Filosofia do Direito primeira parte
Filosofia do Direito
Professora Gisele Leite
A Filosofia do Direito é parte da Filosofia. Trata-se de filosofia aplicada à ciência do Direito. Essa afirmação é repleta de gravidade, parece não intimidar os doutrinadores que se dedicam ao seu estudo.
Devemos compreender a Filosofia do Direito como desdobramento dos saberes filosóficos já estabelecidos, cabendo observar as maiores conquistas, as mesmas técnicas e até os mesmos métodos e seguir cautelosamente os mesmos passos daquela à qual se vincula como matriz inclusive por ser anterior e mais genérica.
Para tanto, muito contribuiu a própria história do pensamento, pois até o advento de Hegel, toda a história das ideias sobre o Direito encontrava-se mesclada aos sistemas e pensamentos de filósofos (desde os sofistas até Immanuel Kant ).
Kant concluiu a reviravolta fundamental do pensamento ocidental aberto por Descartes (...). Projetou duas linhas de descendência: uma que resulta na diminuição ideal de Direito, caracterizando uma vertente axiológica cuja ideia central é a de liberdade, que no direito assume a forma da justiça; outra, que arremata o traço positivista do direito, cujo conceito basilar é a segurança. Joaquim Carlos Salgado. “Prefácio”. (In: Gomes, Alexandre Travessoni. O fundamento da validade do direito. Kant e Kelsen. BH: Mandamentos, 2000. p.9).
Então, esses eram a um só tempo, pensadores dos problemas éticos, sociais, políticos, metafísicos, estéticos, lógicos e, também jurídicos.
Todavia, a Filosofia do Direito desgarrou-se de sua matriz produzindo sua própria autonomia. De fato, a partir de Hegel reconhece-se crescente movimento de investigação exclusivamente jurídica o que acentuou a especificidade do pensamento do Direito.
Pensar o Direito em razão de sua própria complexidade, dos direitos positivos o que demanda da teoria a compreensão específica das injunções, das práticas e das técnicas jurídicas.
Desta forma, formou-se toda uma corrente de especialistas na Filosofia do Direito que sem serem filósofos de formação acadêmica, se dedicaram a estudar seu próprio objeto de atuação prático (como é o caso de Savigny, Puchta, Ihering, Windscheid, Stammler, Hans Kelsen, etc.).
Reconhece-se plenamente que a Filosofia lance luzes sobre a Filosofia do Direito, e vice-versa, mas não se pode afirmar que esta esteja atrelada, perdendo sua autonomia à Filosofia.
O que ocorre é a especialização, pois a Filosofia do Direito tornou-se historicamente, um conjunto de saberes acumulados sobre o Direito (objeto específico) distanciando-se da Filosofia tanto quanto a Semiótica se distanciou da Lógica.
Ressalto que o fato de o saber filosófico continuar ativamente a histórica das ideias jusfilosóficas como, por exemplo, as filosofias do agir comunicativo Jürgen Habermas e da arqueologia das práticas humanas de Michel Foucault têm sido motivo de largo impacto intelectual (Vigiar e Punir) e reflexão entre os juristas.
Salientando que, por vezes, as metodologias jusfilosóficas (Stammler que é neokantiano) aperfeiçoam-se na medida dos aperfeiçoamentos dos métodos independentemente das contribuições filosóficas.
É o caso, por exemplo, de Chaim Perelman com sua nova retórica, o exemplo de uma metodologia que, não obstante a matriz aristotélica mostrou-se numa projeção inversa, partindo do jurídico para o filosófico.
Pode-se mesmo dizer que é do convívio e do diálogo constantes que se obterão melhores e mais salutares produtos nessa área do saber humano.
A filosofia é, a princípio, o saber racional, sistemático, metódico, casual e lógico. A Filosofia é a ciência das coisas por suas causas supremas.
A Filosofia do Direito deve ocupar-se do justo e do injusto, e é esse seu objeto. Será, portanto, como contemplação valorativa do direito, a teoria do direito justo (Stammler).
No entanto, para outros, o justo e o injusto estão foram do alcance do jurista, e correspondem ao objeto de estudo da Ética (Hans Kelsen que aplica ao tema da justiça à teoria dos valores, a mesma metodologia usada ao construir a teoria pura do Direito – registrando a cientificidade como não-valoração).
Ainda no entendimento de outros pensadores, a Filosofia do Direito deve ser estudo combativo sendo inata a sua missão de lutar contra a tirania. Há propostas que reafirmam a tarefa filosófica da escavação conceitual do Direito.
A Filosofia do Direito abrange, portanto, diversas investigações (a lógica, a fenomenologia e a deontologia). Enfim, representa a exposição crítico-valorativa da experiência jurídica, na universalidade de seus aspectos mediante a indagação dos primeiros princípios que informam os institutos jurídicos, os direitos e os sistemas.
A Filosofia do Direito é saber crítico a respeito das construções jurídicas erigidas pela Ciência do Direito e pela própria práxis do Direito, buscando os fundamentos do Direito, seja para cientificar-se de sua natureza, seja para criticar a base de suas estruturas e do raciocínio jurídico, provocando as vezes, fissuras no construído que por sobre as mesmas se ergue.
Não se esgota a reflexão do Direito e se mantem acesa e atenta às modificações cotidianas do Direito principalmente regulando o tratamento jurídico que se dá a pessoa humana.
Portanto, é sempre atual, de vanguarda e reserva para si o direito-dever de estar empregada da preocupação em investigar as realizações jurídicas práticas e teóricas.
A diferença entre a Filosofia do Direito e a Ciência do Direito reside, no modo pelo qual cada uma delas considera o Direito: a primeira, no seu aspecto universal e, a segunda, em seu aspecto particular (Del Vecchio).
