos a família enquanto um fato empírico podemos dar conta da diversidade de formas de organização familiar ao longo do tempo, nas diferentes regiões e segmentos sociais. Com isso, aportaríamos na relativização de todas as formulações de ordem mais geral e no limite nenhuma teoria sobre família seria possível. Nenhum conhecimento seria atingível pois cada caso seria um caso, cada período histórico seria único, cada região uma região, cada grupo um grupo e assim por diante.
Essa corrente, portanto, se por um lado enriquece o tema com cuidadosas análises descritivas e levantamentos hitóricos, esquiva-se, pela forma mesma em que o objeto de estudo é construído, tanto de explicar a diversidade e a mudança histórica como tecer um fio que conecte a diversidade e história.
No limite, a história só seria possível numa microordem, na ordem do singular. Por outro lado, no tema família, o aspecto de representação social, lança-se num problema complexo das ciências sociais que é o da intrincada articulação entre o real empírico e a prática e o real simbólico – a ideologia.
Para o caso da família patriarcal de Freyre a indagação é: como esse modelo pode sustentar-se enquanto ideal para uma realidade empírica polimorfa, onde em grande número as famílias se organizam de modo tão díspar como o descrito?
Em primeiro lugar, argumenta-se que os modelos, como é o caso do modelo gilbertiano, não se propõem retratar a realidade, como esta é, mas sim, como esta é pensada e vivda. Nesse sentido, um modelo não é algo dado, mas algo construído.
A validade da construção é tanto maior quanto mais questões ela for capaz de resolver de modo a harmonizar as contradições. Assim, as difrenças de organização e as mudanças materiais não significam automaticamente uma alteração na forma de pensar e articular as contradições.
No caso da família brasileira, o modelo gilbertiano aparece como instrumento pertinente de análise ideológica, na medida em que é uma construção que encampa uma série de contradições existentes não só dentro das famílias, mas que as transcendem, como são as questões econômicas, afetivas, sexuais, raciais e de poder.
Em segundo lugar, o argumento de que o fato ideológico é um fato construído socialmente permite que se investigue a sociedade enquanto conjunto de agências formuladoras e articuladoras de padrões de comportamento e de mentalidade.
Essa linha interpretativa que privilegia no tema família em seu conteúdo ideológico tem, a nosso ver, o grande mérito de possibilitar o conhecimento de um parâmetro comum de troda forma de diversidade de organização familiar, assim como permite perceber o fio condutor das mudanças ao longo do tempo.
Dela pode surgir como interesse a reflexão sobre a questão da modernidade na sociedade brasileira. Ao lado da modernização da base material da sociedade, podemos, através desse veio interpretativbo, investigar o processo pelo qual as mudanças concretas são articuladas como noções e valores já enraizados no imaginário social.
Dessa forma, podemos perceber como as construções ideológicas conjugam valores tão díspares, como são por exemplo, os ideais liberais dos século XVIII e XIX e o escravismo. Ou ainda, a modernização do Estado nos termos de seus aparatos formais e legais depois de 1930 e o seu descompasso com a sociedade civil.
Na tradição ocidental, a questão da modernidade tem como núcleo central uma detrminada noção de indivíduo, livre de laços impostos pelas relações de cunho pessoal. À realidade histórica do advento do capitalismo ocidental, que transforma o homem em força de trabalho livre para o mercado, corresponde uma noção de indivíduo para quem a sociedade existe como espaço de plena realização, visto estarem banidos os entraves de ordem pessoal.
Em tese, todas as oportunidades passam a ser possíveis para todos e todos têm acesso a estas, independentemente de linhagem ou de vassalagem.
O indivíduo aparece como valendo por si mesmo e acaba por constituir objeto de saberes específicos como a psicologia, a sociologia e a psicanálise, cujas atenções estão voltadas para ele enquanto unidade aritculadora de razão, de sentimento, de criação, de sexualidade e de construção de uma imagem de si e dos outros.
