E não podemos esquecer da religião nacional, posto que a religião é mecanismo essencial para a uniformização de comportamentos e, logo, de valores que podem estar presentes em todos os espaços da vida pública e privada.

Daí que, mesmo formalmente muitos estados tenham se tornado laicos no decorrer do processo moderno; essa separação da religião é muito mais formal do que efetiva. E, a religião continua tendo importância nos debates políticos e nas justificativas de decisões no plano das relações internacionais.

A construção da identidade nacional que fora fundamental para erguer o Estado nacional, e, ipso facto para o capitalismo em todas as suas formas requer o estranhamento do outro, da exclusão do não nacional, do diferente.

A construção da nacionalidade, é, em suma, um projeto narcisista. Esse referido dispositivo de estranhamento, de exclusão e de autoafirmação pelo rebaixamento do outro está presente em nós como frutos da modernidade, mormente naturalizada, e existe um “ Eichman” dentro de cada um de nós.

Esse “Eichman” está desperto em alguns, controlado ou acorrentado em outros, ou apenas adormecido, podendo ser despertado em momentos históricos que reúnam as condições para tal.

Os genocídios podem ser explicados pelo despertar desse “Eichman”, desse dispositivo interno moderno de afirmação perante o rebaixamento do outro. As origens da modernidade têm no ano de 1492 especial significação. Nestes dois fatos marcaram o início da construção do mundo moderno como conhecemos hoje.

A invasão das Américas iniciada por Cristóvão Colombo em 1492. Chegando nestas terras começou processo de extermínio, assassinatos, torturas e encobrimento que durou mais de quinhentos anos até os movimentos indígenas assumirem o poder na Bolívia e no Equador, e se organizarem e conquistarem espaços e direitos em outros estados americanos.

A invasão do mundo começando pela América foi fundamental para o desenvolvimento do sistema econômico criado pelos europeus: o capitalismo mercantilista.

Não haveria hoje o capitalismo atual e o poderoso processo de industrialização da Europa, sem as riquezas retiradas das Américas (ouro, cobre, prata, madeira e diversas outras riquezas) inicialmente, assim como as riquezas da Ásia e da África.

Não haveria tampouco capitalismo sem as instituições modernas dotado de moeda nacional, bancos nacionais, exércitos nacionais (para invadir e retirar as riquezas dos outros), o direito nacional e a religião nacional tidos como mecanismos de uniformização de valores construindo uma massa uniforme e uniformizada que se transformará nos consumidores de hoje (que tendem a gostar das mesmas coisas, especialmente mercadorias de consumo, marcas e grifes de produtos diversos).

Neste momento de globalização moderno, o presumido mercado global gira e simultaneamente cria padrões de comportamentos e valores uniformizados em escala universal, fundamental para o sucesso do capitalismo contemporâneo.

Parcelas cada vez mais expressivas de pessoas são convertidas ao credo do capitalismo: ao individualismo e a competição permanente. Os cidadãos são convertidos em consumidores.

Uma nova subjetividade é construída em escala universal em que os comportamentos e valores são construídos por complexas relações sociais e econômicas históricas são naturalizadas.

O ser humano consumidor, egoísta e competitivo construído pela modernidade, é naturalizado. Em outras palavras, isso significa que as pessoas passaram a perceber esses valores e comportamentos como se fossem naturais no ser humano, o que obviamente não são. A completa invasão e dominação militar do mundo será seguida por uma dominação ideológica. A Europa será apresentada a todos como sendo um padrão a ser seguido.

É posta como civilização mais sublime e avançada, mais bem acabada, e portanto, destino natural de todos que pretendem evoluir. Essa naturalização histórica coloca outras civilizações, com compreensões e graus de complexidade distintas, não como diferentes, mas como menos evoluídas e primitivas.

O conhecimento europeu tem a pretensão de validade universal, a única filosofia existente é europeia. As outras formas de compreensão do mundo e da vida são consideradas primitivas, não complexas e sem posição científica.

Uma outra filosofia não existe, sendo admitida, no máximo, por alguns, uma entnofilosofia em outros espaços do globo que não a Europa. Essa perspectiva é reproduzida até hoje nas universidades e faculdades de filosofia.

A expulsão:

O segundo grande fato simbólico para compreender o processo moderno foi a queda de Granada em 1492 , a última grande cidade em domínio muçulmano.

Traduz-se na expulsão do outro, do mais diferente, abrindo-se agora espaço para a construção do Estado moderno com a uniformização dos menos diferentes e a invenção do europeu e dos nacionais europeus.

Seguindo a expulsão dos muçulmanos, vem a expulsão dos judeus e a construção de Estados modernos uniformizados pela imposição de uma única religião que ditava comportamentos ao lado do Estado para todas as esferas da vida de todas as pessoas. Quem não se enquadrasse estava fora. Foi então criada a polícia da nacionalidade: a Santa Inquisição , é um bom exemplo.

A uniformização de comportamento e valores é essencial para o reconhecimento de um poder agora unificado e centralizado. Estado moderno na Europa A formação do Estado moderno a partir do século XV ocorreu após lutas internas nas quais o poder do Rei se afirma perante os poderes dos senhores feudais, unificando o poder interno, unificando os exércitos e a economia, para então reafirmar esse mesmo poder perante os poderes externos, os impérios e a Igreja.