Resumindo, a Filosofia Jurídica procura estudar sobre a conceituação do Direito em si, explicando causas determinantes de sua transformação no espaço e tempo, em relação aos demais elementos sociais.
Sua finalidade é examinar o Direito, em pleno desenvolvimento, através de leis gerais do movimento. Sua finalidade é o próprio exercício do pensamento visando a interpretação da interpretação sendo tal exercício desprovido de pretensões finalistas.
O caminho da investigação do Direito constitui enfim a ratio essendi da filosofia: E tais metas e tarefas que são:
a) Proceder à crítica das práticas, das atividades e atitudes dos operadores de Direto ;
b) Avaliar e questionar a atividade legisferante bem como oferecer suporte reflexivo do legislativo;
c) Proceder à avaliação do papel desempenhado pela ciência jurídica e o próprio comportamento do jurista ante ela;
d) Investigar as causas de desestruturação, enfraquecimento do sistema jurídico;
e) Depurar a linguagem jurídica, os conceitos filosóficos e científicos do Direito;
f) Investigar a eficácia dos institutos jurídicos, sua atuação social e seu compromisso com as questões sociais, seja o que se refere aos indivíduos, seja quanto aos grupos, a coletividade, seja no que tange as preocupações humanas universais;
g) Esclarecer e definir a teleologia do Direito, seu aspecto valorativo e suas relações com a sociedade e os anseios culturais;
h) Resgatar as origens e valores fundantes dos processos e institutos jurídicos;
i) Por meio da crítica conceitual institucional, valorativa, política, procedimental auxiliar o juiz no processo decisório.
A filosofia socrática traduz uma ética teleológica e sua contribuição consiste em identificar na felicidade o fim da ação. Essa ética tem como fito a preparação do homem para conhecer-se, uma vez que o conhecimento é a base do agir ético, só erra quem desconhece, de maneira que a ignorância é o maior dos males.
Conhecer, porém, não é fiar-se nas aparências e nos enganos e desenganos humanos e, sim, fiar-se no que há de verdadeiro e certo.
Deve-se erradicar a ignorância por meio da educação (paideia ) que é a tarefa do filósofo. E nessa certeza, o filósofo abdica até mesmo da própria vida para reafirmar sua lição e compromisso com a divindade. A lição da ética socrática já uma lição de justiça.
Portanto, um misterioso conjunto de elementos básicos éticos, sociais e religiosos permearam os ensinamentos socráticos, que permaneceram apesar de não terem sido escritos (o que lhe garantiram a eternidade), mas que permitiram principalmente ao pensamento platônico e produziu efeitos nas demais escolas que se firmaram como doutrina socrática.
A filosofia socrática primou pela submissão uma vez que a ética do coletivo está acima da ética do individual e a convicção no acerto da renúncia em prol da Cidade-Estado (polis). Onde está a virtude, está a felicidade e é inerente ao julgamento humano a respeito.
A condenação de Sócrates além de questionar com a sua vida a justiça da polis, trouxe sérios efeitos e deixou profunda marca na história. E, Platão como bom discípulo incorporando esse dilema, haverá de legá-lo com toda sua força para a posteridade.
Platão
Boa parte das premissas socráticas desemboca diretamente no pensamento platônico. Foi Platão por meio dos seus diálogos “Fedro” e “A República” (livros IV e X) que especificamente abordam a questão, desenvolveu os pressupostos do pensamento socráticos: a virtude é conhecimento e o vício existe em função da ignorância.
Ao raciocínio socrático somam-se as influências pitagóricas e órfica, que acabam por torná-lo em pensamento peculiar. De qualquer forma, em sua exposição do problema ético ressalta-se, sobretudo, o entrelaçamento das preocupações gnosiológicas, psicológicas e éticas propriamente ditas.
Todo o sistema filosófico platônico é decorrência de pressupostos transcendentes, quais sejam: a alma, a preexistência da alma, a reminiscência das ideias, a subsistência da alma.
Aliás, a relação entre a psicologia e a ética é bem exposta em dois diálogos: no livro IV da “A República” e no Mito do Cocheiro , no “Fedro” . O corpo humano é a carruagem, o homem que a conduz, os pensamentos correspondem às rédeas, e os sentimentos são os cavalos.
Platão diferentemente de Sócrates se distanciou da política e das atividades prático-políticas. Se Sócrates ensinava nas ruas da cidade, pelo método peripatético. Platão por sua vez decepcionado com o golpe desferido pela cidade contra a filosofia, ensinava em lugar apartado e recôndito onde o pensamento pode vagar com tranquilidade, e onde se pode desenvolver um modo de vida ao mesmo tempo em que estava preocupado com a cidade, suas corrupções, torpezas e problemas era a Academia.
É um paradoxo da Academia um lugar para a reflexão, porém um lugar destacado e distante. Para facilitar e purificar a observação.
Sócrates via na prudência (phrónesis) a virtude de caráter fundamental para o alcance da harmonia social. A prudência estava incorporada a seu método de ensinar e ditar ideias, com vistas à realização de uma educação (paideia) cidadã.
Quando a condenação de Sócrates firmou a hostilidade da cidade ao filósofo, à qual era inerente a política do convívio, iniciou-se um processo acadêmico de distanciamento da cidadania participativa; esta era a derrocada do ideal de perfeição democrática.
A prudência socrática converteu-se em vida teórica (bios theoreticos) que é declarada como a melhor das formas de vida, entre as possíveis formas de vida humana (filósofo, cavalheiro, artesão) e passou a servir de modelo de felicidade humana.
