Crime: definição e dúvida.

Um breve artigo sobre o conceito de crime, sua origem

e alguns de seus sucedâneos

Castro Alves exclamava em seus versos: "Crime! Quem te falou desta palavra estúpida?" O presente artigo discute a origem do conceito de crime, as diversas definições que obteve entre os mais ilustres doutrinadores.(in Antologia Poética, Editora Lisboa, 1960, Lisboa, Portugal).

Tobias Barreto, por exemplo, repeliu o conceito de crime como "fato natural, inevitável e incorrigível" pois o "Direito, máxime o Direito Penal, é arte de mudar o rumo das índoles e o curso dos caracteres, que a educação não pode amoldar".Só aí percebi a estreita relação entre a educação e o direito. Quase a mesma existente entre crime e castigo.

É de Sílvio Romero a referência: "Os crimes são brotos espontâneos do meio social. Suas conclusões sobre a criminalidade basearam-se no estudo dos" tipos étnicos, dos caracteres das coletividades, da alma dos grupos, das índoles individuais moldadas no cadinho dos vícios ambientais, dos vincos deixados nos espíritos pela atmosfera parcial.

Clóvis Beviláqua enunciava: "Se existe noção de crime é porque existe o Direito".

Já Raimundo Nina Rodrigues, o apóstolo da antropologia criminal no novo mundo, foi o primeiro a revelar a influência dos fatores raciais na responsabilidade penal.Talvez seguindo as sombrias pegadas de Lombroso.

Afrânio Peixoto anunciava: "o que seria da noção biológica de criminoso sem a noção definitiva de crime?".

A Joana D'Arc foi queimada viva com a colaboração da Igreja por crime de heresia, mais tarde, é posta no altar pelas virtudes da fé. Bastaram para a mudança alguns séculos. Mudou o crime ou mudou a mentalidade?

Tiradentes, condenado por um crime nefando, é enforcado, esquartejado, dispersos seus membros pelas estradas de Minas. Passado algum tempo (não muitos na verdade), a mesma ação reprovável, aqui mesmo é capaz de elevá-lo à condição de ídolo, de mártir tendo seu monumento plantado bem em frente à Câmara dos Deputados.

Afrânio Peixoto ainda pontifica que a lei penal se dirige ao aperfeiçoamento humano. Os chamados crimes passionais enfatiza o ilustre doutrinador, são o delito bárbaro das sociedades primitivas.(in Novo Direito penal - introdução -, Roberto Lyra, 1980, Forense, RJ).

Joaquim Pimenta (de quem sou fã inveterada) com sua lapidar inteligência analisou que a sociedade é a grande retorta onde se modelam os caracteres humanos, o grande artífice do todos os santos e bandidos da história, de um Francisco de Assis e de um César Bórgia.(in Enciclopédia de Cultura Sociologia e Ciências Correlatas, Joaquim Pimenta, Livraria Freitas Bastos, 1 ed., 1955, GB).

Ë lancinante afirmava: "Os genocídios sempre existiram, mas só foram punidos depois da guerra de 1939-1945 e questionava intrigado: Ë o massacre de povos inocentes e indefesos na própria guerra?". .(in Enciclopédia de Cultura, Sociologia e Ciências Correlatas Joaquim Pimenta, Livraria Freitas Bastos, 1a. ed., 1955, GB).

É uma grande peripécia para a autora traçar umas poucas linhas sobre o direito penal. Mas sendo irresistível o desafio, tentei mui modestamente, traçar uma breve análise sobre a etiologia do crime, de seu conceito e alguns de seus sucedâneos. Talvez movida pela atual e badalada tendência de descriminalização quanto ao usuário de tóxicos, o que torna necessário meditar profundamente o que vem a ser crime. E para que serve tal conceito.

De antemão, rogo clemência e perdão aos meus colegas penalistas e ao grande número de simpatizantes (acadêmicos ou não) de tal relevante ramo do direito público pela ousadia.

Outrossim, deixo patente a minha opinião desfavorável à descriminalização irresponsável, pois poderá ser muito perigoso e, ainda prever que a substituição da pena pelo tratamento médico do viciado pode vir a ser uma medida que corre o risco de patentear uma nova versão de impunidade.

Sociologicamente, crime é a infração de um costume ou de uma lei, contra a qual reage a sociedade, aplicando uma pena ao infrator.

Nos povos primitivos, como no antigo direito grego, romano, germânico, o conceito de crime aparece sob a dupla forma de reparação de bens materiais (compositio, whergeld) que satisfaça a vítima ou aos seus parentes e de vingança individual, vai encontrar na lei de talião um limite ou senso de medida que, outra não é senão o primeiro e rudimentar esboço da idéia de justiça, qual seja, olho por olho, o dente por dente, do Velho Testamento.

