Dos delitos e das sanções II.

Dos delitos e das sanções II.

Em especial a criança, desde tenra idade vê, ouve e constata, dentro da própria família, a VIOLÊNCIA materializada e refletida em frases ditas com veemência, no mais das vezes com real ódio, com a chamada “indignação”, tais como: -“Viu? Praticou o crime... tem mais é que sofrer... sofrer muito... apodrecer e morrer na prisão... é impossível que não pague pelo o que fez”!

Assim, no dia-a-dia, como verdadeira “lavagem cerebral”, numa mais que perfeita imposição do “reflexo condicionado” (v. Ivan Plavov), a criança cresce com a sua personalidade delineada e conformada na firme concepção de que a dor-sofrimento daquele que pratica o delito (ou crime) é meio, instrumento, ou modalidade civilizada de fazimento da justiça!

No entanto, curiosamente, dentro da própria casa, a criança é chamada à atenção para não ser agressiva, raivosa etc., para não se envolver com pessoas violentas... não ver programas violentos... não ver reportagens violentas (que vão do “escraacha” ao “me ajuda aí ôôô”)... não ver filmes violentos etc. Se é religiosa, vai receber ensinamentos que cultuam a mansidão, a paz interior, em suma, a não-violência...

Quem educa, e agora, além do âmbito familiar, nas escolas etc., com a didática da violência como sinônimo de justiça, nada mais faz que repetir, por tradição secular, o que (culturalmente) sempre fizeram os ancestrais... quando “o castigo é uma decorrência natural a ser infligido a quem pratica o delito”...

Os filmes, para todas as idades, dos infantis aos adultos, que são transmissores de cultura, têm muito bem definida a concepção de justiça: se marcado (argumentado) pela luta entre o bem e o mal, no Fim o bem vence, e o mal não pode passar imune e impune, devendo o seu causador sofrer, e sofrer, e sofrer... para a felicidade de todos... (com direito a pipocas)...

Então, flagrada na violência, a criança é reprovada como anormal, e muitas vezes levada à análises comportamentais por educadores, psicólogos, e até religiosos, quando, na realidade fática, tão-somente espelha-se no meio cultural em que convive... e, inocentemente, a pratica...

Mesmo que os instintos em geral (pulsões) integrem a natureza humana, isto em nada impede que haja Educação para que possam ser controlados... Sob este aspecto, até o que parece imutável culturalmente pode ser transformado através da Aculturação...

Quando a didática repele o “castigo” como forma de educação, e até mesmo no adestramento de animais, combater o chamado ‘tratamento desumano” com a aplicação da dor-sofrimento é a mais obscura, pimitiva, e flagrante contradição.

O tema ora tratado, Responsabilidade Penal, “icto oculi”, de altíssimo grau de complexidade, que tem, por definição, como consequência jurídica, a PENA, é sequência do texto “Dos delitos e das sanções” [ Livro “À Nossa Família - Curiosidades e Lembranças”, e www.recantodasletras].

Neste sentido, não há como falar em pena sem refletir a respeito da obra do Filósofo Cesare Beccaria, publicada em 1764, “Dos delitos e das penas”, na esteira do Iluminismo transformador da visão obscurantista da época, voltado, essencialmente, para o Humanismo (humanitarismo).

Em apertada síntese, grassava na época, segunda metade do século XVIII, a tese de que as penas constituíam uma espécie de vingança coletiva; essa concepção havia induzido à aplicação de punições de conseqüências muito superiores e mais terríveis do que os males produzidos pelos delitos.

Prodigalizara-se então a prática de torturas, penas de morte, prisões desumanas, banimentos, acusações secretas. Beccaria se insurge contra essa tradição jurídica invocando a razão e o sentimento. Faz-se porta-voz dos protestos da consciência pública contra os julgamentos secretos, o juramento imposto aos acusados, a tortura, a confiscação, as penas infamantes, a desigualdade ante o castigo, a atrocidade dos suplícios; estabelece limites entre a justiça divina e a justiça humana, entre os pecados e os delitos. "A grandeza do crime não depende da intenção de quem o comete", escreveu. Condena o direito de vingança e toma por base do direito de punir a utilidade social, ressaltando a necessidade da publicidade e da presteza das penas: "quanto mais pronta for a pena e mais de perto seguir o delito, tanto mais justa e útil ela será". Declara ainda a pena de morte inútil e reclama a proporcionalidade das penas aos delitos ("a verdadeira medida dos delitos é o dano causado à sociedade"), assim como a separação do poder judiciário e do poder legislativo (aqui, acompanhando Montesquieu).

