Filhos da roda ou herdeiros do acaso
“A regra geral eram noites de profunda calada, na escura constância das quaes, se podia enxergar, a custo, vultos se esgueirando. Quem se aproximasse deles reconhecia mulheres, parteiras e curiosas, sob cuja mantilha se abrigavam crianças pequeninas. Iam depositá-las na Roda, receosas de serem castigadas.” (Escragnole, Dória . Publicado no Jornal do Commercio de 16 de janeiro de 1916).
As rodas dos enjeitados eram cilindros giratórios com grande cavidade lateral que se colocavam junto às portarias dos conventos. Existiam sobretudo nos mosteiros de clausura mas também em alguns conventos. Inicialmente serviam de meio de comunicação com o meio exterior ao convento. Pela abertura lateral, eram colocados objetos pelas pessoas que se encontravam no exterior do convento.
E, após a colocação do objeto, aquele que se encontrava fora tocava uma sineta e a irmã "rodeira”, no interior do convento, aí fazia a roda girar, retirando o que fora colocado ali.
Mais tarde, começaram a por crianças enjeitadas ou fruto de relações inconvenientes ou proibidas. Estes filhos de ninguém, eram na maioria das vezes, filhos de raparigas pobres, e resultado de conjunções carnais pecaminosas, ou mesmo crianças encontradas por eremitas que as recolhiam e as educavam até as colocarem na roda.
Por vezes, as mães dos enjeitados deixavam algumas marcas identificativas, como fitinhas, pequenos bordados com monogramas e medalhinhas, a fim, de mais tarde, um dia poderem os recuperar.
Quando atingiam a idade de aprendizagem, eram as crianças transferidas para a Casa Pia, uma instituição de acolhimento que as educava e então as preparava para a vida adulta. Por ser tão utilizada, a roda acabou por se tornar legítima chegando mesmo a ser oficializada no fim do século XVIII e receber a denominação de
Roda dos Expostos ou dos Enjeitados. O intendente geral da Polícia do Reino, Pina Manique, reconheceu oficialmente a instituição da roda através da Circular de 24 de maio de 1783, com o objetivo de pôr fim aos infanticídios e acabar com o tenebroso comércio ilegal de crianças portuguesas na raia, onde os espanhóis as vinham comprar.
A Roda dos enjeitados passou a existir também em todas as terras, vindo a perder sua importância e uso com o advento do Liberalismo em Portugal, na primeira metade do século XIX. Fonte: Infopédia [Em linha] Porto: Porto Editora, 2003-2014. [Consult. 1014-03-16]. Disponível em: http:// www.infopedia.pt/$roda-dos-enjeitados.>
Na época colonial e mesmo durante o Império, o exposto ou enjeitado eram termos usados na sociedade brasileira para designar a criança abandonada. Segundo o dicionário da língua portuguesa de Antonio de Morais Silva, edição de 1831, exposto correspondia àquele ou àquela que era abandonado (a) na Roda, aparelho, em geral de madeira, de formato cilíndrico, com um dos lados vazado, assentado num eixo que produzia um movimento rotativo, anexo a um asilo de menores.
Esse tipo de engrenagem permitia o ocultamento da identidade da pessoa que abandonava. A pessoa então lançava a criança na Roda e não estabelecia nenhum contato com que a recolhia dentro do estabelecimento. A manutenção do segredo sobre a origem social da criança resultava da relação promovida entre o abandono de crianças e amores ilícitos.
O espaço especialmente destinado para acolher as crianças visava a priori absorver os frutos de tais uniões. Com o tempo, tal espaço passou a ser utilizado por outros motivos, indivíduos das camadas populares, por exemplo, que abandonavam seus filhos na Roda por não possuir meios materiais de mantê-los e cria-los. A “Casa dos Expostos”, “Depósito de Expostos” e “Casa da Roda ” era as designações correntes no Brasil para indicar os asilos de menores abandonados.
Os primeiros asilos para menores surgiram nas cidades de Salvador e Rio de Janeiro durante o século XVIII. Em 1693, entretanto, uma carta régia fora enviada ao governador da Capitania do Rio de Janeiro, Antonio Paes de Sande, na qual se determinava que os expostos fossem criados a expensas dos cofres públicos.
