LIVRE-ARBÍTRIO X CAUSA E EFEITO O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA E DA JUSTIÇA:

“Se a vida é criação, o filosofo resolveu pensar o “mundo das criações”.

Em um esforço que julgava meramente “metodológico” – e, portanto, hipotético – Nietzsche formulou um “causa única” para tudo que existe, quer seja humano ou não, quer esteja n “cultura ou na “natureza”, quer seja orgânico ou inorgânico:

- Trata-se de “vontade de potencia” [Wille zur Mcht] (ABM, §36), sabendo que as “causas”, na verdade, são de “várias espécies”. Vou-me ater mais a esta noção, pois com ela o filósofo denominou o principio que impulsiona todas as formas de vida, configurador do "pathos essentiales" de tudo que se efetiva.

Tudo é vontade de potência: - “O inorgânico, a vida, e todo vivente desde o protoplasma até o homem, de quem o espírito, seu corpo, cada complexo de instinto e cada instinto singular é expressão da vontade de potência.” (Germer, 1994, p.33).

O “mundo” é composto de forças em ação; forca é vontade e seu ato é poder. Deleuze já bem esclareceu que não se trata da potência como objeto da vontade, mas, sim, como sujeito: - “a potência é quem quer na vontade” e a torna criativa e diferenciadora. (1976, pp. 69-70).

Nietzsche estabeleceu a “vontade” como problema filosófico. Se um bom psicólogo observar a noção de vontade mais atentamente, ele perceberá a complexidade da mesma, que somente como palavra ou estratagema ou hipótese pode ganhar unidade. Não há uma vontade, mas uma multiplicidade de impulsos inconscientes que dirigem os atos, e especiais são as vontades que se apresentam como “afetos de comando”. (GC, §127; ABM, §19) o querer é sempre múltiplo.

A crença na unidade da vontade, aparentada a “Ideia”, platônica, contribui para o desprezo de Schopenhauer pelas individualidades, a ponto de dizer que “a vida do indivíduo é, no fundo, apenas tomada por empréstimo à vida da espécie.” (1997, p.302). Nietzsche, por outro lado, procurou deixar claro que a sua ideia de vontade não implica em “causação”, mas em “transfiguração” de formas de vida, e, como tal, em “nome” ou uma “imagem” sintética para a vida.

A crença na vontade com “causa” é reforçada pelo sentimento do livre-arbítrio. Mas o querer que sentimos como propriedade nossa – fechar os olhos, dar um telefonema, fazer uma aplicação financeira, mentir, dar um golpe qualquer – é um resultado posterior, uma encenação de muitos atos ocultos, “subvontades” e “subalmas” corpóreas (ABM, §19, GC, §127).

Entre o movimento das forças, a sua percepção e a sua imagem consciente, há camadas de “sentidos” que se dispõem conforme a hierarquia das intensidades de forças. As forças são as grandes intérpretes da vida, e todo sentido expressa potência.

A crença no livre-arbítrio remete a outra suposição schopenhauriana, a de que “tudo existente não passa de algo querente” (GC, º127), mesmo que Schopenhauer não fosse um filósofo do livre-arbítrio. Mas Nietzsche foi um ardoroso adversário daqueles que, acreditando na “simplicidade imediaticidade de todo querer ” passaram a ver, por detrás de uma ação, uma vontade, erroneamente separando-se a vontade e seus efeitos; trata-se de um preconceito tão primitivo e arraigado que dele não escaparam os melhores filósofos. (GC, §127;ABM, §19) .

- “Crer na vontade como causa de efeitos é crer em forças magicamente atuantes”, e disso deriva o sentimento de livre-arbítrio como um crença “, não apenas para a suposição de causa e efeito, mas também para a crença de compreender sua relação.” (GC, §127). Não há magias para Nietzsche, há efetividades.

Além de simplificar mos a multiplicidade e a absurdidade contidas em todo “ato” de vontade, nós esquecemos de uma dualidade fundamental, do fato de que “somos ao mesmo tempo a parte que comanda e a que obedece”, que somos criadores e criatura. (ABM, §19). Pela ilusão sintética e simplista do “eu”, vemo-nos ordenando e experimentando consequências dos nossos quereres e dos alheios. Nietzsche vê uma sensação de prazer em ser ordenador, o que alimenta o ego e é potência exclusiva dos seres inteligentes. Mas, se a imensa maioria dos organismos não têm essa sensação de superfície, ainda assim são expressão da ação de forças como “vontade de potência”.

