O nascimento da soberania nacional

A existência de uma nação é um plebiscito contínuo e diário, como a existência do indivíduo é uma afirmação perpétua da vida.

A primeira teoria sobre a soberania1 do Estado na acepção moderna, não está sediada em Maquiavel e sim, na obra de “Os seis livros da República”de Jean Bodin publicada em 1576.

A república, ou seja, a coisa pública (res publica) era um “reto” governo de várias famílias, e daquilo que lhes é comum, com poder soberano. O reto governo não se confunde com Estado bem ordenado como qualquer corja de ladrões e piratas.

A alusão às “ famílias” é, no fundo, uma referência às Políticas de Aristóteles onde há a apontada origem da cidade pela reunião de várias famílias.

A expressão “poder soberano” é uma novidade introduzida por Bodin2, sendo a soberania em poder absoluto e perpétuo da república (cap. 8, Livro I “Os seus livros da República, de Bodin).

É fácil deduzir por tal definição que Bodin não é adepto da teoria do contrato social3, e se declara convencido de que as “repúblicas” reais só puderam ter sua origem primeira na força e na violência.

Bodin também não teria endossado nenhum enfraquecimento ou limitação dos poderes do Estado centralizador. Foi o primeiro seguidor do que mais tarde seria chamado de jacobinismo francês, uma tendência nacional-republicana só defendida hoje na França por Chevènement e Pasqua.

O príncipe4 não seria assim a encarnação da soberania estatal e nem estaria acima do bem e do mal. Bodin jurista que foi, enunciava que “o príncipe soberano é comprometido pelos contratos por ele pactuados, seja com seus súditos, seja com o estrangeiro: pois já que ele representa para os súditos a garantia das convenções e obrigações mútuas que têm uns com os outros, sendo ele devedor de justiça por sua condição”.

O príncipe só se tornará livre de toda obrigação, um século depois com Thomas Hobbes em sua obra “Elementos of Law” (1640) aprovara a teoria da soberania proposta por Bodin, toda sua obra parece ter sido feita apenas para justificar a obrigação de obedecer ao príncipe. Submeter-se-á lei seja o que for que ela diga, e ao príncipe, seja quem for.

A partir da existência da república, a menor violação ou revolta contra a autoridade é uma manifesta transgressão as “leis naturais”.

Hobbes resume em pontificar doutrinariamente segundo o qual o contrato social obrigas aos súditos, e não ao soberano. O soberano não inexpugnável permanece diante de seus súditos em estado de natureza, e goza de poder absoluto.

Trezentos anos depois é repetida tal premissa por Carl Schmitt. Em texto célebre de 1922, chamado“Teologia Política”, que define in verbis: “ É soberano aquele que decide sobre situação excepcional”. Equivale a propor para o Estado, a fonte de todo direito e de toda a lei, o lugar de Deus5.

Idéia desagradável mas que na verdade é consedânea do modelo apregoado pelo Leviatã. Afirma-se durante certo período de 1550 a 1650 que a soberania do Estado equivaleria a sua onipotência6, e ainda se consagrava a expressão política “nação unificada”.

Lembrando que conceitualmente nação corresponde a uma comunidade de seres humanos herdeiros de uma cultura, de uma história compartilhadas, cuja vontade coletiva, encarregado de aplicar essas leis, respeitar essas fronteiras.

O conceito de nação possui ressonâncias afetivas e sentimentais7 e tendem em geral, dissolver seu conteúdo racional. O triunfo do Estado-nação corresponde ao resultado de um processo lógico, ou mesmo ao desenvolvimento natural de uma certa forma de civilização.

A gênese da questão nacional é tão polêmica e velha quanto a problemática do Estado8 e, dista de ser logo resolvida. Na verdade, o vocábulo“nação” só apareceu nas línguas européias nos séculos XII e XIII quando já existiam Estados constituídos capazes de se afirmar como nações determinadas.

Não houve (pelo menos etimologicamente) nenhuma nação antes do Estado, e nos parece que a nação fora uma invenção deste. Van Gennep propõe em seu “Tratado comparativo das nacionalidades” em 1922 utilizar “nacionalidade” no lugar de “nação” para os períodos correspondentes à pré-história do Estado moderno e reserva-se o uso de “nação” como sinonímia de Estado-nação a partir do Renascimento.