A partir do estudo desta obra, as legislações de vários países foram modificadas; a pena para o criminoso deixa a forma de punição e assume a de sanção. O criminoso não é mais alguém paralelo à sociedade, mas alguém que não se adaptou às normas preestabelecidas, provenientes de um contrato social Rosseauriano, em que a pessoa se priva de sua liberdade (a menor parcela possível) em prol da ordem social.

Cesare Beccaria afirma que as leis são fragmentos da legislação de um antigo povo conquistador, compilados por ordem de um príncipe que reinou há doze séculos em Constantinopla, combinados em seguida com os costumes dos lombardos e amortalhados em um volumoso calhamaço de comentários obscuros, constituídos do velho acervo de opiniões de uma grande parte da Europa”.

Com todo o respeito que merece Beccaria, como se diz no jargão jurídico, “data maxima venia”, a violência trocou de mãos e nome, mas permanece a mesma.

A PENA, ou SANÇÃO PENAL, é a conclusão final (decisum) da sentença penal condenatória deduzida do julgamento judicial do indivíduo (réu ou ré) que praticou um crime (ou delito).

É inexorável que, como consequência jurídica, retribuição, ressocialização etc., o conteúdo da sansão penal é a causação (aplicação) da dor-sofrimento a quem é condenado pela prática de um crime, ou seja: é a violência pela violência – adotada há milênios (v. Código de Hamurábi) , hoje na qualidade de Resposta Social à prática da conduta criminosa (criminosa ou delituosa), a Pena é a violência (causação da dor-sofrimento) desfechada contra quem é (condenado) por ter sido violento (causador da dor-sofrimento).

No suposto de que “o homem é o lobo do homem” [Thomas Hobbes – Plauto], ou de que “o homem nasce bom, e é a sociedade que o corrompe” [Jean-Jacques Rousseau], a violência, efetivamente, acaba sendo instrumento de reparação como ato lesivo a quem concreta ou presumidamente causou dano ou prejuízo –uma “justiça selvagem”, como confessa o Filósofo [Francis Bacon].

Passando em brancas nuvens, in albis, por todos os Autores criminalistas contemporâneos, como se não bastasse a própria Constituição Federal de 1988, que tem “a dignidade da pessoa humana” (Art. 1.º, III), hegemônica e topograficamente alçada ao jaez de Princípio Fundamental, logo, devendo ser considerado, respeitado e praticado por todo o ordenamento jurídico, como pode o Poder Judiciário apreciar (Art. 5.º, XXXV), aplicar, e fazer executar a violência, a dor-sofrimento, como finalidade precípua da jurisdição penal?

Observado o “grau de reprovabilidade da conduta”, a condenação penal será mais, ou menos, violenta, entretanto, será violenta.

Mais recentemente, desde “Dos delitos e das penas”, até a Constituição da República Federativa do Brasil (para não dizer, em todo o Mundo), o efeito prático da violência está assentado no conceito de Justiça Penal, que tem como norte o Código Penal, que, por sua vez, como não poderia deixar de ser, trata das condutas que devem ser violentadas: sancionadas (penalizadas).

No entanto, o próprio Código Penal traz luz e faz reviver o humanitarismo, quando, mesmo que seja por absoluta exceção, prevê as MEDIDAS DE SEGURANÇA – casos de não aplicação da pena (sanção), ou da violência, aos DOENTES MENTAIS (anormais – que não seguem as normas).

Ora! Se é propósito do Juízo de Reprovabilidade Penal da Conduta considerar doente mental quem não tem consciência da ilicitude etc., não podendo ser responsabilizado porque é insciente sobre o que faz ou não faz e o resultado, tornando-se impassível de culpa (“lato sensu”), a rigor, por mais fortes motivos e razões (lógicas axiológicas), deveria ser visto e considerado mais doente ainda quem tem plena consciência (ciência) da ilicitude e vontade de não observar o cuidado objetivo, ou assumir o risco, ou praticar o crime, por enquadrar-se no tipo penal proibitivo incriminador (tipicidade), e o pratica.