E o mesmo “eu”, em que supostamente unifica-se o querer, será a fonte de uma também suposta legitimação do conhecimento, pois a “certeza imediata” [unmittelbare Gewissheit] no “eu penso” é um dos fundamentos da crença na verdade; daí, quando o povo diz “eu penso e sei que ao menos isso é verdadeiro, real e certo”, o filósofo indaga “mas por que sempre a verdade?”. (ABM, §16)

A crença no “eu” no livre-arbítrio aparece, no esquema nietzschiano, como a mais arraigada superstição dos sentidos, por isso a sua critica é tão importante. Sintetizando, Nietzsche recusou a ideia de uma instancia causal que produz efeitos.

Pelo principio de vontade de potência, a diferença entre a matéria físico-quimica e as representações conscientes torna-se apenas um perspectiva ou uma questão de graus e modos de aparência. A matéria é uma “forma prévia de vida” [Vorform dês Lebens], em que todas as funções orgânicas fundamentais se encontram vinculadas (ABM, §36), enquanto a consciência é uma forma posterior e tardia de vida orgânica, em que os afetos se apresentam mais atenuados e disciplinados.

De fato, não há matéria, tal qual concebida pela nossa consciência: como algo sem “alma” (como se esta existisse), do qual o sujeito pode (e deve) distanciar-se para conhecer; tudo isso é preconceito do nosso pensamento, que talvez tenha suas raízes no estranhamento dos nossos sentidos diante das coisas, até mesmo do nosso próprio corpo. Isso não faz da matéria mera sensação ou representação, conforme pensava Berkeley. Há efetividade, potência e vida tanto no orgânico como no inorgânico.

Entre a matéria e o pensamento vige uma afinidade afetiva básica: ambos são manifestação de relações de forças. Em última instancia, a diferença entre a matéria e consciência – como também entre ser e fenômenos, fatos e ideias, exterior e interior, corpo e alma, cultura e natureza – é uma ilusão, porque tudo contém uma vitalidade decisiva resumida na expressão “vontade de potência”.

Como aparecer de um só princípio todos esses planos opostos podem figurar intercambiados – pelo corpo concebido como estrutura de almas, a cultura como natureza espiritualizada, a exterioridade como subjetividade dos afetos, os fatos com interpretações, o ser como aparência.

O estado de “aparência” das coisas do mundo nada tem a ver com superficialidade, artificialidade ou vazio; as aparências não são meros simulacros. Aqui mostra-se útil a intenção de Rosset em realçar o caráter “real” – talvez fosse mais preciso dizer “efetivo” – do mundo aparente, para Nietzsche: - “É certo que Nietzsche sempre privilegiou superfície, a aparência, a representação: - Mas isto menos à custa da profundidade do real do que à custa da profundidade ilusória e mentirosa ligada pela metafísica tradicional à noção de ‘mundo verdadeiro’”, o qual o filósofo critica “em favor da realidade, e não em favor de uma aparência concebida como testemunho de não se sabe qual inconsistência do mundo”. (2000, p. 58-59)

O que há de importante nessa passagem é o realce da ideia de realidade (efetividade) no pensamento de Nietzsche. Quando o filósofo proclama que o “mundo verdadeiro” tornou-se fábula, disso não decorre que a realidade seja fábula, antes pelo contrário, pois com a abolição do “mundo-verdade” suprime-se também o “mundo das aparências” - (Como o mundo-verdade tornou-se finalmente fábula; Rosset, p. 61-62).

Há a ilusão do mundo verdadeiro e há o aparecer do mundo efetivo, do mundo de necessidade arbitrariamente impostas.

A interpretação da vida com as suas manifestações fenomenais como sendo vontade de potência representa busca de um denominador comum como princípio avaliador da existência. Pode-se considera-la metafísica, desde que se entenda – conforme Muller-Lauter na sua crítica à crítica de Heidegger (1997, p. 70ss) – o que a vontade de potencia não comporta os elementos que constituem na visão de Nietzsche, metafísica tradicional, desde o judaísmo até Kant, ou seja, a crença no supra-sensível, na oposição de valores e no fundamento “ente”, pois a essencialidade da vontade de potencia dissolve-se nas noções de múltiplo e de acontecimento.