Através dessa medida, os enjeitados deixariam de ser jogados nos adros das igrejas, nas portas das residências, nas ruas e praças, na dependência da caridade pública. É preciosa a obra de Ubaldo Soares, chamada de “O passado heroico da Casa dos Expostos”, Rio de Janeiro, publicada Fundação Romão de Mattos Duarte, 1959. Essa obra de um arquivista da Santa Casa da Misericórdia que descreveu as condições de abandono de crianças no Rio de Janeiro, no período que antecedeu a criação da Roda.
Durante mais de oitenta anos, porém, os termos da carta régia permaneceram completamente esquecidos. Somente em 1738, meio séculos depois que Romão de Mattos Duarte doou a quantia que permitia a fundação de estabelecimento voltado para o acolhimento e abrigo de crianças abandonadas na cidade do Rio de Janeiro. A partir desse momento, o benfeitor seria conhecido como “pai dos sem pais”.
A Casa dos Expostos fora criada dentro dos quadros da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. A irmandade da Misericórdia, mediante seu provedor, elegia três irmãos da ordem para o exercício das funções de procurador, tesoureiro e escrivão. A eles cumpria a supervisão dos bens pertencentes à Casa dos Expostos e sua administração financeira. Aos três irmãos, ainda competia, a escolha da regente, responsável pela organização interna do estabelecimento.
Na realidade, a Casa não possuía autonomia; os irmãos prestavam contas, por meio de relatórios e ofícios, à provedoria da Santa Casa. A maioria das decisões concernentes aos expostos era, em sua efetividade, submetida à aprovação da direção da Santa Casa.
A maioria das decisões concernentes aos expostos era, em sua efetividade, submetida à aprovação da direção da Santa Casa.
A organização da Casa dos Expostos se encaixava, portanto, no modelo que caracterizava o cuidado com populações carentes no Rio de Janeiro. A lógica que presidia a essa orientação se coadunava com uma prática caritativa-assistencial; o cuidado com populações “carentes” estava, assim, nas mãos de irmandades religiosas.
A história da assistência das Misericórdias de origem portuguesa tem-se assinalado pela pregação da caridade e solidariedade cristã. Essa regulamentação dos setores marginais da sociedade, moldada pelo religioso, pelo particular, distinguiu a ação da Santa Casa – exemplos são encontrados tanto na Casa dos Expostos quanto no recolhimento das órfãs, Hospital Geral, etc.
A partir de 1778, quarenta anos após sua fundação, a Casa dos Expostos passou a receber da Coroa portuguesa a dotação de 800$000 réis anuais. O pagamento das dotações, todavia, se caracterizou pela irregularidade e a sustentação da Roda, como de outros estabelecimentos da Santa Casa, prosseguiu mediante doações particulares.
Entre segmentos médios e altos da população era bastante comum o arrolamento em testamentos de doações para entidades religiosas. Por meio de certa simonia , a doação, o cristão buscava o perdão de seus pecados e alcançar uma morte mais tranquila, pagando o direito de entrada no reino dos céus. A lista dos benfeitores da Casa dos Expostos é longa e demonstra a importância desse tipo de prática na sociedade da época.
A Roda conheceu vários endereços, inicialmente quando de sua criação, esteve situada no Hospital Velho da Misericórdia, ficando até 1810 quando José Dias da Cruz, irmão da Misericórdia, legou o prédio na Rua da Misericórdia para abrir os “expostos”. Em 1821, foram providenciadas pela Mesa da Casa dos Expostos, duas casas pequenas nessa mesma rua, no sentido de aumentar e melhorar os alojamentos.
Já em 1840, durante a provedoria de José Clemente Pereira na Santa Casa, os “expostos” foram transferidos para uma casa situada na Rua de Santa Teresa. Ainda com José Clemente Pereira provedor, os “expostos” foram transferidos em 1850 para uma edificação na Rua da Lapa, no cais da Glória, permanecendo até 1860, quando foi transportada para a rua dos Barbonos, atual Evaristo da Veiga.
As mudanças de local da Roda tiveram lugar a partir do século XIX; até 1810 a Casa dos Expostos, segundo revelam os documentos e relatos, teve como endereço o Hospital Velho. Os sucessivos deslocamentos do estabelecimento denotam, por um lado, o aumento de crianças abandonadas. Por outro, manifesta, uma preocupação crescente que então despertara a mortalidade, de altas taxas, que atingia os “enjeitados” da Santa Casa. E, na expressão dessa preocupação, a medicina higienista tece um desempenho determinante.
