A Audiência e a Noite Seguinte
Nadir Silveira Dias
Eu vi. Passeando pelo mundo, parafraseando Neimar de Barros (1), eu vi. Em nova investida, o algoz fustigando a vítima de abandono, outra vez atacada, sem quaisquer ônus. Vi a vítima sem defesa. Sem a defesa integral perante a diretriz entortada do mundo jurídico, cria da sociedade.
E agora já nem creio bem se vi o que vi. Acho que vi. Vi sim. E ainda assim me pergunto se mal vi ou se vi bem.
Vi um advogado chicanando (2) com ajuizamento de demanda que tinha o dever profissional de saber que se tratava de causa perdida. Mas assim o fez para tentar obter tutela judicial, por vias transversas, de outra ação que nunca ajuizara. Vi a lide temerária (3) a provocar outras demandas.
Eu vi. Vi um juiz advogando apenas para uma das partes. E isso é vedado pelo próprio princípio da judicatura (4). Seu convencimento formou-se tão-só com o depoimento das partes. Dispensou as testemunhas e foi claríssimo, categórico:
- Vou julgar procedentes os embargos e extinguir a execução. Acho bom um acordo, sobre os alimentos, daqui para a frente (E não deixo de reconhecer o zelo do julgador, neste último ponto).
Mas disse mais, e aqui o seu equívoco, porque significa advogar para uma das partes.
- Se caso chegar às minhas mãos a ação de alimentos, vou dar a tutela antecipada, fixar os alimentos e mandar descontar dos vencimentos (no caso, do abandonado e executado embargante). Por isso, perora ele, seria bom que restasse acertado agora o acordo de alimentos.
Não podia, pois a autora da ação objetivava executar alimentos pretéritos com base em inválido acordo anterior, com renúncia expressa e assinada, por ela própria. Na atualidade, tal acordo, que fora existente, válido e eficaz por um certo lapso de tempo, agora estava relegado à sua real condição: inexistente para surtir efeitos jurídicos.
Era um nada. Não tinha ela título para executar e alimentos, depois da renúncia, nunca os tinha pedido antes e tampouco convivera a alimentanda com o pretenso alimentante para responder ele por tal encargo. Tanto que isso foi reconhecido pelo juízo, ao afirmar que julgaria procedentes os embargos.
Vi um juiz censurando um pai porque os alimentos para o filho nada tem a ver com aquela que é a sua mãe (indevidamente presente na audiência), mas não vi o mesmo juiz advertindo a mãe de que ela não pode privar a filha de conviver com o pai (que, afinal o fez por oito anos, e parece que continuará a fazer, pois à saída da audiência, perante testemunhas {talvez do próprio juiz, ainda na sala de audiência, isso não vi}, puxava pela mão a filha que teve a iniciativa de ficar um pouco a conversar com o pai que ela abandonara há oito anos).
Eu não vi. Não vi o mesmo juiz admoestando a filha sobre o dever parental, o dever filial para com a carência (5) (afetiva) paterna. Não vi o juiz aplicar o princípio constitucional fundamental da isonomia (6), que precisa haver, mesmo nas meras relações registrais, se contra o pai abandonado prevalece o dever parental para com os filhos.
Vi os atos judiciais configurando o entortamento já antigo da sociedade que fez e faz o mundo jurídico como ele é. E acredito (perdoem os que pensam o contrário), se há coisa que não pode ocorrer é o pai responsável (ou a mãe) se submeter ao filho. E se isso é verdade, como creio, é de se perguntar como pode o filho se submeter à mãe para abandonar o pai, que sempre foi responsável? Será isso da essência da mãe? Submeter o filho para tê-lo contra o pai? Se for, e as varas de família dos foros do Brasil parecem confirmar essa impressão, há equívoco essencial a ser sanado, para o bem da sociedade, para o bem do mundo.
Por outro ângulo, dê-se aos filhos, como se deu, o poder de submeter o pai, a mãe, responsáveis, e temos o que aí está: ausência total do princípio da autoridade, vital na própria natureza, e apesar de estar ele positivado no Direito Pátrio, no artigo 384 do Código Civil Brasileiro (7).
Ou será que a prepotência humana já a faz se posicionar como ente extranatural, fora ou acima da natureza (8) criada por Deus?
Vi a defesa sucumbir na parte mais significativa. Vi a vitória dos ímpios, com ares de prepotência, predominância, despudor, eu vi.
No entanto, bom que saibamos (e muito sabem, apesar de imensa maioria que não sabe ou finge não saber) ninguém pode fugir dos atos de sua responsabilidade, seja porque tenha feito o que não devia, seja porque não tenha feito aquilo que lhe competia fazer.
Refiro-me a comando que não faz parte do direito positivo, lembro a não escrita lei de causa e efeito (9),(10),(11),(12),(13), (ou de ação e reação, nas ciências exatas). Na verdade, princípio, que não integra com essa feição o mundo jurídico (Veranlassungsprinzip, princípio da causalidade, e constitui um minus ante ao alcance daquela), mas que é parte essencial da vida. Vida que não é nossa, mas do Criador (14), a quem, queiramos ou não, vamos responder no momento em que Ele bem entender cabível (15).