Nietzsche quis denunciar a crença nos “valores-absolutos” – o que, para ele, constituía o essencial na “metafísica” – mas o fez em nome do desafio da filosofia criar valores, interpretar, fixar suas condições de domínio.

Como hipótese, Nietzsche preferia o princípio “único” da vontade a outras noções, como por exemplo, a de “causa efeito”. Também é uma estratégia metodológica lançada com vistas à interpretação, nunca à validação explicativa, porque efetivamente o que há são muitas vontades e muitas causas – forças, afetos, paixões e desejos diversos – e a relação lógica entre “causa e efeito” é apenas um preconceito mecanicista.” (NOBRE, Renarde Freire. Perspectivas da Razão – Nietzsche, Weber e o conhecimento. 2004. ed. ARGVMENTVM).

Temos quatro princípios básicos da Bioética: o da não-maleficência, da beneficência, da autonomia e da justiça. Não-maleficência significa não fazer o mal. Mas manter vidas inviáveis com o sofrimento do paciente será maleficência?

- Beneficência é fazer o bem. O médico deve empregar os meios possíveis. Mas cabe indagar: é benemerente a atitude do médico de manter a vida pela vida, embora sabendo-a inviável, inda que vendo a insurportabilidade da dor do paciente?

O princípio da autonomia compreende-se como o direito do paciente no uso pleno de sua razão – ou de seus responsáveis, quando faltara consciência – de estabelecer os limites em que gostaria de ver respeitada sua vontade em situações fronteiriças. Assim, cabe questionar, existe o direito do indivíduo de antecipadamente dizer: - “não quero que tentem nada”?

Outra hipótese diz com a validade do documento público elaborado por alguém plenamente capaz solicitando que nada seja levado a efeito, em caso de doença incurável, em particular as que desconectam do mundo, ou quando o prolongar a vida seja às custas de intenso sofrimento.

O mais delicado dos princípios é o da justiça, em face do qual e questiona: até que ponto é legal, e não apenas legítimo, suspender os suportes de vida? - Há uma faceta que sempre é mistificada e escondida e que se encontra subjacente em motivações de ordem econômica. A morte passou a ser asséptica dentro do silencio barulhento das CTIs. A consciência de todos é aplacada; a consciência dos que lá trabalham, pois tudo fizeram; a consciência dos familiares, porque tudo proporcionaram.

Esse fato, no entanto, leva a que os gastos se tornem cada vez mais assustadores. Na luta entre verbas restritas e gastos incompreensíveis, um novo termo, um novo eufemismo foi criado: o não-investimento.

Indiscutível que a única conclusão a que se pode chegar é de que vida, sendo um bem contido em si mesmo, certamente não pode nem deve ter rótulos de preço. A justiça não pode ser contabilista.

Pergunta-se: - Podem os médicos abreviar a vida? - Ainda que a resposta seja “não”, permanece a pergunta sobre a necessidade de pensar sobre esses fatos. A resposta, nesse caso, talvez seja “sim”.

Não existem verdades absolutas, são necessárias reativações. Do poder imperial dos médicos, juízes do destino de seus pacientes, imbuídos do principio da benemerência, passou-se ao relacionamento horizontal, em que as pessoas podem decidir sobre seus destinos, na proposta do diálogo, da informação. A democracia do relacionamento consiste na assunção da cidadania plena, mesmo na hora da dor e da doença.

Essa é a reflexão a que nos transporta a grande mudança conceitual. Ainda que a ética médica se torne mais permissiva, muitas vezes há a necessidade de se recorrer à Justiça na busca de respostas a indagações similares.

É bom sempre recordar o conceito da Organização Mundial de Saúde (OMS): - “Saúde é o completo estado de bem-estar físico, psíquico e social”. E esse bem-estar, se conseguindo no coletivo, seria a volta do paraíso na terra, utopia desejada, mas raras vezes alcançada. Em nível individual, quando acontece, costuma levar o nome simples e globalizante de felicidade.”