As remoções da Roda decorriam de problemas definidos como higiênicos. Com a transferência se tentava libertar a Casa dos focos de doenças que, segundo os administradores e médicos, penetravam nas edificações, atingindo aqueles que as habitavam.
As causas estariam nas poucas janelas dos edifícios que impediam a livre circulação do ar. O ar, acreditava-se então, era o principal agente na transmissão de doenças: viciado, ele produziria fenômenos considerados mórbidos que apareciam com certa regularidade.
De fato, as sucessivas trocas de endereço parecem revelar tentativas de fuga, de escape à morte prematura das crianças. Buscava-se reduzir as altas taxas de mortalidade que atingiam uma percentagem quase sempre superior a cinquenta por cento.
A questão da mortalidade em asilos para menores foi uma preocupação constante não só no Brasil como também em outros países, como por exemplo, a França. A emergência de espaços destinados a abrigar crianças abandonadas, assim como a utilização do aparelho da roda, tem uma história similar em diferentes países.
No caso francês são relevantes para o estudo desta temática os trabalhos de J. Donzelot, A polícia das famílias, Rio de Janeiro, Graal, 1980, Jean-Louis Flandrin, Familles – Parenté, Maison, sexualité dans l’ancienne societé, Paris, Editions du Seuil, 1984; Pierre Chaunu, La civilisation de l’Europe des Lumière, Paris, Flammarion, 1982.
Muitos enjeitados constituíram família e acumularam fortunas. Um dos casos mais célebres na História do Brasil é o de Diogo Antônio Feijó, ou simplesmente regente Feijó, que nasceu em São Paulo em 1784 – período com altos índices de abandono – e se tornou um dos mais ilustres personagens do período regencial (1831-1840), sendo regente do Império de 1835 a 1837.
Mas houve um grande número de crianças que, depois de completarem sete anos, foram submetidas a duras condições de trabalho. Os diferentes destinos mostram que o abandono não estava, necessariamente, associado à marginalidade.
O estudo de uma instituição como a “Casa dos Expostos” implica na reflexão sobre determinado tipo moral que conduzia as relações familiares. Os asilos dos enjeitados emergiam na condição de reguladores dos possíveis desvios familiares um lugar para os filhos de uniões ilegítimas, os que não possuem história, os “sem família”.
No Brasil, esses estabelecimentos surgiam dentro da estrutura familiar colonial (os asilos para menores abandonados, os conventos e os recolhimentos para mulheres foram criados a partir do século XVIII). Surgiram em centros urbanos no bojo de um movimento de moralização de comportamentos femininos; visavam a preservação da honra de mulheres pertencentes aos segmentos médios e altos da população.
As mulheres destinadas, em princípio, para o casamento; as que escapavam ao matrimônio eram encaminhadas para ordens religiosas, onde tomavam o hábito, cortando, assim, os vínculos com o mundo exterior.
O regime de casamento prevalente, na colônia e em parte do século XIX, estava conduzido por meio de relações de interesses; pela aliança social da família. A instituição do dote adquiriu importância na regulação das trocas matrimoniais. A mulher sem dote estava fatalmente fadada a solteirice eterna ou ao não-casamento. Um homem branco, mesmo que de condição inferior, dificilmente se casaria com mulher, embora que branca, sem dote.
Pode perceber então a influência do dote nesse sociedade particularmente pela documentação da Santa Casa da Misericórdia. O recolhimento das órfãs, por exemplo, possuía um cofre expostas criadas no estabelecimento.
O cofre era mantido através de doações feitas geralmente em testamento para a dotação de órfãs e expostas. Dote e honra da mulher eram elementos que se confundiam na destinação ao casamento.
A procriação fora do casamento era alvo de recriminação e estava sujeita a sanções, tanto a nível religioso, como social, já que ambas as instâncias tendiam, neste caso específico, a se confundirem.
A fonte principal para a presente reflexão são as teses da Faculdade de Medicina sobre a Roda dos Expostos, produzidas entre 1845 e 1860. Como requisito para o término do curso de medicina, o candidato a médico deveria defender uma tese a partir de um dos pontos elaborados pela faculdade.
Dar-se-á destaque as partes que buscavam justificar a existência de estabelecimentos como a Roda. Através das justificativas médicas para a manutenção da Roda, há a construção de uma noção médico-higienista da mulher que abandonava o filho.