Tudo isso com base na tripartição da alma: alma logística corresponde à parte superior à parte superior do corpo humano (cabeça), à qual se liga a figura do filósofo; a alma irascível, correspondendo à parte meridiana do corpo humano (peito) caracterizada pela coragem como virtude cavalheiresca; alma apetitiva, correspondendo à parte inferior do corpo humano (baixo ventre), à qual se liga aos artesãos, aos comerciantes e ao povo.
Às potências da alma (psychê) humana vinculam-se, portanto, aos modos de vida, de forma que: a) parte logística da alma passa a representar o que diferencia o ser humano dos demais seres; b) parte logística da alma passa a representar a imortalidade do ser. c) a parte logística da alma representa a excelência humana o que faz o homem assemelhar-se aos deuses; d) a alma logística (logistikón) é hegemônica em face das demais partes da alma humana; e) a alma logística é capaz de reflexão (dianoia), de opinião (doxa) e, de imaginação (phantasia); e) a alma logística é capaz de razão (nous) e que permite ao homem acessar, por meio de contemplação as ideias que somente aos deuses são acessíveis.
Em resumo, a alma se divide em logística (cabeça) que se relaciona com o filósofo; coragem (peito) que se relaciona com o guerreiro e cavalheiro, e apetitiva (baixo ventre) que se relaciona com artesãos e comerciantes .
Aí não há movimento, não há discurso, não há o pensamento: a ideia encontra-se absorvida em sua plenitude de inteligibilidade. Dessa forma, o nous intui o logístico pensa e fala sobre einai te kai ousian através do nous assemelhando-se àquilo do que fala e pensa (ser e substância). Das sombras sensíveis ao imutável do inteligível, todo tipo de recurso simbólico humano é eliminado, para que se vislumbre em sua pureza a forma (morphé) sem qualquer interferência de elementos da razão mundana.
A ciência só é possível do que é certo, eterno e imutável, somente as ideias, são para Platão, certas, eternas e imutáveis, tendo-se em vista que tudo o mais que se conhece é incerto, perecível e mutável.
Do que disse anteriormente, somente a alma logística é capaz de ciência, e esta ciência (episteme) à qual se se refere Platão, deriva da contemplação das ideias perfeitas e imutáveis pelo filósofo.
Virtude e vício: ordem e desordem
Cada parte da alma humana exerce uma função e estas funções delimitadas, sincronizadas e direcionadas para seus fins são a causa da ordem e da coordenação das atividades humanas.
As diversas faculdades humanas estão dotadas de aptidão para a virtude (arete) uma vez que a virtude é uma excelência, ou seja uma aperfeiçoamento de uma capacidade ou faculdade humana suscetível de ser desenvolvida e aprimorada.
A opinião não é ciência, é algo entre o ser e o não ser. Assim como se opõem, também, os sujeitos-artificies da doxa e da episteme, ou seja, os philodoxos e os philosophos, na perspectiva de que o primeiro lança suas observações com base no conhecimento empiricamente captado, enquanto que o segundo constrói o saber sobre a experiência contemplativa, que se baseia no conhecimento daquilo que não é contingente.
O virtuosismo platônico refere-se ao domínio das tendências irascíveis e concupiscíveis humanas, tudo com vistas na supremacia da alma racional.
Então, a virtude significa controle, ordem equilíbrio, proporcionalidade, sendo que as almas irascíveis e concupiscentes submetem-se aos comandos da alma racional, esta sim positivamente soberana. Desse modo, boa será a conduta que se sintonizar com os ditames da razão.
A harmonia surge como consequência natural permitindo à alma fruir da bem-aventurança dos prazeres espirituais e intelectuais.
A ética que deflui da alma racional é exatamente a de estabelecer este controle e equilíbrio entre as partes da alma, de modo que o modo que o todo se administre por força racional e não epitimética ou irascível.
O vício, ao contrário da virtude reina no caos existente entre as partes da alma. O vício implanta o reino do desgoverno, onde os mandamentos são incontroláveis (ódio, rancor, inveja, ganância), ora se refere a paixão baixo ventre ( sexualidade, gula, e, etc.).
Buscar a virtude é buscar a excelência do homem que se inspira nas faculdades dos deuses. A alma mundana acaba por destruir a corporalidade e possui o peso das carnes humanas e não a leva tão característica dos deuses.
Sacrificar-se pela causa da verdade significa abandonar os desejos do corpo e fazer da alma o fulcro de condução em si e por si. Para que se fortaleça a ética, deve-se aprimorar a alma principalmente na parte que mais aproxima o homem dos deuses: a razão.
A mecânica da justiça está a apontar algo para além da vida e da morte. A ética platônica destina-se a elucidar que a técnica não se esgota na simples localização da ação virtuosa e de seu discernimento com relação à ação virtuosa.
A alma deve se orientar e ter sua conduta ditada pela noção de bem. Se a natureza da alma humana é metafísica também é metafísica a natureza verdadeira e definitiva da justiça.
De qualquer forma, a educação é paideia da alma tem por fim destinar a alma ao pedagogo universal, ao bem absoluto.
A tarefa de educar as almas para Platão deve ser cumprida pelo Estado que monopoliza a vida do cidadão. A educação deve ser pública, com vistas no melhor aproveitamento do cidadão pelo Estado e do Estado pelo cidadão.
Assim, a justiça, ética e política movimentam-se no sistema platônico num só ritmo sob a harmonia única da ideia primordial do bem. Tamanho idealismo gerou condições favoráveis para uma corrente profundamente empírica o aristotelismo.