A linhagem, o grupo, a nação cedem lugar ao indivíduo enquanto sujeito da história e sujeito de direitos. Essa noção de indivíduo como valor social, livre do destino que lhe seria imposto por uma linhagem, está associada a uma determinada visão de família: a família nuclear burguesa, repreentada como espaço privado e atomizado da vida social.
Por constituir um espaço reservado à intimidade, onde se realizam a afetividade, a sexualidade, a família nuclear burguesa desfruta de um peso privilegiado na configuração do indivíduo e no processo de construção de sua subjetividade.
A formulação desta problemática sugere uam série de questionamentos. Primeiro relativo aos termos indivíduo e subjetividade. Pergunta-se se essas noções só seriam possíveis em sociedades, que, como as ocidentais modernas, que conhecem o processo de individualização da força de trabalho e de consumo. Isso é contra-argumentado na medida em que as investigações de cunho antropológico revelam que, mesmo em sociedades e culturas em que o coletivo tem primazia sobre o particular, pode-se constatar uma percepção de indivíduo.
No mesmo sentido, os trabalhos históricos revelam nos períodos anteriores à emergência do capitalismo no Ocidente, perídoso que vêm desde a Antiguidade clássica, a existência da percepção de indivíduo, revestida, evidentemente, de conteúdos diferentes do de sua noção moderna.
Isso nos conduz a pensar a diferença entre o indivíduo e individualismo, entendido este enquanto noção de indivíduo como valor social, mola estruturadora da cultura.
O mesmo argumento é usado em relação à subjetividade, isto é, embora a questão da subjetividade esteja vinculada à de indivíduo, tal como definido modernamente na civilização ocidental, sua existência não é exclusiva da modernidade e sua percepção é diferenciada historicamente.
Em segundo lugar, admite-se que, apesar não ser exclusiva, a família é agência privilegiado no processo de construção da subjetividade. Em geral, esta afirmação está focada numa determinada concepção de família, a nuclear burguesa, constituída de pai-mãe-e-filhos.
Esta interpretação nos induz a mais algumas indagações. De um lado, pode-se perguntar se esse papel de agência privilegiada não deve ser relativizado ao abordarmos sociedades anteriores à emergência do capitalismo, em que o trinômino pai-mãe-e-filhos era ofuscado por uma ampla e densa teia de relações sociais que o extravasavam?
De outro lado, pergunta-se se esse papel não é nuançado também nas sociedades contemporâneas em que a família nuclear é complementada ou mesmo secundarizada por relações com amigos, vizinhos e criados.
Além disso, cabe lembrar o caso das sociedades tribais, nas quais as relações triangulares não seriam instituintes da subjetividade. Ou seja, qual o peso da família nuclear em sociedades ou segmentos sociais nos quais a significação desse grupo é apenas a unidade reprodutiva, sendo que o espaço da afetividade, da sexualidade e da emoção é estruturado diferentemente?
Refletindo sobre a formulação triangular edipiana de construção da subjetividade, essas situações em que a representação de família é mais abrangente do que a família nuclear implicariam numa adaptação do modelo interpretativo?
Como se vê, essa problemática realmente abarca diversas perspectivas não necessariamente excludentes. Pensando a família no Brasil concluímos que plural, diversa e complexa.
Introdução ao tema: Família em debate.
A discussão sobre a família, enquanto porta de entrada para compreensão de uma sociedade, começa exatamente com o questionamento sobre o significado do termo família e sobre o estatuto teórico que damos a este.
Portanto, se temos um novo perfil de família revisitamos essa porta de entrada que já nos dá acesso a uma nova sociedade, cujos os dados estatísticos nos faz deduzir por mudanças sociais, econômicas, políticas e jurídicas de grande relevo.
Delimitar o conceito de família significa delimitar um grupo concreto composto de certo número de pessoas ligadas por consaguinidade ou vínculos e que ocupam lugares diferentes numa hierarquia interna de poder e de papéis.