Por outro lado, em países como a França e Inglaterra teve início, nos anos 20 e 30 do século passado, um debate em torno da eficácia de instituições como a Roda a resolução dos impasses colocados pelo crescente abandono de crianças. Sociedades que defendiam, em contraponto à local, a eliminação da Roda, na medida em que a sua manutenção contribuiria para o aumento do abandono e não para a sua redução. Os asilos para crianças abandonadas eram, portanto, apontados, como exemplos de imoralidade.
Eles concorriam para o fomento da “improvidência” e do “crime” ao acolherem frutos de amores pecaminosos acelerando a depravação dos costumes e da moral. Duchatel e Lord Brougham figuravam, segundo os médicos declaram, como representantes dessas doutrinas que postulavam a eliminação da Roda.
Nesses países as modificações propiciadas pela revolução industrial capitalista deram sequência à aplicação de novas políticas, de maior racionalidade, no que tange às suas populações.
Nesse movimento, instituições vinculadas a uma estrutura mais tradicional remanescentes do Antigo Regime, eram alvos de críticas ferozes e extremadas. Na nova ordem com a hegemonia da burguesia, estabelecimentos como asilos para menores e os recolhimentos de mulheres eram, em suma, indicadores de caduquice e anacronismo. Costumes, hábitos e comportamentos transformavam-se, confluindo para um aburguesamento da vida social.
O Brasil, típico país de recente emancipação política (posto que ainda no início do século XIX partilhava ainda do estatuto da colônia) expressava o descompasso entre a organização social tradicional de base agrária e escravagista, e ideias e práticas de índole progressista.
Do ângulo do discurso médico sobre Casa dos Expostos, contudo, a sua racionalidade se perdia. Posto que buscasse na religião a fonte de principal inspiração, as teses eram frequentes na utilização de noções e princípios cristãos.
Além da caridade, a Roda exprimia uma forma de ocultamento das condições em que a criança era gerada. O “exposto” era provavelmente fruto de relações ilícitas, e encontrava na Roda um lugar de socorro e acolhida. Os asilos para “enjeitados” constituíam, como é possível observar, um meio de preservação da família e de salvação da sociedade.
A deterioração dos costumes produziria, segundo a maioria dos autores e teses, o afrouxamento dos laços familiares, arrastando a sociedade para corrupção e a miséria.
Salvar a mãe, salvar o filho, e, enfim salvar a sociedade. Defendia-se a preservação da ordem social. Os higienistas da época concebiam uma natureza frágil da mulher e passiva. Onde desponta claramente a mulher como vítima do homem. Ao homem cabia a autoria do crime; e conduzia a mulher que abandonava o filho, primeiramente em seu ventre, e depois, na Roda.
Evidentemente o pensamento médico sobre a Casa dos Exposto ora apresentado indicava a relação com o abandono infantil em face do contexto da velha ordem colonial.
Concluímos, infelizmente que a produção médica sobre a Roda esteve muito caracterizada pela ambiguidade, pela descontinuidade de discurso e por abordar dilemas e impasses que deram tanto sentido à formação social e histórica da sociedade brasileira.
Em 2008, o deputado do PT Eduardo Valverde (de Rondônia) encaminhou projeto de lei 2.747 que pretendia criar estruturas hospitalares para legalizar o parto anônimo. Porém, a proposta fora rejeitada pela Comissão de Seguridade Social e Família e pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, mas ainda deve ser apreciada pela Câmara dos Deputados. Uma das opositoras ao projeto, aponta que permitir o anonimato é fortalecer a ideia de paternidade ou maternidade irresponsável e negar o direito fundamental de conhecer suas origens a criança.
Referências:
GONÇALVES, Margareth Almeida; ALMEIDA, Angela Mendes (org.). Pensando A Família no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRRJ, 1987.
ALVES, M. S. R. A “Casa da Roda” de Cabo Frio no período de 1830 a 1900. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós- Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana, UERJ, 2009.
ARANTES, E. M. de M. (no prelo). Santa Casa de Misericórdia. In Jacó-Vilela, A. M. (Org.), Dicionário histórico de instituições de psicologia no Brasil. Rio de Janeiro: Imago. 2010.
ZARUR, D. (2003). Educandário Romão de Mattos Duarte. Rio de Janeiro: Binus Artes Gráficas Ltda., 2003.
FRANCO, Renato. Desassistidas em Minas: a exposição de crianças em Vila Rica, século XVIII. Niterói: Editora UFF, 2006.
VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias abandonadas – assistência à criança de camadas populares no Rio de Janeiro
e em Salvador – séculos XVIII e XIX. São Paulo: Papirus, 1999.