Essa a after night, a noite seguinte, à audiência a que compareci e vi, a meu sentir, e ora registro, como forma de procurar bem entender o que vi.
(1) Escritor e Poeta, autor dos livros Sorrindo, Deus Negro, Profecias de um Ex-Ateu, O Dia de Sua Morte e O Livro Proibido.
(2) Segundo ANTÔNIO HOUAISS: CHICANAR. V.i. Fazer chicanas. /Contestar sem fundamento. CHICANA: s.f. Processo artificioso, abuso de recursos e formalidades em questões judicias./ Querela de má-fé, cavilação./ Ardil, sofisma. (In Pequeno Dicionário Enciclopédico Koogan Larousse, Rio de Janeiro, Ed. Larousse do Brasil, 1992, p. 187.
(3) LEI N.º 8.906, de 04 de julho de 1994 (Dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB) (...) Art. 32. “O advogado é responsável pelos atos que, no exercício profissional, praticar com dolo ou culpa. Parágrafo único. Em caso de lide temerária, o advogado será solidariamente responsável com seu cliente, desde que coligado com este para lesar a parte contrária, o que será apurado em ação própria. “
(4) LEI COMPLEMENTAR N.º 35, de 14 de março de 1979 (Dispõe sobre a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN): Art. 36. “É vedado ao magistrado: (...) III – manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu² ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judicias, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério. Art. 36: 2. É suspeito o juiz que, desnecessariamente, antecipa nos autos sua opinião a propósito de questão que ulteriormente deverá decidir (TFR-RT 366/316) (In Código de Processo Civil, Theotonio Negrão, com a colaboração de José Roberto Ferreira Gouvêa, 29ª Ed. atualizada até 5.01.1998, p. 1149, Ed. Saraiva, 1998.)
(5) CF-1988. Art. 229. “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.” (grifo aposto).
(6) Op. cit. Art. 5º. “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, (...)”.
(7) Lei n.º 3.071, de 1º de janeiro de 1916: Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Art. 384. “Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos: (...) VII – Exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.“ (In Código Civil, Theotonio Negrão, com a colaboração de José Roberto Ferreira Gouvêa, 17ª Ed. atualizada até 5.01.1998, pp. 100-101, Ed. Saraiva, 1998) e no Novo Código Civil Brasileiro, com idêntico texto, no artigo 1.634.
(8) CAMILLE FLAMMARION. Dieu dans la Nature, Paris, 1867. Deus na Natureza, tradução de M. Quintão, 1937, 4ª Ed., Do 16º ao 20º milheiro, Federação Espírita Brasileira, Rio de Janeiro, 1979, p. 384, pp. 373-374: “Essa vastíssima Natureza caminha impassível, mecanismo colossal, as coisas se renovam sem tréguas, o próprio homem não passa de átomo efêmero, que surge e funde-se num relâmpago. Deste universo imenso, o homem quase nada conhece, posto suponha conhecer tudo, e, de resto, empregando o tempo noutras cogitações. Antes que surgisse o homem, já essas mesmas harmonias vibravam como ao presente. Para que ouvidos, porém? Tudo existia antes dele e quiçá sem ele. Tudo existira depois dele!”
(9) CARLOS TOLEDO RIZZINI, Membro da Academia Brasileira de Ciências, In Evolução para o Terceiro Milênio – Tratado Psíquico para o Homem Moderno, 3ª Ed. (3000 Exemplares.), Editora Cultura Espírita, São Paulo, 1982, pp. 118-122.
(10) O NOVO TESTAMENTO DE JESUS CRISTO, Traduzido em Português por João Ferreira de Almeida, Ed. de Os Gideões Internacionais, 1982, p. 17: Mateus 7:1; “Não julgueis, para que não sejais julgados.”
(11) In op. cit. p. 17: Mateus 7:2: “(...) e com a medida com que tiverdes medido vos hão de medir a vós.”
(12) In op. cit. p. 61: Mateus 26:52: “Porque todos os que lançarem mão da espada, à espada morrerão.”
(13) In op. cit. p. 121, Lucas 6: 31; “E, como vós quereis que os homens vos façam, da mesma maneira lhes fazei vós também.”
(14) A BÍBLIA DA FAMÍLIA.. O Antigo Testamento. Gênesis 1:2, p. 22: “No princípio Deus criou o céu e a terra.” Editor Dr. Claude-Bernard Costecalde. Publicação Dorling Kindersley (DK) Co-Edicion Editorial Amereida S.A., 1998, Santiago. Chile.
(15) In op. cit. O Novo Testamento. O Sermão da Montanha. Mateus 5:18, p. 245: “Em verdade vos digo, mesmo que o céu e a terra desapareçam, não desaparecerá da Lei nem a menor letra, nem o menor traço, até que tudo seja cumprido.”
Escritor e Advogado – nadirsdias@yahoo.com.br