Processo administrativo e princípios constitucionais
Segundo o art. 5º., inciso LV, “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são asseguradas o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Mas será que os princípios da ampla defesa e do contraditório são uma realidade nos processos que os militares respondem pela prática de uma transgressão disciplinar militar, leve, grave ou gravíssima?
Antes do advento do novo texto constitucional, ao praticar em tese uma transgressão disciplinar o militar em regra apresentava apenas uma justificativa, que era analisada pela autoridade militar. Com base nas informações prestadas, a autoridade decidia pela punição ou não do infrator. Atualmente, esse procedimento foi modificado, ou deve ser afastado por contrariar os princípios da ampla defesa e do contraditório.
O direito administrativo militar recebeu um aspecto de processualidade, ou seja, as garantias observadas em juízo também devem ser aplicadas ao processo administrativo. O militar não mais pode ser apenas um objeto de investigação, a não ser que exista um inquérito policial militar em andamento, mas mesmo assim por meio de um advogado constituído o acusado poderá acompanhar as provas produzidas, indicar testemunhas, ter acesso aos autos, sob pena de cerceamento das garantias que foram asseguradas a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país.
A prisão administrativa militar cautelar deve ser usada com moderação pelas autoridades militares. Não basta uma mera justificativa para que o militar seja encarcerado, sendo necessária a existência de indícios que indiquem autoria e materialidade. A prisão indevida do militar traz como conseqüência a obrigação do Estado de indenizar o administrado pelos danos morais e materiais que foram suportados em atendimento ao art. 37, § 6º, da CF, responsabilidade objetiva do Estado.
O princípio da inocência também se aplica ao processo administrativo militar, por mais que se afirme que a administração pública possui poderes especiais e que na dúvida o princípio a ser aplicado é o in dubio pro administração. A punição caso fique configurada a falta deve ser aplicada de forma justa, não se permitindo meros juízos de valor ou de especulação. Os bens, a vida das pessoas, e a liberdade, não podem ser limitados com meros indícios. As provas devem ser concretas, seguras, caso contrário não se alcançará a Justiça, mas a iniqüidade, que é incompatível com a democracia.
No curso de um processo administrativo, o militar não perde a sua dignidade como profissional ou como pessoa, e portanto tanto o acusado como o seu advogado devem ser tratados com urbanidade e respeito. O advogado é essencial para a efetiva aplicação da Justiça. Como ensina Piero Calamandrei em sua obra, “Eles os juízes vistos por um advogado”, o primeiro juiz da causa, que conhece o sofrimento da pessoa é o advogado.
A observância do princípio da legalidade é uma outra questão que tem sido motivo de controvérsia no direito administrativo militar, mesmo com o advento da CF/88. As acusações relativas às transgressões disciplinares não podem ser genéricas como se pretende nos termos acusatórios. O princípio da legalidade é específico e impede a existência de uma acusação que não esteja previamente estabelecida antes do fato delituoso em tese.
O direito administrativo militar possui particularidades que o afastam do direito administrativo aplicado aos funcionários civis. A possibilidade de cerceamento da liberdade do militar traz como conseqüência a necessidade da existência de normas claras e precisas, que possam permitir o exercício da ampla defesa e o conhecimento prévio das faltas os quais acusado se encontra sujeito, afastando a possibilidade do arbítrio.
A justiça deve ser exercida com imparcialidade em respeito as garantias que estão asseguradas aos administrados. O princípio da imparcialidade também se aplica ao direito administrativo militar, mas sofre limitações quando a mesma pessoa é a responsável pela colheita e julgamento da prova. O acusado é submetido a um parecer que é elaborado por pessoas que participaram ativamente da instrução processual, o que fere o sistema da livre apreciação das provas que é adotado no direito penal. Mesmo este sistema não admite meros juízos de valor para a imposição de uma penalidade ou sanção.
Por fim, pode-se afirmar que os regulamentos militares estão se adequando ao texto da CF. Não mais se admite que qualquer alteração seja feita por meio de decretos. Somente a lei que seja proveniente do Poder Legislativo é que poderá estabelecer quais são os atos considerados como ilícitos administrativos. O Estado de São Paulo buscando se adequar ao disposto na Constituição Federal editou uma Lei Complementar que substitui o Regulamento Disciplinar até então vigente na Polícia Militar.
Os princípios constitucionais estão se incorporando as normas administrativas militares, o que tem permitido o exercício da ampla defesa. O militar deve ser punido e até mesmo afastado de suas funções quando fique comprovado que este praticou um ilícito, mas deverá ser julgado em conformidade com a lei fundamental de seu país.
Notas:
O texto foi originariamente publicado no site Polícia e Segurança e publicado neste site em 30 III 2007.
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