“A regra geral eram noites de profunda calada, na escura constância das quaes, se podia enxergar, a custo, vultos se esgueirando. Quem se aproximasse deles reconhecia mulheres, parteiras e curiosas, sob cuja mantilha se abrigavam crianças pequeninas. Iam depositá-las na Roda, receosas de serem castigadas.” (Escragnole, Dória . Publicado no Jornal do Commercio de 16 de janeiro de 1916).
As rodas dos enjeitados eram cilindros giratórios com grande cavidade lateral que se colocavam junto às portarias dos conventos. Existiam sobretudo nos mosteiros de clausura mas também em alguns conventos. Inicialmente serviam de meio de comunicação com o meio exterior ao convento. Pela abertura lateral, eram colocados objetos pelas pessoas que se encontravam no exterior do convento.
E, após a colocação do objeto, aquele que se encontrava fora tocava uma sineta e a irmã "rodeira”, no interior do convento, aí fazia a roda girar, retirando o que fora colocado ali.
Mais tarde, começaram a por crianças enjeitadas ou fruto de relações inconvenientes ou proibidas. Estes filhos de ninguém, eram na maioria das vezes, filhos de raparigas pobres, e resultado de conjunções carnais pecaminosas, ou mesmo crianças encontradas por eremitas que as recolhiam e as educavam até as colocarem na roda.
Por vezes, as mães dos enjeitados deixavam algumas marcas identificativas, como fitinhas, pequenos bordados com monogramas e medalhinhas, a fim, de mais tarde, um dia poderem os recuperar.
Quando atingiam a idade de aprendizagem, eram as crianças transferidas para a Casa Pia, uma instituição de acolhimento que as educava e então as preparava para a vida adulta. Por ser tão utilizada, a roda acabou por se tornar legítima chegando mesmo a ser oficializada no fim do século XVIII e receber a denominação de
Roda dos Expostos ou dos Enjeitados. O intendente geral da Polícia do Reino, Pina Manique, reconheceu oficialmente a instituição da roda através da Circular de 24 de maio de 1783, com o objetivo de pôr fim aos infanticídios e acabar com o tenebroso comércio ilegal de crianças portuguesas na raia, onde os espanhóis as vinham comprar.
A Roda dos enjeitados passou a existir também em todas as terras, vindo a perder sua importância e uso com o advento do Liberalismo em Portugal, na primeira metade do século XIX. Fonte: Infopédia [Em linha] Porto: Porto Editora, 2003-2014. [Consult. 1014-03-16]. Disponível em: http:// www.infopedia.pt/$roda-dos-enjeitados.>
Na época colonial e mesmo durante o Império, o exposto ou enjeitado eram termos usados na sociedade brasileira para designar a criança abandonada. Segundo o dicionário da língua portuguesa de Antonio de Morais Silva, edição de 1831, exposto correspondia àquele ou àquela que era abandonado (a) na Roda, aparelho, em geral de madeira, de formato cilíndrico, com um dos lados vazado, assentado num eixo que produzia um movimento rotativo, anexo a um asilo de menores.
Esse tipo de engrenagem permitia o ocultamento da identidade da pessoa que abandonava. A pessoa então lançava a criança na Roda e não estabelecia nenhum contato com que a recolhia dentro do estabelecimento. A manutenção do segredo sobre a origem social da criança resultava da relação promovida entre o abandono de crianças e amores ilícitos.
O espaço especialmente destinado para acolher as crianças visava a priori absorver os frutos de tais uniões. Com o tempo, tal espaço passou a ser utilizado por outros motivos, indivíduos das camadas populares, por exemplo, que abandonavam seus filhos na Roda por não possuir meios materiais de mantê-los e cria-los. A “Casa dos Expostos”, “Depósito de Expostos” e “Casa da Roda ” era as designações correntes no Brasil para indicar os asilos de menores abandonados.
Os primeiros asilos para menores surgiram nas cidades de Salvador e Rio de Janeiro durante o século XVIII. Em 1693, entretanto, uma carta régia fora enviada ao governador da Capitania do Rio de Janeiro, Antonio Paes de Sande, na qual se determinava que os expostos fossem criados a expensas dos cofres públicos.