Trata-se de um poder unificador numa esfera intermediária, pois cria um poder organizado e hierarquizado internamente, sobre os conflitos regionais, identidades existentes anteriormente à formação do Reino e do Estado nacional que surge nesse momento e, de outro lado, afirma-se perante o poder da Igreja e dos Impérios.

Esse é o processo que ocorreu em Portugal, Espanha, França e Inglaterra. Diante desses fatos históricos decorreu o surgimento do conceito da soberania em duplo sentido: a soberania interna a partir da unificação do Reino sobe os grupos de poder representados pelos nobres (senhores feudais), com a adoção de um único exército subordinado a uma única vontade; a soberania externa a partir da não submissão automática à vontade do papa e ao poder imperial (multiétnico e descentralizado).

Um problema importante surge nesse momento, fundamental para o reconhecimento do poder do Estado, pelos súditos inicialmente, mas que permanece para os cidadãos no futuro estado constitucional: para que o poder do Rei ou do Estado seja reconhecido, este Rei não pode se identificar particularmente com nenhum grupo étnico interno.

Os diversos grupos de identificação pré-existentes ao Estado nacional não podem criar conflitos ou barreiras intransponíveis de comunicação, pois ameaçarão a continuidade do reconhecimento do poder e do território desse novo Estado soberano.

Assim, a construção de uma identidade nacional se torna fundamental para o exercício do poder soberano. Desta forma se o Rei pertencesse a uma região do Estado, que tenha uma cultura própria, elemento comum com o qual ele claramente se identificasse, dificilmente outro grupo, portador de outras identificações, o reconhecerá como Rei e como o poder.

Assim, a principal tarefa desse novo Estado é criar uma nacionalidade, ou seja, um conjunto de valores de identidade, por sobre as identidades já existentes. A unificação da Espanha ainda hoje está, entre outras razões, na capacidade do poder do Estado em manter uma nacionalidade espanhola por sobre as nacionalidades já existentes (galegos, bascos, catalães, andaluzes, castelhanos, entre outros).

Se um dia tais identidades regionais prevalecerem sobre a identidade espanhola, o Estado espanhol estará condenado à dissolução. Como exemplificação recente, podemos citar a fragmentação da Iugoslávia entre vários pequenos estados étnicos independentes, tais como a Macedônia, Sérvia, Croácia, Montenegro, Bósnia, Eslovênia e, em 2009, o impasse com Kosovo.

Assim, a tarefa de construção do Estado nacional (do Estado moderno dependia da construção de uma identidade nacional, noutras palavras, de imposição de valores comuns que deveriam ser compartilhados pelos diversos grupos étnicos, pelos diversos grupos sociais para que todos reconhecessem o poder do Estado, do soberano.

Desta forma, na Espanha, o rei castelhano agora era espanhol, e todos os grupos internos também deveriam se sentir e se assumirem como espanhóis, reconhecendo a autoridade do soberano. Esse processo de criação de uma nacionalidade dependia da imposição e aceitação pela população de valores comuns.

Tais como um inimigo comum (na Espanha do século XV eram os mouros, o império estrangeiro), uma luta comum, um projeto comum e, naquele momento, o fator fundamental unificador: uma religião comum;

Nascia então a Espanha com a expulsão dos muçulmanos e, posteriormente, dos judeus[1]. É criada na época uma polícia da nacionalidade: a Santa Inquisição.
 
Ser espanhol significava ser católico, e quem não se comportasse como bom católico era excluído.
 
A formação do Estado moderno portanto está intimamente relacionada com a intolerância religiosa, cultural, a negação da diversidade fora de determinados padrões e limites.
 
O Estado moderno nasce da intolerância com o diferente e dependia de políticas de intolerância para sua plena afirmação. Atualmente ainda hoje assistimos o fundamental papel da religião diante dos conflitos internacionais, a intolerância com o diferente é ainda uma tônica.
 
Mesmo os estados constitucionalmente que aceitam a condição de laicos possuem na religião uma base forte de seu poder: e o caso mais assustador é o dos EUA, divididos entre evangélicos fundamentalistas de um lado e protestantes liberais de outro. E, isso repercute diretamente na política norte-americana, nas relações internacionais e nas eleições internas.
 
A mesma vinculação religiosa com a política dos Estados pode ser percebida em uma União Europeia cristã, que resiste à aceitação da Turquia e convive com o crescimento da população muçulmana europeia.
 
 
[1] Os judeus são principais vítimas, foram dizimados pela peste negra, pelos motins antissemitas de Aragão ou de Servilha, no século XIV muitos judeus apenas encontram salvação na conversão, pelo menos aparente à fé cristã.

Chama-se-lhes de conversos ou marranos e continuam a praticar clandestinamente seus ritos. Calcula-se que pelo menos dois mil o número de conversos que terão morrido em Espanha pelo fogo, e em 15 mil os que sofreram outro castigo como a apreensão de bens ou prisão, antes que, a 31 de março de 1492 o poder régio considerasse mais eficaz expulsar de Espanha todos os judeus.

A inquisição submeteu os mouriscos a idêntico jugo, primeiro, os mouros convertidos depois da queda de Granada (1492) depois os místicos e os iluminados (Teresa de Ávila e Inácio de Loyola foram hostilizados). A Inquisição puniu a fornicação, o incesto, a sodomia, a bigamia e, etc. Esta violência continuará num crescente até 1550 quando as condenações à fogueira se tornaram mais espaçadas.
GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 05/03/2014
Reeditado em 06/03/2014
Código do texto: T4715603
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