Dá-se custódia e tratamento ao indivíduo comprovadamente insano, e causa-se dano ao mentalmente são. Aqui, este confirma que “a sociedade é violenta”, pois agride quem agride, e isto em nada o beneficia. Ali, nada confirma, pois não reflete, e isto em nada o beneficia. Em ambos os casos, um toma ciência imediata da violência que sofre, o outro, poderá tomar ciência de que a violência “é da natureza humana”, se for tratado e se tornar normal.

Diz-se que os Presídios são verdadeiras “Universidades do Crime”, desde que lá se aprenderia as artimanhas do próprio crime. Mas não são! O pior e mais grave aprendizado que tem o apenado está na constatação de que o meio social para onde é preparado para voltar (reintegrado) é violento – é agressivo, preordenado para condenar (cum dano – com dano), para causar a dor-sofrimento, para causar a violência, quando os fatos dispensam a retórica...

Quando o ideal humanitário é a elevação moral e física das pessoas humanas, se não é hipocrisia, nem barbarismo, é um escancarada contradição “pagar o mal com o mal” com a ética do castigo (dor-sofrimento psicológico, ou coporal).

Quem, honestamente, no seu íntimo, pode dizer que causar lesão, ou castigar, é ato que corresponde ao anseio humano, quando o desejo - universal - é a Não-Violência: não há quem ensine (eduque) para que haja a violência.

A violência não pode (e não deve) ser concebida como natural.

Na premissa de que o Homem é o único ser sensível que cria e estabelece valores (o que vale e o que não vale, o que é normal e o que é anormal), via de regra, através da Educação (condicionamento da conduta), é induvidado que a vingança, inclusive camuflada sob a escusa do chamado `”mal necessário”, é um desacerto acatada e praticada como sendo justa (de justiça – prática, comum, ou institucionalizada, do que é do bem, bom, certo e útil).

Neste descompasso, em que a violência é executada como um “ato reflexo” do da sociedade, que, distante, por representação, tem o castigo exigido para quem é infrator, isto em nada difere das arenas de Roma, quando o povo, com sofreguidão, levanta o dedo polegar para ser o causador do dano condenado.

Como cuidar de alguém com violência e esperar que, violentado, não veja (e sinta) que o detentor da violência é tanto mais forte e dominador quanto mais violento for em potencial, ou concretamente?

A única via de acesso para a solução de continuidade da violência como meio e instrumento de exercício da Responsabilidade Penal, é a filosofia Médica Clínica-Hospitalar, quando a mentalidade, frise-se, o íntimo dos Profissionais da Saúde, está alicerçado no paradigma: evitar (prevenir), e, se já instalada, não deixar que progrida, ou extinguir a dor-sofrimento de quem quer que seja.

As estruturas de recursos humanos e materiais já encontram-se prontas: policiais, por enfermeiros; juízes, por médicos; delegacias, por atendimento de emergência; e presídios, por hospitais.

Niterói, RJ, 29/07/2013.

Ass. Rodolfo Thompson.

Ps. Muitas utopias (e sonhos) tornaram-se verdadeiras realidades no curso da História Universal...

Ps.2 Às 11 h 55, de 25/07/2013, vi e ouvi as mensagens do Papa Francisco, que se encontra na comunidade da Varginha, no Rio de Janeiro, que merecem atenção, reflexão, e prática: -“A violência só pode ser vencida a partir da mudança do coração humano”.

Ps.3 Um Hospital de Tratamento Psiquiátrico, diverso do que comumente se imagina, é um lugar de muita tristeza e compaixão... onde os que cuidam dos Enfermos, diametralmente diferente das internações punitivas ou sancionadoras dos “violentos”, têm o precípuo ofício de não deixar que se agrave, de reduzir ou extinguir a própria dor-sofrimento - já acometida...

Ps.4 Posso, por pensamentos, palavras, e, obras, com todas as minhas limitações [Romanos 7,15-19], ser imitador de Cristo [Mateus 5,48, e Efésios 5,1].

Rodolfo Thompson
Enviado por Rodolfo Thompson em 31/07/2013
Reeditado em 17/08/2013
Código do texto: T4414044
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