Através dessa medida, os enjeitados deixariam de ser jogados nos adros das igrejas, nas portas das residências, nas ruas e praças, na dependência da caridade pública. É preciosa a obra de Ubaldo Soares, chamada de “O passado heroico da Casa dos Expostos”, Rio de Janeiro, publicada Fundação Romão de Mattos Duarte, 1959. Essa obra de um arquivista da Santa Casa da Misericórdia que descreveu as condições de abandono de crianças no Rio de Janeiro, no período que antecedeu a criação da Roda.
Durante mais de oitenta anos, porém, os termos da carta régia permaneceram completamente esquecidos. Somente em 1738, meio séculos depois que Romão de Mattos Duarte doou a quantia que permitia a fundação de estabelecimento voltado para o acolhimento e abrigo de crianças abandonadas na cidade do Rio de Janeiro. A partir desse momento, o benfeitor seria conhecido como “pai dos sem pais”.
A Casa dos Expostos fora criada dentro dos quadros da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. A irmandade da Misericórdia, mediante seu provedor, elegia três irmãos da ordem para o exercício das funções de procurador, tesoureiro e escrivão. A eles cumpria a supervisão dos bens pertencentes à Casa dos Expostos e sua administração financeira. Aos três irmãos, ainda competia, a escolha da regente, responsável pela organização interna do estabelecimento.
Na realidade, a Casa não possuía autonomia; os irmãos prestavam contas, por meio de relatórios e ofícios, à provedoria da Santa Casa. A maioria das decisões concernentes aos expostos era, em sua efetividade, submetida à aprovação da direção da Santa Casa.
A maioria das decisões concernentes aos expostos era, em sua efetividade, submetida à aprovação da direção da Santa Casa.
A organização da Casa dos Expostos se encaixava, portanto, no modelo que caracterizava o cuidado com populações carentes no Rio de Janeiro. A lógica que presidia a essa orientação se coadunava com uma prática caritativa-assistencial; o cuidado com populações “carentes” estava, assim, nas mãos de irmandades religiosas.
A história da assistência das Misericórdias de origem portuguesa tem-se assinalado pela pregação da caridade e solidariedade cristã. Essa regulamentação dos setores marginais da sociedade, moldada pelo religioso, pelo particular, distinguiu a ação da Santa Casa – exemplos são encontrados tanto na Casa dos Expostos quanto no recolhimento das órfãs, Hospital Geral, etc.
A partir de 1778, quarenta anos após sua fundação, a Casa dos Expostos passou a receber da Coroa portuguesa a dotação de 800$000 réis anuais. O pagamento das dotações, todavia, se caracterizou pela irregularidade e a sustentação da Roda, como de outros estabelecimentos da Santa Casa, prosseguiu mediante doações particulares.
Entre segmentos médios e altos da população era bastante comum o arrolamento em testamentos de doações para entidades religiosas. Por meio de certa simonia , a doação, o cristão buscava o perdão de seus pecados e alcançar uma morte mais tranquila, pagando o direito de entrada no reino dos céus. A lista dos benfeitores da Casa dos Expostos é longa e demonstra a importância desse tipo de prática na sociedade da época.
A Roda conheceu vários endereços, inicialmente quando de sua criação, esteve situada no Hospital Velho da Misericórdia, ficando até 1810 quando José Dias da Cruz, irmão da Misericórdia, legou o prédio na Rua da Misericórdia para abrir os “expostos”. Em 1821, foram providenciadas pela Mesa da Casa dos Expostos, duas casas pequenas nessa mesma rua, no sentido de aumentar e melhorar os alojamentos.
Já em 1840, durante a provedoria de José Clemente Pereira na Santa Casa, os “expostos” foram transferidos para uma casa situada na Rua de Santa Teresa. Ainda com José Clemente Pereira provedor, os “expostos” foram transferidos em 1850 para uma edificação na Rua da Lapa, no cais da Glória, permanecendo até 1860, quando foi transportada para a rua dos Barbonos, atual Evaristo da Veiga.
As mudanças de local da Roda tiveram lugar a partir do século XIX; até 1810 a Casa dos Expostos, segundo revelam os documentos e relatos, teve como endereço o Hospital Velho. Os sucessivos deslocamentos do estabelecimento denotam, por um lado, o aumento de crianças abandonadas. Por outro, manifesta, uma preocupação crescente que então despertara a mortalidade, de altas taxas, que atingia os “enjeitados” da Santa Casa. E, na expressão dessa preocupação, a medicina higienista tece um desempenho determinante.
As remoções da Roda decorriam de problemas definidos como higiênicos. Com a transferência se tentava libertar a Casa dos focos de doenças que, segundo os administradores e médicos, penetravam nas edificações, atingindo aqueles que as habitavam.