Ou trata-se de uma representação social que os diversos grupos e sociedades fazem das relações de aliança e de consaguinidade, sendo, nesse sentido, não é uma realidade positiva e visível, mas uma realidade simbólica, e portanto, mais construída que expressa, produzindo, reproduzindo e legitimando valores que transcendem as fronteiras do grupo, uma mentalidade e uma maneira de se situar na vida.
É praticamente inevitável discutir a questão do estatuto teórico do termo família sem recorrer aos dados empíricos da realidade. Isto, por paradoxal que possa parecer à primeira vista, não se deve a nenhum recurso discursivo, mas sim à postura de que toda teoria deve dar conta e integrar estes dados.
De qualquer forma, devemos conjugar os fatos empíricos e os simbólicos, dentro da concepção de que a realidade é constituída de ambos. Além disso, numa sociedade em que se percebe historicamente, é importante levar em conta a inserção desses fatos numa perspectiva de grandes períodos históricos.
Cogitar sobre a família no Brasil implica necessariamente em se remeter a uma formulação já clássica sobre o tema que é a de família patriarcal elaborada por Gilberto Freyre .
Em “Casa-Grande & Senzala” como em seus livros subsequentes. Freyre delineia o perfil da família patriarcal brasileira no período colonial, e nos períodos posteriores (Sobrados e mocambos ). Esse perfil tem sido objeto de várias leituras e interpretações, dentre as quais, tendo-se em vista o debate sobre o estatuto teórico possível para o termo família, podemos destacar basicamente duas.
A primeira leitura do perfil gilbertiano de família patriarcal brasileira reivindica a comprovação dos argumentos de Freyre no sentido de testá-los enquanto válidos para explicar o que poderíamos chamar de organização familiar. As pesquisas históricas particulamente as referentes ao sul permitem que se argumente contra os dados levantados por Freyre para a elaboração da arqueologia da família brasileira.
O que sugere uma série de questões como a abrangência da família patriarcal brasileira para o Brasil como um todo. O que nos leva a uma relativização do modelo gilbertiano que o transformaria numa crônica de algumas famílias recifenses e um mito para o restante do Brasil colonial. Um mito que, tendo sido construído no contexto da década de 20 e 30 nos induz a outras indagações sobre o modelo de família como uma constução ideológica das primeiras décadas do século XX e sem base empírica alguma na história.
Numa segunda leitura de Gilberto Freyre interpreta seu pefil de família patriarcal brasileira como uma construção ideológica que, constituída de traços básicos do comportamento familiar, serve de referência para a prática no que tange a padrões de relações afetivas, sexuais, de solidariedade e de hostilidade.
Assim, o modelo retratado por Freyre aparece não propriamente como descrição de uma família brasileira, mas como uma representação desta. Enfim, “tudo mundo conhece seu lugar” está a cada momento sendo subvertida, real ou aparentemente, por força de favores entre pessoas hierarquizadas. Assim o patriarcalismo tece uma estrutura de relações entre desiguais: pais e filhos, homem e mulher, branco e negro, senhor e escravo, senhor e agregado e assim por diante. As contribuições de Angela Mendes de Almeida e Roberto Da Matta situam-se mais dentro desta segunda leitura.
Assim, o modelo gilbertiano sintetiza a lógica das decisões familiares no tocante aos processos de perfilhamento, divórcio, herança e alforria, processos exemplares para se perceber claramente a distinção entre o bem e o mal, ou seja, entre o legítimo e o ilegítimo.
Os livros de memória e de histórias familiares também permitiriam esse tipo de constatação ao revelarem os sentimentos de sucesso ou insucesso medidos em valores, como os ressaltados por Freyre.
Enquanto estrutura de relações entre desiguais, o modelo gilbertiano também é tomado como instrumento importante para pensar a sociedade brasileira contemporânea, não somente no tocante à mentalidade que rege a vida familiar, mas inclusive à ética social e política abrangente.