Para o antropólogo Van Gennep nacionalidade é um grupo de homens que partilham de certos traços culturais comuns que são anteriores ao Estado e não precisam dele para existir.

A posse de uma língua comum9, poderoso fator de coesão social, é um dos fundamentos mais fortes da nacionalidade.

Já é secundário o apego a uma certa região geográfica e a prova disto, é a vida nômade de certas nacionalidades que não possuem território próprio. Seu território é pois sua intrínseca identidade cultural é um poderoso amálgama histórico, social e político.

Foi com as cidades-gregas que surgiu o “Estado-nação”, preocupado em identificar-se com uma nacionalidade. De sorte que um ateniense era inconfundível, por exemplo, como um lace demoníaco, e este com tebano.

Seu patriotismo mas se assemelhava a um bairrismo. Nacionalismo10, vocábulo recente designa uma atitude política, ideológica que os gregos já conheciam e foi se desenvolvendo pelo anos afora...

Com o renascimento, a dinâmica nacionalista movimentada por clérigos e humanistas entrou em aceleração frenética. Cada Estado-nação devia impor-se em relação aos vizinhos, mas também certos povos disputavam a herança do Império Romano (translatio imperii) o que levaram alguns, a inventar as mais fantasiosas genealogias para melhor defenderem a sua causa.

Durante os séculos XVII e XVIII ocorre uma multiplicação das guerras e conflitos intra-europeus que tinha como mote principal a redefinição das fronteiras nacionais. E desde de então, o nacionalismo e o belicismo caminharam de mãos dadas...

Apesar das proféticas advertências de Nietzsche o último pensador cosmopolita, os nacionalismos acabaram provocando, no século XX, duas grandes guerras mundiais que levariam o continente europeu quase a um suicídio coletivo.

A primeira revolução anticolonial, ou seja, a Revolução Americana mostrara que o nacionalismo podia ser exportado para fora da Europa. Apesar disto, a expansão colonialista na África e na Ásia acarretou um crescimento universal das ideologias nacionalistas com todas as tentações belicosas que lhe são peculiares.

E há ainda o temível nacionalismo, a partir do fim da guerra fria face as armas nucleares capaz de uma fatal destruição do planeta inteiro.

É de se ressaltar o caráter artificial do conceito de nação. É notável a ambigüidade do princípio dos direitos dos povos de disporem de si mesmos. E ainda os capciosos subprodutos ideológicos dos nacionalismos modernos.

O conceito de nacionalidade editado por Van Gennep corresponde ao que mormente chamamos de etnia ou de cultura. Antropologicamente as nacionalidades são realidades objetivas e sua diversidade, é um fato que faz concluir que todo homem é um animal “desnaturado”.

Assim, as nações são artefatos humanos criados sob certas perspectivas históricas, políticas, sociais e, até mesmo religiosas.

É questionável a superioridade do Estado-nação até porque os homens passaram muito tempo sem ela (e bem). Em suma, o Estado-Nação não é fruto de uma necessidade histórica, geográfica mas de uma pura contingência. Não existe nação cuja existência seja, em si mesma, mais justificável do que a nação vizinha.

As nações são, sem exceção, todas instituições não naturais, daí disporem paradoxalmente do direito natural a disporem de si mesmas.

E tal princípio é internacionalmente reconhecido desde da Declaração de Independência Americana em 1776, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 (que estipula em seu artigo 2 que a “resistência à opressão” é um direito natural e imprescritível do homem), assim como o preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovado em 1948 pela Assembléia Geral das Nações Unidas.

Os direitos humanos básicos são, no dizer de Rawls, politicamente neutros e se desenham no limite absoluto para a soberania interna dos Estados.

É um direito reconhecido formalmente por uma instituição social ou política e só garantido no contexto e diante da existência do Estado.

Desta forma os artigos 2 e 4 da Declaração de 1789 enunciam uma dolorosa ambigüidade sendo tal direito natural dos povos a disporem de si mesmos, é parte dos grandes princípios fundamentais que regem as nacionalidades.

Todavia, ao mesmo tempo, a idéia segundo a qual nenhum direito natural poderia ser ilimitado serve par justificar a atitude repressiva da maioria dos Estados contemporâneos.

Assim nos parece que o conceito de nação ora é reconhecido, ora é negado, como para os palestinos, estão quase conseguindo obter um Estado, enquanto que os bascos possuem sua pretensão recusada.