As causas estariam nas poucas janelas dos edifícios que impediam a livre circulação do ar. O ar, acreditava-se então, era o principal agente na transmissão de doenças: viciado, ele produziria fenômenos considerados mórbidos que apareciam com certa regularidade.
De fato, as sucessivas trocas de endereço parecem revelar tentativas de fuga, de escape à morte prematura das crianças. Buscava-se reduzir as altas taxas de mortalidade que atingiam uma percentagem quase sempre superior a cinquenta por cento.
A questão da mortalidade em asilos para menores foi uma preocupação constante não só no Brasil como também em outros países, como por exemplo, a França. A emergência de espaços destinados a abrigar crianças abandonadas, assim como a utilização do aparelho da roda, tem uma história similar em diferentes países.
No caso francês são relevantes para o estudo desta temática os trabalhos de J. Donzelot, A polícia das famílias, Rio de Janeiro, Graal, 1980, Jean-Louis Flandrin, Familles – Parenté, Maison, sexualité dans l’ancienne societé, Paris, Editions du Seuil, 1984; Pierre Chaunu, La civilisation de l’Europe des Lumière, Paris, Flammarion, 1982.
Muitos enjeitados constituíram família e acumularam fortunas. Um dos casos mais célebres na História do Brasil é o de Diogo Antônio Feijó, ou simplesmente regente Feijó, que nasceu em São Paulo em 1784 – período com altos índices de abandono – e se tornou um dos mais ilustres personagens do período regencial (1831-1840), sendo regente do Império de 1835 a 1837.
Mas houve um grande número de crianças que, depois de completarem sete anos, foram submetidas a duras condições de trabalho. Os diferentes destinos mostram que o abandono não estava, necessariamente, associado à marginalidade.
O estudo de uma instituição como a “Casa dos Expostos” implica na reflexão sobre determinado tipo moral que conduzia as relações familiares. Os asilos dos enjeitados emergiam na condição de reguladores dos possíveis desvios familiares um lugar para os filhos de uniões ilegítimas, os que não possuem história, os “sem família”.
No Brasil, esses estabelecimentos surgiam dentro da estrutura familiar colonial (os asilos para menores abandonados, os conventos e os recolhimentos para mulheres foram criados a partir do século XVIII). Surgiram em centros urbanos no bojo de um movimento de moralização de comportamentos femininos; visavam a preservação da honra de mulheres pertencentes aos segmentos médios e altos da população.
As mulheres destinadas, em princípio, para o casamento; as que escapavam ao matrimônio eram encaminhadas para ordens religiosas, onde tomavam o hábito, cortando, assim, os vínculos com o mundo exterior.
O regime de casamento prevalente, na colônia e em parte do século XIX, estava conduzido por meio de relações de interesses; pela aliança social da família. A instituição do dote adquiriu importância na regulação das trocas matrimoniais. A mulher sem dote estava fatalmente fadada a solteirice eterna ou ao não-casamento. Um homem branco, mesmo que de condição inferior, dificilmente se casaria com mulher, embora que branca, sem dote.
Pode perceber então a influência do dote nesse sociedade particularmente pela documentação da Santa Casa da Misericórdia. O recolhimento das órfãs, por exemplo, possuía um cofre expostas criadas no estabelecimento.
O cofre era mantido através de doações feitas geralmente em testamento para a dotação de órfãs e expostas. Dote e honra da mulher eram elementos que se confundiam na destinação ao casamento.
A procriação fora do casamento era alvo de recriminação e estava sujeita a sanções, tanto a nível religioso, como social, já que ambas as instâncias tendiam, neste caso específico, a se confundirem.
A fonte principal para a presente reflexão são as teses da Faculdade de Medicina sobre a Roda dos Expostos, produzidas entre 1845 e 1860. Como requisito para o término do curso de medicina, o candidato a médico deveria defender uma tese a partir de um dos pontos elaborados pela faculdade.
Dar-se-á destaque as partes que buscavam justificar a existência de estabelecimentos como a Roda. Através das justificativas médicas para a manutenção da Roda, há a construção de uma noção médico-higienista da mulher que abandonava o filho.