Não há, no Direito Penal brasileiro, diversamente do que ocorre em outros sistemas legislativos, distinção entre crime e delito.Apesar de que no nosso velhusco Código Criminal de 1830 haver em seu art. 2º §1º in verbis: "Julgar-se-á crime ou delito toda ação ou missão contrárias às leis penais".

Crime e delito são fatos puníveis tanto quanto é a contravenção que constituem duas espécies distintas de ilícito penal.

Se a infração, ao invés de ser um ofensa ao indivíduo, atinge diretamente a comunidade, sobretudo se for um ato considerado de irreverência aos seus ritos, aos seus totens, aos seus deuses, a reação será a morte do culpado ou o represália sangrenta do grupo ofendido contra o grupo ofensor.

O que caracteriza o crime não é o ato em si, mas a reação que ele provoca e o que o torna por isso mesmo anti-social.

Tal conceito não é imutável, absoluto sendo mesmo relativo e, por isso é que tem sido discutidas e inaceitáveis as definições de crime.

Todas partindo de um pressuposto lógico ou metafísico, invariável, entre as quais a de Garófalo que o dá como ofensa aos sentimentos de "piedade e probidade" ou, ao "senso moral" que é a de Morasso ou a violação de um direito ou dever ", de Gabriel Tarde, estas e, outras mais citadas e criticadas por Hamon, que se propôs a substituí-las, definindo o crime:" Todo ato consciente que lesa a liberdade de proceder de um indivíduo da mesma espécie do autor do ato.(A. Hamon, Determinismo e responsabilidade, pág. 76).

No aspecto material, crime é um desvalor da vida social.É modalidade de ação que apresenta intensa reprovabilidade social.

Heleno Cláudio Fragoso define crime como a ação ou omissão que, a juízo do legislador, contrasta violentamente com valores ou interesses do corpo social, de modo a exigir seja proibida sob ameaça de pena, ou que, se considera afastável somente através da sanção penal.(in Lições de Direito Penal, 10 ed. Revista pro Fernando Fragoso, Forense, RJ. 1985).

Foi a doutrina alemã a que melhor sintetizou as características do delito, ou seja, crime é ação ou omissão típica, antijurídica e culpável (com as bênçãos das teorias de Beling e Binding).

Típica por depende do tipo penal já previamente estipulado em lei, descrevendo minuciosamente a conduta incriminada. Antijurídica por contrariar frontalmente o Direito e, a ordem jurídica vigente que lhe dá dinâmica e concisão, por não ocorrer causa de justificação ou exclusão da antijuridicidade. E culpável por capaz de ser imputada a pessoa que cometeu o comportamento juridicamente reprovável.

Crime é o conjunto dos pressupostos da pena. Posto que o crime exige que haja a condição de punibilidade.Pelo conceito formal, crime é toda ação ou omissão proibida pela lei, sob ameaça de pena. Eis a grande relação entre crime e castigo.

Crime é essencialmente um conceito jurídico, enquadrando-se na teoria geral do direito, sua essência reside em sua juridicidade sendo fato jurídico. Os fatos jurídicos dividem-se em fatos naturais e voluntários (ou atos jurídicos). Crime é ato ilícito penal.

A. L.Machado Neto em primorosa obra analisa os critérios de distinção entre ilícito civil do ilícito penal. No ilícito civil ocorre uma violação do direito subjetivo, enquanto o ilícito penal seria uma violação do direito objetivo cita Cesarino Sforza para quem o ilícito civil caracteriza-se pelo inadimplemento de uma obrigação assumida voluntariamente, enquanto que o ilícito penal seria a inobservância de uma obrigação necessária e legal.

Outra diferença é quanto à responsabilidade decorrente de um ilícito civil e de um ilícito penal. Quem pratica um ilícito civil passa a ter responsabilidade patrimonial, inclusive transferível aos herdeiros.

Já quem pratica um ilícito penal passa a ter responsabilidade pessoal, através o agente, e não mais que ele, responderá pela pena cabível à espécie. A responsabilidade pessoal do ilícito pena é intransferível (CF/88 art.5º inciso XLV).

É certo que os sentimentos de piedade e probidade podem ser padrões de ética nos povos de elevada cultura moral, como não se pode dizer que deles sejam destituídos os povos primitivos ou selvagens; mas tais sentimentos inexistem naqueles em que o infanticídio e o parricídio são atos comuns e não provocam reações, sendo até um direito, o primeiro, dos pais sobre os filhos, e o segundo, dos filhos sobre os pais, quando estes, por velhice ou doença se tornam inválidos.

