O passado jurídico sempre traz à baila a reflexão sobre as relações entre direito, história e filosofia. As narrativas sobre o julgamento de Sócrates é menos que realmente do que teria acontecido e, muitas vezes, o narrador sofreu influências não só do meio social em que viveu mas sobretudo do relativismo epistemológico.


 
Pois o leitor com os olhos de hoje ousa fazer a leitura do mundo antigo e não está livre de sua época conforme já advertiu Adam Schaff. A filosofia da história permite questionamentos e persegue o passado enquanto a ação se perdeu no tempo.


 
E o historiador envolto em seu estilo próprio transita por entre diversas interpretações, seguindo a narrativa os caminhos da imaginação.


 
Entender o outro, a alteridade e a objetividade dos fatos que são desafios até hoje enfrentados. Percebemos que o tempo presenta inventa o passado, justificando-se. E na miragem helênica identificamos contradições no julgamento de Sócrates (que antes de ser condenado pelos homens de seu tempo, fora condenado pela sua própria crença em sua consciência).


 
Ao enfocar a biografia de Sócrates mergulhamos em contradições. Como homem, Sócrates fora reverenciado como um não conformista e que se rebelara contra a sociedade aberta, sendo admirador de sociedades fechadas. Como ateniense[1] desprezava a democracia e elogiava Esparta.


 
Sócrates fora filho do escultor Sofroniscos e da parteira Fenereta, era cidadão diligente, combateu na guerra, tendo salvado a vida Alcibíades. Casou-se com Xantipa[2] a quem se apontava uma reputação de rabugenta e mal humorada e, por contra, das intempéries da esposa, passava muitas horas na rua. Proseava, perguntava e desconcertava.


 
O método dialético[3] de Sócrates era a maiêutica ou “parto de ideias” onde o interlocutor descobre a verdade, parindo o conhecimento. Uma das características pessoais era o fato de ser irreverente tendo suscitado ódios e invejas que culminaram na acusação de impiedade.


 
A morte de Sócrates por ter sido condenado a ingerir cicuta[4] é um traço definidor na história da filosofia, provocando inúmeras reações eloquentes.


 
Sócrates vivia descalço e sem camisa, destituído de bens e de categoria social, retratando um professor inconformado cujo principal problema resumia-se em delimitar o próprio objeto ensinado.


 
A própria didática da maiêutica[5] nos remete não só ao autoconhecimento mas sobretudo a construção da aprendizagem instigada por perguntas e respostas sucessivas.


 
Del Vecchio aduziu: “Discutia Sócrates de modo peculiar, multiplicando as perguntas e a elas dando respostas de maravilhosa e contundente simplicidade. Ao contrário dos sofistas, que tudo afirmavam saber, declarava ele nada saber. Molestava-os com a sua ironia, e confundia-os, interrogando-os (ironia-pergunta, interrogação) sobre questões aparentemente simples, mas no fundo, muito difíceis. Deste modo, constrangia-os, indiretamente, a darem-lhe razão.” (DEL VECCHIO, Giorgio, in Lições de Filosofia do Direito).


 
Sócrates fora acusado[6] por Meleto, Aniton e Lícon de não reconhecer os deuses da cidade, e introduzir novas divindades e de corromper a juventude. Ação intentada contra Sócrates era um graphai, asebeias, ação de impiedade.


 
Qualquer manifestação de dúvida ou indiferença a respeito da religião da cidade era considerada atentado à unidade da comunidade sendo passível de uma ação pública.


 
Incumbiu-se Sócrates da própria defesa[7], e finda esta Anito e Lícon se apresentaram para ajudar Meleto cujos argumentos, Sócrates refutou. O quorum do tribunal que julgou Sócrates foi em quinhentos e um juízes, onde duzentos e oitenta votaram pela condenação enquanto somente duzentos e vinte e um votaram pela absolvição.


 
Mas existem pelo menos três versões de Sócrates, se é que existiu um Sócrates histórico. A versão de Aristófanes, a de Xenofonte e a de Platão.


 
Para Aristófanes, Sócrates era uma pessoa cômica, um pensador distante da realidade. Sendo amante da vida que enfrentou com temperança, pagou Sócrates com a vida o preço de sua fama. E, pela eternidade prosseguiu a glória embora maculada por Aristófanes que bem o retratou, em sua pela “As nuvens”.


 
O comediante também criticou os sofistas, tomando Sócrates por um deles. E suscitou uma questão ainda recorrente: tem o orador o dever dizer a verdade?


 
Aristófanes[8] zombou de Sócrates quando narrou: “Quando Sócrates observava a lua para estudar o curso e as evoluções dela, no momento em que ele olhava de boca aberta para o céu, do alto do teto uma lagartixa noturna, dessas pintadas, defecou na boca dele.” (In Aristófanes, As nuvens).