Por outro lado, em países como a França e Inglaterra teve início, nos anos 20 e 30 do século passado, um debate em torno da eficácia de instituições como a Roda a resolução dos impasses colocados pelo crescente abandono de crianças. Sociedades que defendiam, em contraponto à local, a eliminação da Roda, na medida em que a sua manutenção contribuiria para o aumento do abandono e não para a sua redução. Os asilos para crianças abandonadas eram, portanto, apontados, como exemplos de imoralidade.
Eles concorriam para o fomento da “improvidência” e do “crime” ao acolherem frutos de amores pecaminosos acelerando a depravação dos costumes e da moral. Duchatel e Lord Brougham figuravam, segundo os médicos declaram, como representantes dessas doutrinas que postulavam a eliminação da Roda.
Nesses países as modificações propiciadas pela revolução industrial capitalista deram sequência à aplicação de novas políticas, de maior racionalidade, no que tange às suas populações.
Nesse movimento, instituições vinculadas a uma estrutura mais tradicional remanescentes do Antigo Regime, eram alvos de críticas ferozes e extremadas. Na nova ordem com a hegemonia da burguesia, estabelecimentos como asilos para menores e os recolhimentos de mulheres eram, em suma, indicadores de caduquice e anacronismo. Costumes, hábitos e comportamentos transformavam-se, confluindo para um aburguesamento da vida social.
O Brasil, típico país de recente emancipação política (posto que ainda no início do século XIX partilhava ainda do estatuto da colônia) expressava o descompasso entre a organização social tradicional de base agrária e escravagista, e ideias e práticas de índole progressista.
Do ângulo do discurso médico sobre Casa dos Expostos, contudo, a sua racionalidade se perdia. Posto que buscasse na religião a fonte de principal inspiração, as teses eram frequentes na utilização de noções e princípios cristãos.
Além da caridade, a Roda exprimia uma forma de ocultamento das condições em que a criança era gerada. O “exposto” era provavelmente fruto de relações ilícitas, e encontrava na Roda um lugar de socorro e acolhida. Os asilos para “enjeitados” constituíam, como é possível observar, um meio de preservação da família e de salvação da sociedade.
A deterioração dos costumes produziria, segundo a maioria dos autores e teses, o afrouxamento dos laços familiares, arrastando a sociedade para corrupção e a miséria.
Salvar a mãe, salvar o filho, e, enfim salvar a sociedade. Defendia-se a preservação da ordem social. Os higienistas da época concebiam uma natureza frágil da mulher e passiva. Onde desponta claramente a mulher como vítima do homem. Ao homem cabia a autoria do crime; e conduzia a mulher que abandonava o filho, primeiramente em seu ventre, e depois, na Roda.
Evidentemente o pensamento médico sobre a Casa dos Exposto ora apresentado indicava a relação com o abandono infantil em face do contexto da velha ordem colonial.
Concluímos, infelizmente que a produção médica sobre a Roda esteve muito caracterizada pela ambiguidade, pela descontinuidade de discurso e por abordar dilemas e impasses que deram tanto sentido à formação social e histórica da sociedade brasileira.
Em 2008, o deputado do PT Eduardo Valverde (de Rondônia) encaminhou projeto de lei 2.747 que pretendia criar estruturas hospitalares para legalizar o parto anônimo. Porém, a proposta fora rejeitada pela Comissão de Seguridade Social e Família e pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, mas ainda deve ser apreciada pela Câmara dos Deputados. Uma das opositoras ao projeto, aponta que permitir o anonimato é fortalecer a ideia de paternidade ou maternidade irresponsável e negar o direito fundamental de conhecer suas origens a criança.
Referências:
GONÇALVES, Margareth Almeida; ALMEIDA, Angela Mendes (org.). Pensando A Família no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRRJ, 1987.
ALVES, M. S. R. A “Casa da Roda” de Cabo Frio no período de 1830 a 1900. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós- Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana, UERJ, 2009.
ARANTES, E. M. de M. (no prelo). Santa Casa de Misericórdia. In Jacó-Vilela, A. M. (Org.), Dicionário histórico de instituições de psicologia no Brasil. Rio de Janeiro: Imago. 2010.
ZARUR, D. (2003). Educandário Romão de Mattos Duarte. Rio de Janeiro: Binus Artes Gráficas Ltda., 2003.
FRANCO, Renato. Desassistidas em Minas: a exposição de crianças em Vila Rica, século XVIII. Niterói: Editora UFF, 2006.
VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias abandonadas – assistência à criança de camadas populares no Rio de Janeiro
e em Salvador – séculos XVIII e XIX. São Paulo: Papirus, 1999.