Muitas situações em que se vivencia a infelicidade, seja definida de forma implícita ou explicitamente por oposição a valores tidos como positivos, tais como: ser poderoso, ter amigos poderosos, arranjar marido, ter um marido que sustenta a casa, e, assim pod diante, como se a realidade ou a sorte de cada um estivesse em desacordo com o que deveria ser com o modelo, com o ideal de homem, de mulher, de relação entre homem e mulher, entre senhor e escravo, entre diferentes.
O patriarcalismo retratado revela a maneira sui generis de exercer a exploração e a subordinação: a brandura advinda da intimidade entre superiores e inferiores.
De modo que todos manuseiam dois códigos a um só tempo: todos são desiguais mas simultaneamente aparecem como iguais. A brandura da intimidade entre superiores e inferiores.
Essas duas interpretações da obra de Gilberto Freyre são exemplares de dois dos planos de análise possíveis para o tema família brasileira. A opção por um desses planos não garante de per si, a solução de todas as questões atinentes ao tema, pois ambos têm suas limitações.
Se tomarmos a família enquanto um fato empírico podemos dar conta da diversidade de formas de organização familiar ao longo do tempo, nas diferentes regiões e segmentos sociais. Com isso, aportaríamos na relativização de todas as formulações de ordem mais geral e no limite nenhuma teoria sobre família seria possível. Nenhum conhecimento seria atingível pois cada caso seria um caso, cada período histórico seria único, cada região uma região, cada grupo um grupo e assim por diante.
Essa corrente, portanto, se por um lado enriquece o tema com cuidadosas análises descritivas e levantamentos hitóricos, esquiva-se, pela forma mesma em que o objeto de estudo é construído, tanto de explicar a diversidade e a mudança histórica como tecer um fio que conecte a diversidade e história.
No limite, a história só seria possível numa microordem, na ordem do singular. Por outro lado, no tema família, o aspecto de representação social, lança-se num problema complexo das ciências sociais que é o da intrincada articulação entre o real empírico e a prática e o real simbólico – a ideologia.
Para o caso da família patriarcal de Freyre a indagação é: como esse modelo pode sustentar-se enquanto ideal para uma realidade empírica polimorfa, onde em grande número as famílias se organizam de modo tão díspar como o descrito?
Em primeiro lugar, argumenta-se que os modelos, como é o caso do modelo gilbertiano, não se propõem retratar a realidade, como esta é, mas sim, como esta é pensada e vivda. Nesse sentido, um modelo não é algo dado, mas algo construído.
A validade da construção é tanto maior quanto mais questões ela for capaz de resolver de modo a harmonizar as contradições. Assim, as difrenças de organização e as mudanças materiais não significam automaticamente uma alteração na forma de pensar e articular as contradições.
No caso da família brasileira, o modelo gilbertiano aparece como instrumento pertinente de análise ideológica, na medida em que é uma construção que encampa uma série de contradições existentes não só dentro das famílias, mas que as transcendem, como são as questões econômicas, afetivas, sexuais, raciais e de poder.
Em segundo lugar, o argumento de que o fato ideológico é um fato construído socialmente permite que se investigue a sociedade enquanto conjunto de agências formuladoras e articuladoras de padrões de comportamento e de mentalidade.
Essa linha interpretativa que privilegia no tema família em seu conteúdo ideológico tem, a nosso ver, o grande mérito de possibilitar o conhecimento de um parâmetro comum de troda forma de diversidade de organização familiar, assim como permite perceber o fio condutor das mudanças ao longo do tempo.
Dela pode surgir como interesse a reflexão sobre a questão da modernidade na sociedade brasileira. Ao lado da modernização da base material da sociedade, podemos, através desse veio interpretativbo, investigar o processo pelo qual as mudanças concretas são articuladas como noções e valores já enraizados no imaginário social.
Dessa forma, podemos perceber como as construções ideológicas conjugam valores tão díspares, como são por exemplo, os ideais liberais dos século XVIII e XIX e o escravismo. Ou ainda, a modernização do Estado nos termos de seus aparatos formais e legais depois de 1930 e o seu descompasso com a sociedade civil.