Também o senso moral como idéia de direito ou dever, quais os compreendemos hoje, são expoentes de um grau avançado de civilização onde o homicídio e o roubo, são considerados como dois delitos mais graves.

Depois que no passado distante fora o de sacrilégio ou desrespeito ao totem, ao deus, ou de irreverência a qualquer objeto sagrado, são crimes porque causam dano à vítima, na sua pessoa e nos seus bens; dano material e o não (moral); sem noção de culpabilidade ou de responsabilidade subjetiva, por um ato consciente, esse mesmo ato que na definição de Hamon também é inaceitável, pressupõe um estado de liberdade individual que não existe ou é mui precário nos povos primitivos ou de civilização arcaica.

Porque como assegura Littrè a guisa do direito penal dos antigos povos ou em povos mui diferentes, de épocas distantes, porém em um estado social análogo, o que chamamos de crime é considerado como um caso de compensação, reparação, de indenização.Avalia-se menos o mal possível, o dano causado e o ofensor fornece então compensação.Em síntese, a idéia de justiça punitiva ainda não existe, só existe a idéia de uma justiça indenizante.(in Homem de um Olho só, Joaquim Pimenta, Livraria Freitas Bastos, 1960).

Por força do sentimento religioso se converteu o castigo em pena, por atos sacrílegos pelos demais delitos de natureza profana. Aliás, das inúmeras justificativas pesquisadas de pena se extraem mais dúvidas do que certezas.(in Questões Criminais, Damásio Evangelista de Jesus, Editora Saraiva, 2a. ed., 1981).

Há ainda a considerar que em relação ao homicídio e ao roubo que, quando praticados fora do clã ou da tribo, ou em outro grupo social não ligados àqueles por parentesco totêmico ou consangüíneos, deixam de ser crimes, por ausência de reação do agregado a que pertence o autor, senão o forem atos meritórios, em se tratando de grupos inimigos ou rivais.

Também se verifica nas civilizações mais florescentes, onde os assassinatos em massa, nos campos de batalha, são feitos tanto mais heróicos quanto mais monstruosos na sua obra de exterminação.

Como não é crime os atos praticados por supercivilizados que massacram e apossam-se das terras de tribos e nações indefesas, sendo encarado como direito de conquista ou como um corolário do colonialismo (hoje também sob a alcunha de globalização).

Aliás, será conceitualmente crime, guerrear de maneira hi-tech com povos imersos em primitivismo e devastidão? E o que dizer quanto aos crimes cometidos via internet?

Em verdade, antropologicamente crime é qualquer afronta a uma crença dominante como, por exemplo, crime com o desrespeito ao totem provocou grandes males e, foi tal crença que na Idade Média, atirou ao calabouço inúmeras pessoas e os submeteu a horríveis torturas (lançados à fogueira, jogado em caldeirões de azeite quente) na Santa Inquisição, pelo crime de heresia.

Entre nós, o Pe. Antônio Vieira foi alvo da Inquisição tendo sido sentenciado pelo Santo ofício em 23.09.1667 sendo privado de pregar e recluso no colégio ou casa de sua religião. A extensa sentença levou duas horas e quinze minutos para ser lida, a pena mais tarde foi comutada para reclusão em casa do noviciado da Cotovia de Lisboa e, depois dispensado em 15.08.1669 partindo de Lisboa para Roma com licença do Príncipe Regente D. Pedro I. (in De Profecia e Inquisição, Pe. Antônio Vieira, Coleção Brasil500 anos, Brasília, 1998).

Aliás, heresia etimologicamente é vocábulo advindo do grego e significa divergência e era considerada como sendo o maior crime praticado entre os povos cristãos, deixou de ser delito, para ser um dito, e dos que elevam mais alto o princípio da dignidade humana, que é a liberdade de consciência.

Crime com os contornos contemporâneos ganhou uma acepção muito mais sociológica do que jurídica, e os parâmetros para sua existência não se prende tão-somente ao direito positivo, mas sim as garantias e liberdades fundamentais à dignidade humana.

O próprio criminoso que já fora determinado biologicamente também deixou de estar sob uma ótica preconceituosa para se encontrar como um alvo de ressocialização e resgate sócio-econômico e cultural. E a pena antes somente uma vingança institucionalizada passa a ser uma medida de reeducação.

De qualquer maneira, é imprescindível a classificação de certas condutas como crime, ou qualquer outra espécie de ilícito penal, para avivar a responsabilidade pessoal e intrínseca de cada um na sobrevivência da sociedade.

GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 02/04/2007
Reeditado em 08/09/2013
Código do texto: T435226
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