Aristóteles - A justiça como virtude
Aristóteles fora discípulo de Platão e desenvolveu sobre o tema da justiça. O fundador do Liceu teve sua sede no campo ético, sendo ciência definida como ciência prática.
A síntese aristotélica permitiu que se congregassem vários elementos doutrinários reunidos ao longo dos séculos, que se disseminaram por diversos campos (justiça da cidade, justiça doméstica, justiça senhorial).
Os principais conceitos estão na obra Ethica Nicomachea (Ética ao Nicômaco) em particular do Livro V dedicado à ética.
Cogitar de justiça é comprometer-se com outras questões afins, quais sejam, as questões sociais, políticas, culturais e retóricas. Há inclusive um diálogo de autenticidade duvidoso intitulado “Acerca da Justiça”.
A obra de Aristóteles é vasta e abriga vários domínios do saber e engloba três trabalhos sobre a Ética (Ethica Nicomachea, Magna Moralia e Ethica eudemia).
O fato é que o mestre do Liceu tratou a justiça entendendo-a como uma virtude assemelhada a todas as demais tratadas como a coragem, a temperança e a benevolência...
E como virtude, a justiça é focada no comportamento humano, à ciência prática, intitulada ética, cumpre investigar o que é justo e o injusto, o que é temerário e o que é ser corajoso.
Na Antiguidade pode-se dizer que a legislação enquanto trabalho do legislador, não pode ser confundida com o direito enquanto resultado de uma ação. Havia concreta diferença entre lex e jus na proporção da diferença entre trabalho e ação.
Desse modo, o que condicionava o jus era a lex, mas o que conferia estabilidade ao jus era algo imanente à ação: a virtude do justo é a justiça.
Dentro da filosofia aristotélica é que se encontra referência à tripartição das ciências em práticas poéticas, ou produtivas ou teoréticas.
E, de acordo com essa divisão, dos conhecimentos científicos, a investigação ética não se destina à especulação ou à produção, mas à prática.
O conhecimento ético é uma primeira premissa para que a ação se converta em uma ação justa ou conforme a Justiça. A excelência do estudo ético busca a perquirição em torno do fim da ação humana, pois este também objeto de investigação política, a mais importante das ciências práticas, criando as normas necessárias para orientar a polis e dos sujeitos que a compõem para a realização do bem comum.
É a observação do homem em sua natural instância de convívio, a sociedade que consente a formulação de juízos éticos.
Conclui-se que os princípios éticos não se aplicam a todos a forma única (a coragem não é a mesma para todos) assim como a justiça não é a mesma para todos. Estamos condicionados ao exame do caso particular, de maneira personalizada e singularizada para que se aplique o justo meio (mesótes).
O conceito de justo meio ou mesótes não comporta compreensão genérica e indiferente às qualidades específicas dos indivíduos, é ao revés, sensível à dimensão individual.
A justiça, em meio as demais virtudes, que se opõem a dois extremos (um por carência: temeroso; outro por excesso: o destemido) se opõe um único vício, que é a injustiça (injusto: por carência da justiça; injusto: por excesso de injusto). Assim, o injusto ou a injustiça ocupa dois polos diversos.
Frise-se que a ideia de virtude, assim como o vício, adquire-se pelo hábito reiteração das ações em determinado sentido, com o conhecimento de causa e com o acréscimo da vontade deliberada.
A própria terminologia das virtudes chamadas éticas, deve-se ao termo hábito (ethos). A primeira noção de justiça pela filosofia aristotélica consiste na virtude da observância da lei, no respeito àquilo que é legítimo e que vige para o bem da comunidade.
O papel relevante para o conceito aristotélico de justiça desempenhado pelo legislador. E, nesse sentido, a função do legislador é diretiva da comunidade política e sua atividade comparável à do artesão.
O justo total é a observância do que é regra social de caráter vinculativo. O hábito humano de conformar as suas ações ao conteúdo da lei é a própria realização da justiça e nesta acepção é a justiça total. É fato que justiça e legalidade são uma única coisa, nesta acepção aristotélica do termo.
O homem é justo ao agir na legalidade diz-se que o homem é, virtuoso, quando por disposição do caráter, orienta-se segundo estes mesmos vetores, mesmo sem a necessária presença da lei ou conhecimento da mesma.
A justiça distributiva é igualdade de caráter proporcional, pois é estabelecida e fixada de acordo com o critério de estimação dos sujeitos analisados.
Este critério é o mérito de cada qual se diferencia, tornando-os mais ou menos merecedores dos benefícios ou ônus sociais (desigualdades naturais e sociais).
Assim, a liberdade é para o governo democrático o ponto fundamental de organização do poder (todos acedem ao poder e aos cargos públicos, indistintamente), da mesma forma que para oligarquia é a riqueza, e, para a aristocracia é a virtude (somente os virtuosos galgam o poder e os cargos públicos).
A igualdade proposta por Aristóteles é do tipo geométrico observando-se a proporcionalidade da participação de cada qual no critério eleito pela constituição (politeia). A igualdade na distribuição visa manter o equilíbrio, pois aos iguais é devida a mesma quantidade de benefícios ou encargos, assim como aos desiguais são devidas partes diferentes à medida que são desiguais e que se desigualam.
Conclui-se que a teoria aristotélica procurar delinear os principais traços que comporiam uma noção do que é justo (por força da lei, por força da natureza, na distribuição, na correção na troca, na punição) e do que é injusto (por força da lei, da natureza, na distribuição, na correção, na troca e na punição).
As contribuições de Aristóteles são inúmeras e entendia que a justiça como virtude, trata-se de aptidão ética humana que apela para a razão prática, ou seja, para a capacidade humana de eleger comportamentos para realização de fins.