Na tradição ocidental, a questão da modernidade tem como núcleo central uma detrminada noção de indivíduo, livre de laços impostos pelas relações de cunho pessoal. À realidade histórica do advento do capitalismo ocidental, que transforma o homem em força de trabalho livre para o mercado, corresponde uma noção de indivíduo para quem a sociedade existe como espaço de plena realização, visto estarem banidos os entraves de ordem pessoal.
Em tese, todas as oportunidades passam a ser possíveis para todos e todos têm acesso a estas, independentemente de linhagem ou de vassalagem.
O indivíduo aparece como valendo por si mesmo e acaba por constituir objeto de saberes específicos como a psicologia, a sociologia e a psicanálise, cujas atenções estão voltadas para ele enquanto unidade aritculadora de razão, de sentimento, de criação, de sexualidade e de construção de uma imagem de si e dos outros.
A linhagem, o grupo, a nação cedem lugar ao indivíduo enquanto sujeito da história e sujeito de direitos. Essa noção de indivíduo como valor social, livre do destino que lhe seria imposto por uma linhagem, está associada a uma determinada visão de família: a família nuclear burguesa, repreentada como espaço privado e atomizado da vida social.
Por constituir um espaço reservado à intimidade, onde se realizam a afetividade, a sexualidade, a família nuclear burguesa desfruta de um peso privilegiado na configuração do indivíduo e no processo de construção de sua subjetividade.
A formulação desta problemática sugere uam série de questionamentos. Primeiro relativo aos termos indivíduo e subjetividade. Pergunta-se se essas noções só seriam possíveis em sociedades, que, como as ocidentais modernas, que conhecem o processo de individualização da força de trabalho e de consumo. Isso é contra-argumentado na medida em que as investigações de cunho antropológico revelam que, mesmo em sociedades e culturas em que o coletivo tem primazia sobre o particular, pode-se constatar uma percepção de indivíduo.
No mesmo sentido, os trabalhos históricos revelam nos períodos anteriores à emergência do capitalismo no Ocidente, perídoso que vêm desde a Antiguidade clássica, a existência da percepção de indivíduo, revestida, evidentemente, de conteúdos diferentes do de sua noção moderna.
Isso nos conduz a pensar a diferença entre o indivíduo e individualismo, entendido este enquanto noção de indivíduo como valor social, mola estruturadora da cultura.
O mesmo argumento é usado em relação à subjetividade, isto é, embora a questão da subjetividade esteja vinculada à de indivíduo, tal como definido modernamente na civilização ocidental, sua existência não é exclusiva da modernidade e sua percepção é diferenciada historicamente.
Em segundo lugar, admite-se que, apesar não ser exclusiva, a família é agência privilegiado no processo de construção da subjetividade. Em geral, esta afirmação está focada numa determinada concepção de família, a nuclear burguesa, constituída de pai-mãe-e-filhos.
Esta interpretação nos induz a mais algumas indagações. De um lado, pode-se perguntar se esse papel de agência privilegiada não deve ser relativizado ao abordarmos sociedades anteriores à emergência do capitalismo, em que o trinômino pai-mãe-e-filhos era ofuscado por uma ampla e densa teia de relações sociais que o extravasavam?
De outro lado, pergunta-se se esse papel não é nuançado também nas sociedades contemporâneas em que a família nuclear é complementada ou mesmo secundarizada por relações com amigos, vizinhos e criados.
Além disso, cabe lembrar o caso das sociedades tribais, nas quais as relações triangulares não seriam instituintes da subjetividade. Ou seja, qual o peso da família nuclear em sociedades ou segmentos sociais nos quais a significação desse grupo é apenas a unidade reprodutiva, sendo que o espaço da afetividade, da sexualidade e da emoção é estruturado diferentemente?
Refletindo sobre a formulação triangular edipiana de construção da subjetividade, essas situações em que a representação de família é mais abrangente do que a família nuclear implicariam numa adaptação do modelo interpretativo?
Como se vê, essa problemática realmente abarca diversas perspectivas não necessariamente excludentes. Pensando a família no Brasil concluímos que plural, diversa e complexa.