A silenciosa questão da nação e do direito de autodeterminação dos povos constitui apenas uma extensão das nacionalidades (ou seja, do direito de assinar ou não o pacto social) que toda democracia deve reconhecer para os indivíduos que a compõem.

A solução não menos clara aos Estados fracos ou pequenos seria a cooperação ao invés de guerrearem em busca da sobrevivência ou de afirmação da soberania nacional.

O nacionalismo no século XX trouxe trágicos excessos, vide recentemente o episódio de 11 de setembro com a derrubada das torres de N. York.

Evidentemente na crença da seleção natural empregada por Darwin, bem como nas razões étnicas e biológicas que embalam a tese naturalista para justificarem os genocídios cometidos em nosso século.

E os crimes contra a humanidade são capazes de ser, a partir dos processos de Nuremberg (1945) objetos de violenta repressão penal mas que não foram condenados de forma séria e severa. Bem como a prática de terrorismo internacional ainda espera por uma punição diplomática internacional rigorosa.

Assim como o racismo e o anti-semitismo que são punidos em lei, alguns países adotam discurso naturalista e organicista, na qual tais preconceitos se revestem de um discurso lícito.

Apesar dos argumentos científicos e da falsidade absoluta da idéia de uma nacionalidade poderia ser definida pro características genéticas superiores, e essa idéia da opinião pública que precisa ser revisada regularmente.

Mas tais preconceitos estão associados ao próprio nacionalismo que repousa na vontade ascender do status “fato”ao status “valor”. Mas a nacionalidade como fato supõe forçosamente a xenofobia, o ódio ao estrangeiro, apesar de admitir a eventual mestiçagem.

Ao revés quando a nacionalidade se torna um “valor” ou uma norma, onde o estrangeiro é freqüentemente excluído e a mestiçagem proibida.

Portanto o desvio racista11 de alguns nacionalismos modernos não são um lamentável acidente, há certa necessidade desse desvio em todo tipo de nacionalismo.

Foram os povos modernos que séculos depois, se encarregaram de levar esse racismo teórico até as últimas conseqüências12.

É no nacionalismo das cidades gregas e no seu pseudo-racionalismo que se encontram os princípios básicos que posteriormente serviriam para justificar essas conseqüências.

Nas palavras sábias de Christian Delacampagne será preciso que os Estados-nações do mundo contemporâneo compreendam que é de seu interesse trabalhar em favor da paz. Trabalham para superar portanto, o próprio Estado-nação.

A existência de uma nação é um plebiscito contínuo e diário, como a existência do indivíduo é uma afirmação perpétua da vida. Daí, a imprescindibilidade da paz.

Renan profetizava: “O homem não é escravo nem de sua raça, nem de sua língua, nem de sua religião, nem do curso dos rios, nem da direção das cadeias de montanhas. Uma grande agregação de homens, sã de espírito e cálida de coração, cria uma consciência moral que se chama a nação.”

Tomara que em 2003 a retórica da paz consiga transcender as palavras e os discursos e, realmente convencer a maioria dos povos, particularmente aos EUA e a Bush para que desestimulem as guerras inúteis, os genocídios bárbaros e deliberados capazes de promover a crescente desumanização do planeta.

Adendos

1. A soberania é conceito histórico e relativo, ainda que considerado como elemento essencial do Estado conforme Jellinek que se preocupa com a soberania sob prisma do direito internacional como um dado essencial constitutivo do Estado.

Externamente, a soberania é apenas qualidade do poder, que a organização estatal poderá ostentar ou deixar de ostentar. A soberania interna fixa a noção de predomínio que o ordenamento estatal exerce um certo território e numa determinada população sobre os demais ordenamentos sociais.

Aparece então o Estado como portador de uma vontade suprema e soberania - a suprema potestas. A dificuldade de conciliar a noção de soberania do Estado com a ordem internacional, ademais internamente a negação da soberania do Estado ou do próprio Estado ocorre também pelas teorias políticas do anarquismo e do marxismo.

2. A França bem ilustra o drama que paira sobre o conceito de soberania, aliás, a expressão souveraineté (soberania) é francesa e, seu grande teórico foi Bodin que a transformou em elemento inseparável da acepção do Estado (na forma republicana).

3. Parte Bodin da polêmica assertiva de que não há Estado sem soberania, os publicistas passam a tratá-la como categoria absoluta, sendo um dogma do direito público.