Fica claro que a justiça ocorre inter homines, ou seja, trata-se de uma prática humana e social bem delimitada e vinculada ao medium terminus (mesótes).
Parte Aristóteles de reflexão que enfoca o homem como ser gregário, e isto por natureza. O homem além de gregário para a subsistência é também político e de natureza racional (então exerce sua racionalidade no convívio político).
Não de outra forma a racionalidade humana se exerce, senão em sociedade, na polis, e assim por meio do discurso (logos). Tende a comunidade organizada, ao bem, à realização da felicidade (eudamonia) que corresponde a um benefício para todos, sobretudo, acessível a todos.
A polis é sim a culminância das formas de organização da vida humana (família, aldeia, tribo, polis). A polis é a teia social com estrutura política, é o locus de realização da racionalidade e da felicidade humana. Para esta comunidade, assim organizada todo homem está por natureza destinado a esta, pois fora desta, somente haverá um deus ou uma besta.
Justiça não se realiza sem a plena aderência da vontade do praticante do ato justo a sua conduta. Aquele que pratica atos justos não necessariamente é um homem justo, pode ser um bom cidadão, porém não será jamais um homem justo per si.
A justiça total destaca-se sendo virtude de observância da lei. E, é complementada pela justiça particular, a corretiva presidida pela noção de igualdade aritmética ou distributiva, presidida pela noção de igualdade geométrica.
A justiça também será exercida nas relações domésticas (para com a mulher, os filhos, para os escravos) ou políticas (legal ou natural).
Cumpre o julgador debruçar-se na equanimização de diferenças surgidas das desigualdades; é este quem personifica e representa a justiça. Para além da lei, porém, da justiça e de tudo está a noção de amizade e onde há a amizade, em sua pureza conceitual, não é necessária a justiça.
Numa profunda ordenação cósmico-natural se pode encontrar o fundamento de toda ética e de todo conceito de justiça na teoria de Cícero. São leis naturais responsáveis pela ordenação do todo, de acordo com estas se funda a reta razão, de modo que o direito natural passa a representar a única razão de ordenação da conduta na República.
A base da ética de Cícero é stoa e, não repouso apenas no estoicismo, mas apela pelo sincretismo filosófico que remonta ao socratismo, ao platonismo, ao aristotelismo e ao estoicismo.
As virtudes são estimuladas pela lei natural enquanto que os vícios são repreendidos por esta. É esta que, primeira, racional, pura, absoluta, imperativa... Deve ser a escolta para os atos humanos, e não qualquer outro tipo frágil de convenção humana.
É a sociabilidade condição natural humana, de modo que a organização do Estado das leis, da justiça são condições para a realização da própria natureza humana.
Observando-se a natureza das coisas, a natureza humana deverá atingir um grau de afinidade e harmonia com as leis que regem o todo, de modo a que tudo se governe de acordo com um único princípio, que se resume à razão divina.
O que se tem é a ética do dever, com base na lei natural e cuja finalidade reside em guiar e governar o todo. Nessa ética há observância de preceitos morais e jurídicos a um só tempo, em face da fusão que se apresentam.
Isso porque a sociabilidade é um mister, donde a felicidade decorre da própria harmonia de todos entre todos. Enfim, é com a República que surge a felicidade humana.
O estoicismo lança semente da filosofia cristã que dominará a cultura ocidental por séculos, se implantando e se desenvolvendo. A característica definitiva do estoicismo é seu cosmopolitismo: todas as pessoas seriam manifestações do espírito universal único e deveriam, de acordo com os estoicos, em amor fraternal, ajudarem-se uns aos outros de maneira eficaz. Defendiam os estoicos a clemência aos escravos.
Justiça Cristã
Imprescindível assinalar a influência que as Sagradas Escrituras produziram na cultura ocidental. A sublinha doutrina religiosa e moral, nascida na Palestina, se difundiu em poucos séculos em grande parte do mundo civilizado e provocou profunda transformação nas concepções do Direito e do Estado.
Originalmente, porém a doutrina cristã não tinha significado jurídico ou político, mas tão só moral. O princípio cristão do amor, fraternidade, não se propôs a obter reformas políticas e sociais, mas sim reformas de consciências.
Cogitar de justiça é abordar fenômeno multifacetado o que nos remete as abordagens diversificadas (faceta metafísica, faceta ética, faceta técnica e faceta religiosa).
Deve-se desvincular como condição epistemológica dessa pesquisa, a ideia de justiça cristã instituída no Império Romano após a adoção do Império por Constantino.
Refere-se da justiça praticada pelos senhores feudais como soberanos medievais que retiravam seus poderes de Deus... Ou da justiça praticada pela Inquisição (Santo Ofício ) fundada no século XI, que exercia poderes de julgamento sobre a vida das pessoas classificadas como hereges (jus vitae ac mortis).
No bojo dos Evangelhos a doutrina sobre a justiça levando-se em conta:
a) O julgamento de Jesus como um fato humano de grande significado, uma vez que provocou verdadeira expansão de sua curta pregação (Cristo nunca escreveu nada nem mesmo o que pregou aos fiéis);
b) Também, a doutrina de Justiça que incorpora, numa esperança, e num anseio do advento da Justiça Divina;
c) A identificação da Boa Nova, a doutrina de Jesus, com ensinamentos nitidamente diversos dos contidos no Antigo Testamento.
Devem-se diferir os maus usos da doutrina cristã, que se fizeram na história ocidental por algumas ideologias, do que verdadeiramente esta encerra em si como doutrina, como ensinamento, como preocupação axiológica.
O cristianismo alcançou muitas representações e interpretações no tempo e no espaço, muitas das quais fidedignas aos mandamentos originários, outras contraditórias.