 
Em outra narrativa, Sócrates é visto pendurado numa cesta, observando os ares e contemplando o sol. E justificara estar pendurado pela necessidade de elevar seu espírito e elevar seu pensamento sutil com o ar igualmente sutil.


 
“Se eu tivesse ficado na terra para observar de baixo as regiões superiores, jamais teria descoberto coisa alguma, pois a terra atrai inevitavelmente para si mesma a seiva do pensamento. É exatamente isso que acontece com o agrião.” (Aristófanes, As nuvens).


 
Tais diálogos denunciam Sócrates como pedante e alienado e ainda narra sobre um incêndio na cada do filósofo (ocasião em resmungara: “Ai! Infeliz de mim. Ou morrer miseravelmente assado”).


 
Metaforicamente o fogo na residência socrática sugere a miséria da filosofia e que deve ser queimada. O pensamento socrático incomoda e provoca. Conclui assim Aristófanes que o pensador é perigoso para a cidade.


 
A versão de Sócrates criada por Xenofonte o concebeu de forma mais simpática, tendo defendido seu mestre que sempre viveu à luz pública, relatou que de manhã saía a passeio e aos ginásios (...) mostrava-se na ágora à hora em que regurgitava de gente e passava o resto do dia nos locais de maior concorrência, o mais das vezes falava, podendo ouvi-lo quem quisesse. “Viram-no algum “ver-fazer” ou dizer algo contrário à moral, ou à religião.” (in Xenofonte, Memoráveis).


 
Xenofonte não poupou em defender Sócrates revelando-se estar admirado que os atenienses tivessem acreditado nas acusações contra Sócrates, justamente por nada ter praticado de ímpio e por ter adotado discurso e ser, reputado como o mais pio dos humanos.


 
A inocência de Sócrates é verdadeiramente o axioma[9] de Xenofonte. Axiomar um sistema é mostrar que suas inferências podem ser derivadas a partir de um pequeno, mas bem definido conjunto de sentenças. Na engenharia os axiomas são aceitos sem provas formais e suas escolhas são negociadas a partir do ponto de vista utilitário e econômico.


 
Passagem interessante narrada por Sócrates: “Quando seus amigos iam cear em sua casa e uns levavam pouco, outros muito, Sócrates mandava o criado pôr em comum num prato menor ou reparti-lo fraternalmente entre os convivas. Os que levavam mais teriam vergonha de não servir-se do que era posto em comum e em comum pôr também o próprio prato, sendo assim, constrangidos a fazê-lo”.


 
Segundo Xenofonte, o filósofo Sócrates[10] era compreendido por todos, o que configura antinomia com a descrição feita por Aristófanes para quem era incompreendido e afetado. As referências de Xenofonte invocam o sábio calmo, conduzindo seus interlocutores à compreensão da existência humana, calibrada pelo belo, justo e útil.


 
Procurava Sócrates em incutir nos discípulos as ideias sábias concernentes aos deuses. Esforçou-se muito Xenofonte pela defesa de Sócrates mostrando-o como temente aos deuses, patriota e amigo da juventude. Os textos de Xenofonte vislumbram a realização da justiça nos atos e palavras do filósofo e mestre que fora injustiçado pelas opiniões e pelos olhares de ciúme, cobiça e emulação. Em verdade, o que foi letal à vida de Sócrates não fora a ingestão de veneno e, sim, a inveja[11].


 
A maiêutica socrática funcionava a partir de dois momentos essenciais: um primeiro em que Sócrates levava os seus interlocutores a pôr em causa as suas concepções e teorias sobre um assunto; e um segundo momento em que conduzia os interlocutores a uma perspectiva sobre o tema.


 
Daí ser a maiêutica um autêntico parto de ideias. Sócrates procurou dar maior ênfase à procura do que se não sabe, do que transmitir o que julga saber, privilegiado a instigação permanente.


 
Nos diálogos de Platão há o relato que Sócrates tinha recebido ao exército em várias batalhas e, Estrabão contou que, após uma derrota ateniense em que Sócrates e Xenofonte haviam perdido seus cavalos.


 
Sócrates encontrou Xenofonte caído no chão, e carregou-o por vários estágios até que a batalha terminou. (Estrabão, Geografia, Livro IX, Capítulos 2 e 7).


 
Os paradoxos socráticos são posições éticas defendidas que vão contra (para) a opinião (doxia) comum. Os principais paradoxos são: 1) a virtude é conhecimento; 2) Ninguém faz o mal voluntariamente; 3)As virtudes constituem uma unidade; 4) É preferível sofrer uma injustiça a cometê-la. (Górgias) ou jamais se deve responder a injustiça pela injustiça, nem fazer mal a outrem, nem mesmo àquele que nos fez mal (Críton).
GiseleLeite e Denise Heuseler
Enviado por GiseleLeite em 25/05/2013
Código do texto: T4309326
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