A soberania pela corrente publicista dominante é um dado histórico e representa apenas determinada qualidade do poder do estado. A soberania é elemento relativo não essencial nas palavras de Jellinek é “capacidade do Estado a uma autovinculação e autodeterminação jurídica exclusiva”.

Corrigiu Jellinek o excesso cometido na concepção de Bodin. A soberania é una, indivisível, irrevogável e perpétua. É um poder supremo com que Bodin fez da soberania no século XVII um elemento essencial do Estado.

Distinção existe entre a soberania do Estado e a soberania no Estado.

A primeira, diz respeito por conseqüência a questão dos elementos e característicos do poder estatal que o distinguem, dos demais poderes e instituições sociais.

A segunda formaria ao revés, outra categoria de problemas de relevante importância, concentrados sumariamente na determinação da autoridade suprema no interior do Estado, na verificação hierarquia dos órgãos governativos da comunidade política e sobretudo na justificação da autoridade conferida ao sujeito ou titular do poder supremo.

4. O problema de saber quem é o sujeito do direito de soberania é por demais complexa e ocorre desde as origens históricas do Estado. Principalmente quando a pessoa do Estado e dos governantes coincidiam, e perspectiva ainda hoje, ora por corresponder a determinada propriedade , ora a posição jurídica de certas pessoas no Estado.

Legitimar a soberania na pessoa de seu titular suscita várias doutrinas a começar pelos que sustentam o direito divino dos reis, indo até aos que sustentam assentar no povo a sede da soberania. Dividem-se pois em dois grupos: doutrinas teocráticas e as democráticas.

5. As doutrinas teocráticas possuem uma base em comum que é a ordem divina e que emprestam ao poder toda legitimidade e superioridade.

Já as democráticas assentam no povo a fonte incontroversa de todo o poder político havendo surgido nas obras dos teólogos católicos medievais.

6. A doutrina da investidura divina se traduz em suma numa variante do pensamento teocrático não somente entende o poder como instituído por Deus para a conservação da sociedade, senão que faz da escolha deste ou daquele governante, neste ou naquele país, um ato de vontade divina.

7. A soberania popular segundo Rousseau e seus discípulos, é tão-somente a soma das distintas frações de soberania, que pertencem como atributo a cada indivíduo, o qual, membro da comunidade estatal e detentor dessa parcela do poder soberano fragmentado participa ativamente na escolha dos governantes.

8. Também o conceito de soberania passou dentro da ciência política uma séria revisão havendo alguns pensadores que acreditam tratar-se de conceito já em franca decadência. A soberania contemporânea é mais um vínculo de consciência do que propriedade um vínculo de nacionalidade.

9. Duverger exprime que a soberania atende mais para a base de convicções políticas do que por ordem pátria. Outro motivo enfraquecedor do princípio da soberania é a necessidade de criar uma ordem internacional, vindo tal ordem a ter um primado sobre a ordem nacional.

10. Conforme aponta Sestan o conceito de nação na Ciência política tem caráter fugaz, plurisignificante e até equívoco. Hauriou traduz nação como: “ um grupo humano no qual os indivíduos se sentem mutuamente unidos, por laços tanto materiais como espirituais, bem como conscientes daquilo que os distingue dos indivíduos componentes de outros grupos nacionais”.

11. A tese racista para definição de nação tem sido com toda razão violentamente impugnada por inúmeros doutrinadores que entendem não haver raça capaz de definir nenhum povo.

Ademais, não existe pureza racial em nenhuma parte. Renan afirmou categórico: “ A verdade é que não há raça pura e assentar a política na análise etnográfica é monta-la sobre uma quimera.”

O conceito voluntarístico de nação resulta da intervenção convergente daqueles fatores morais, culturais, psicológicos, frisados sistematicamente por Manci e Renan.

12. Hauriou apresentou a tal conceito como nação-solidariedade, de um voulour vivre collectif, isto é, um vontade de viver coletivamente. É, portanto, um grupo fechado.

A ideologia nacional-socialista fazia de povo, nação e raça uma totalidade viva, exprimindo uma unidade bioespirutal do sangue e do solo.

O volkstum , ou seja, povo-raça resumia a nação que se identificava pelo sangue e pelo solo, sendo o Fueher a personificação da vontade nacional (onde o lema dos adeptos de Hitler era : o fueher tem sempre razão).

GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 31/03/2007
Código do texto: T432977
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