Trata-se aqui de buscar a Palavra dos Evangelhos por meio de resgate ou de uma imersão na única ideologia latente na pregação de Jesus: “fazei ao outro o que quereis que vos façam”. Sem maiores pretensões, eis aí o objeto desse procedimento de pesquisa.
A Justiça Cristã promove a ruptura com a lei mosaica que pregava olho por olho, dente por dente, de índole extremamente vingativa. Onde imperava a justiça como forma de desforra do mal causado. Cristo faz residir no perdão e no esquecimento das ofensas e dos males causados.
Ao primitivismo hebraico dominado e escravizado pelos egípcios havia um ensinamento rígido, dotado de moral espartana, um ensinamento solidamente dogmático, baseado na imagem religiosa de um Deus vingativo e todo poderoso. Foi isso que marcou o Antigo Testamento. Então, o Cristo procurou desfazer ao adentrar com seus ensinamentos de um Deus benevolente e que perdoa.
É com o advento do Cristianismo que ficou marcada a principal lição da justiça, tal qual é retratada por essa religião. A vinda exemplar de Cristo em sua nobre missão de esclarecimento acerca do justo e do injusto.
“E, libertados do pecado, fostes feitos servos da justiça” ou “Porque, quando éreis servos do pecado, estáveis e livres da justiça”.
Em várias passagens há alusão à justiça e numa dessas pode-se ressaltar o fato de que o mundo passará, as coisas, as pessoas, as civilizações, os imperadores, as Igrejas, as doutrinas e os sábios ... mas a Palavra não passará.”
Noutra passagem, in litteris: “É mais fácil passar o céu e a terra do que cair um til da Lei.” (Lucas, cap. XVI, v.17).
Menciona uma ordem que está para além dos sentidos humanos, naturalmente de caráter espiritual, em que a Justiça aparece como fenômeno imperecível, e de acordo com a qual julgamento se exerce de forma inexorável; a eternidade e a irrevogabilidade são suas características.
As leis humanas são leis circunstanciais e se multiplicam exatamente em função da diversidade de caracteres dos povos. As leis divinas que presidem a ordem divina das coisas, ou o Universo em sua totalidade, não podem estar maculadas pela mesma especificidade, perecibilidade e circunstabilidade que são peculiares das leis humanas.
Estar ante a justiça divina é estar perante uma justiça presidida por Deus e aplicada por esse mesmo Deus.
Para além do legal e do ilegal, encontram-se as fronteiras cristãs. A elasticidade dos horizontes cristãos é bem maior que a dos horizontes materiais. Pode se mesmo cogitar a inserção humana em um mundo bidimensional, ou seja, numa duplicidade de papéis, um terreno e outro espiritual.
Outra passagem alude diretamente à questão de justiça: “Néscios, infiéis nos contratos, sem afeição natural, irreconciliáveis, sem misericórdia.” Ou “Os quais, conhecendo a justiça de Deus (que são dignos de morte os que tais coisas praticam) não somente as fazem, mas também consentem aos que as fazem.” (Paulo, Epístola de Paulo aos Romanos, Cap.I, vv. 30 a 32). Consagrando assim a culpa por ação e a culpa por omissão.
O mal e dor não existem porque Deus os ignora mas porque Deus os permite operar como formas de redenção da experiência humana. Tarefa inglória seria a existência da alma se seu percurso não estivesse marcado por um processo contínuo de aprendizado, que só se faz pelo conhecimento do bem e do mal, do justo e do injusto.
A justiça dos fariseus é tomada como paradigma do que não deve ser. Ou seja, amar somente os que nos amam... Não basta, o sentimento cristão reclama mais do fiel. Eis aí, a principal inovação de Cristo com relação aos ensinamentos que o precederam (...).
In litteris: “Amai os vossos inimigos, fazei o bem àqueles que vos odeiam e orai por aqueles que vos perseguem e vos caluniam. A fim de que sejai os filhos de vosso Pai que está nos céus, que faz erguer o Sol sobre os bons e sobre os maus, e faz chover sobre os justos e os injustos; porque se amardes senão aqueles que vos amam, que recompensa terei disto?”.(...).
A regra cristã é governada por máximas, e requer o que há de mais caro à pessoa, exige o desprendimento de si mesmo, ou mesmo de sua própria honra pessoal oferecendo-se ao ofensor a outra face. (...).
Pois toda injustiça não será solvida na revolta, na reação, na vingança, na devolução do mal, mas sim no perdão, no esquecimento das faltas alheias, na humildade e, sobretudo, no julgamento de Deus sobre o ofensor.
A atenção pelo outro, e portanto, pela exteriorização da conduta, tem que ser ressaltada, e isso à medida que é considerada fator de crescimento da alma no exercício da virtude.
Novamente, cumpre nova citação de Mateus, cap. VII, vv 1 e 2: “Não julgueis, a fim de que não sejais julgados; porque vós sereis julgados segundo houverdes julgado os outros; e se servirá convosco da mesma medida da qual servistes para com eles.”
Num universo de imperfeitos, quem será o juiz das ações de quem?
Na base do perdão reside a reconciliação e na base desta, está a união. E, mais se afirma que toda lei, toda promessa, todos os mandamentos e todos os profetas encontram-se reunidos num só preceito: “Amai a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a vós mesmos”.
Daí resulta a regra de ouro: “Não fala aos outros o que não queres que te façam a ti” que formulada positivamente traduz o princípio da justiça: devemos tratar os outros tal como gostaríamos de ser tratados.
Ademais, a crítica de Kelsen recai sobre o caráter abstrato da fórmula, pois o subjetivismo do “desejar aos outros, o que desejaria para mim”, e não define o que é bom e nem o que é mau. Revela subjetivismo nefasto, sobretudo para definir limites do próprio ordenamento jurídico.
A doutrina de Cristo fora essencialmente apolítica e a passagem a seguir reforça tal entendimento: “Não vim para ser servido, mas para servir. O meu reino não é deste mundo, Dai a César o que é de César, a Deus o que é de Deus”.
O que nos conduz a conclusão de que o Direito Positivo deve ser respeitado dando aos homens, e particularmente aos governantes, o que é dos homens e a Deus, o que é de Deus.
Enfim, a doutrina crística é a dos desvalidos, dos desamparados, dos empobrecidos e dos discriminados. E a justiça divina é a que tudo provê, que tudo sabe e que tudo pode. Porque nós pelo espírito da fé aguardamos a esperança da justiça.
Enfim, a filosofia cristã trouxe novas dimensões à questão da justiça. Cunhando uma concepção religiosa de justiça, identificando ajustiça humana como transitória e, por vezes, instrumento de usurpação de poder. Não é na justiça divina, na Lei de Deus que age de forma absoluta, eterna, fiel e imutável.
A lei humana aplicada no julgamento de Cristo que foi feito com base na opinião popular dos homens da época, é a justiça cega e incapaz de penetrar nos arcanos da divindade.
Aponta a justiça cristã aos valores que rompem com o imediato do que é carnal. O verbum representa não só a elucidação dos profetas, mas a encarnação por sua vida, história e palavras, das lições divinas sobre o que deve ser e o que não deve ser.
A justiça cristã veio desmistificando figurar alegóricas populares e introduzindo novas práticas e novos conceitos e, sobretudo por meio de parábolas o que reforça a contínua interpretação.
Afinal Cristo veio semear a Boa Nova, no sentido de colher o joio separando-o do trigo, o que será feito no futuro apocalíptico por meio do julgamento final.
O sentimento cristão identifica o mal a uma doença, de maneira a dispor-se a seu tratamento e não faz precipitado julgamento e, sim reintegra pelo perdão, pela doação de sim e por aguardar pacientemente a reforma do outro coração.
Onde reside a vingança (vindita) não reside uma máxima cristã, e nem mesmo se pode entender como legítima uma guerra religiosa ainda que travestida de luta e combate aos infiéis, ou de disseminação de uma doutrina espiritual. Não existe guerra santa, existe sim guerra desumana e cruel.
Traduz a doutrina segundo a qual aquele que age por suas ações será medido; ao justo a justiça; ao injusto, a injustiça. Todo entendimento e lógica cristã devem pautar por esta praecepta, devem espelhar como reflexo, o comportamento de Cristo. E essa substância filosófica irá perdurar por todo período medieval.
Santo Agostinho –“A Justiça de dar a cada um o que é seu”.
A maior contribuição para o pensamento medieval não foi romana, mas grega. Realmente, foi a síntese conciliatória dos postulados religiosos com os filosóficos gregos que propulsionaram várias correntes do pensamento medieval.
Exemplificando, observamos que Aurélio Agostinho (séculos IV e V) produziu a fusão do platonismo com o cristianismo e, Santo Tomás de Aquino (século XIII) pela escolástica, por sua vez, perpetrou a fusão do aristotelismo com o cristianismo. O marco histórico é a palavra revelada que cristalizou novos ideais construindo novos modelos de devoção e fé e que conduziram a filosofia servir de recurso teológico de ascensão espiritual.
Nesse contexto, deixou de ocupar relevante papel anteriormente desempenhado, perdendo parte de sua autonomia racional e se tornou a ancilla theologie.
A interpretação mística conferida às palavras de Jesus passou a constituir paradigma de vida interior, o que resultou num primeiro estágio para a vida monástica que se perpetuou pelos veículos medievais.
Diversos fatores históricos deram moldura tais como a desestruturação paulatina da vida citadina, a queda dos ideais cívicos romanos, o fortalecimento do culto cristão e a ascensão do poder eclesiástico organizado, o início do assédio bárbaro, a diluição da sociedade organizada pela difusão dos conflitos e confrontos humanos, entre outros fatores ideológicos que se desenvolveram pela difusão de novos princípios de vida e de nova literatura religiosa.
Suas raízes longas se infiltraram tão profundamente que a vida se governava pelos ditames dogmatizados pela religião. O clero viria solidificar-se, efetivando-se definitiva na Idade Média, colocando-se como instituição reinante, poderosa e rica, período em que se estruturou e se desenvolveu vindo organizar a vida universitária nos séculos XII e XIII, e perdendo forças somente com a Revolução Francesa (século XVIII).
O ideal da vida monástica trouxe a valorização de ascentismo , anacoretismo e eremitismo que se instituíram como únicos meios de ascensão espiritual para os devotos das novas tendências; o deserto (eremos) era o local perfeito para a sublimação espiritual, aliada à maceração física, bem como para a descoberta da iluminação interior.
O eremita ou ermitão é um indivíduo que usualmente por penitência, religiosidade, misantropia ou simplesmente amor à natureza, vive em lugar deserto e isolado. O local de sua morada é designado eremitério. Na história da Igreja Católica há importante capítulo sobre os eremitas e o desenvolvimento da vida monástica com destaque para Santo Antão do Deserto.
Segundo Elisabeth da Silva Passos, “O eremitismo dos séculos XII e XIII foi permeado pelo retorno às fontes, o ideal da vida apostólica e da Igreja Primitiva. Ou seja, os eremitas desejavam imitar rigorosamente os preceitos espirituais presentes no projeto de vida religiosa de Jesus” (...).
No século XII, o eremitismo teria se desenvolvido em três principais vertentes: a primeira consistia na prática da ascese antecedendo a pregação, geralmente dirigida aos grupos mais necessitados espiritualmente, como os leprosos e as mulheres, ressaltando a questão da pobreza; a segunda propunha que os eremitas estabelecessem vínculos com um mosteiro, e a derradeira, seria exemplificada através da Ordem dos Cartuxos, que requeria uma vida de penitência e isolamento rigoroso.
Bruno de Colônia, o seu fundador procurou combinar o ideal eremítico, expresso na busca de Deus através da contemplação, com o cenobitismo, ressaltando, a busca pessoal de Deus. Por causa da ausência de desertos na Europa Ocidental, os eremitas buscariam refúgios em locais remotos e desabitados, como cimos de montanhas e florestas.
A descrição da aparência dos eremitas era terrível assim, como as suas habitações. Vestiam-se muito pobres, as pernas apareciam semi-descobertas, usavam barba comprida, pés descalços, e levavam consigo o cilício . A austeridade de suas habitações pode ser constatada através da escolha dos locais, pois em geral viviam em covas, gargantas, ilhas selvagens, bosques funestos e terras não desbravadas.
O eremitismo era um fenômeno religioso marcado essencialmente pela contemplação, ou seja, as orações em retiro, a penitência, a busca pelo isolamento e a mortificação da carne, a fim de buscarem o contato com Deus.
O monastério integraliza vivências a serviço da divindade, o que requer grande esforço de autoesquecimento, distanciamento da vida pública e o exercício espiritual da oração. Assim, firmado o ideal eclesiástico passa a religião ocupar o primeiro locus na ordem e na escala de valores sociais.
Ocupou-se de prescrever um quadro de atividades humanas louváveis a ação política (via activa) invertendo-se o modelo de educação (paideia) cidadã construído pelos gregos e pelos romanos.
Concentrando especificamente todos os rumos do saber para a problemática contemplativa (vista contemplativa). Enquanto a vida ativa por meio da política era fundamental o papel de cidadão, para os cristãos o que importa é o contrato místico com a divindade.
A política perde importância no cenário medieval. A eternidade da alma, a crença no poder da fé, regeneradora e conversiva, a verdade revelada, o medo dos castigos e penas eternas são todos dogmas que presidem o comportamento das almas.
O paradigma da vista contemplativa particularmente os intelectuais, passa a prevalecer o modelo de vida monástica. É interessante ressaltar que Umberto Eco contesta qualquer tentativa de tratamento homogêneo dos longos séculos que foram a chamada Idade Média. E, adverte o leitor de que os apontamentos traçados em seu texto são apenas linhas gerais e tópicas de algumas questões.
A tradição formou-se em torno do neoplatonismo do pensamento patrístico e dos ensinamentos paleocristãos que vieram a delinear a lógica medieval. Ganhou a filosofia um recurso racional auxiliado pelo pensamento teológico que se centrou na interpretação da bíblia.
Primaram pela transcendência, conduzindo a própria noção estética, sem prescindir do belo exterior ou negligenciar a aparência material das coisas, para a mística e a metafísica intelectual.
Bonum et pulchrum (o belo ao lado do bom) ganhou estatuto ontológico no pensamento medieval, reconduzindo a unidade da ideia da Suma Potência Divina.
A experiência da beleza inteligível constituía, antes de tudo, uma realidade moral e psicológica do homem medieval e a cultura da época não permaneceria suficientemente iluminada se descuidássemos deste fator. Os medievais elaboravam, ao mesmo tempo, por analogia, por paralelos explícitos e implícitos, uma série de opiniões sobre o belo sensível, da beleza das coisas da natureza e da arte.
A beleza espiritual e a contemplação da perfeição divina são intensamente valorizadas e se difundir como valor e ideologia preponderantes.
O valor estigmatizado pela dualidade soma/psyché (corpore/anima) exige o culto interior, a afeição ao abstrato e ao isolamento reflexivo e que batizou o estilo monástico de vida como ideal contemplativo de dedicação à divindade. No plano medieval não há espaço para a vida pública e nem para a agremiação.
Os signos da fé estavam por toda parte principalmente na ascese disciplinar da vida monástica. A intuição era a força centrífuga do pensamento enquanto a fé era a força centrípeta de descoberta.
O pensamento é teologizante, por mistificar todo o real com base na interpretação das Escrituras. Deus está em tudo, e conhece toda a alma humana. Em tudo há fragmento de divindade, o homem se encontra sob esse jugo, conflitando com suas paixões, vícios e imperfeições.
Vita theologica
A preocupação de Santo Agostinho com o transcendental não se deu apenas por sua conversão ao cristianismo mas em razão de sua formação cultural helênica, principalmente sob o eco do platonismo nos séculos III e IV da era cristã. Sua obra transpareceu o estremecimento que experimentou quando de sua conversão busca de si e a busca de Deus, dotando o mundo do sentido e de verdade.
Sua conversão representou uma verdadeira adesão à filosofia, e sua profissão de fé se tornou sacerdócio da palavra divina por meio de sua filosofia. Tornando-se Agostinho o pai da igreja e grande teorizador cristão.
E foi justamente o bom conhecimento da doutrina cristã e a pagã que permitiu o Bispo de Hipona galgou o status de pater ecclesiae, solidificando assim, a doutrina platônica com os ensinamentos católicos.
A concepção agostiniana acerca do justo e do injusto concebe transcendência que se materializa na dicotomia havida entre a Cidade de Deus (lex aeterna) e a Cidade dos Homens (lex temporalem).
E nos remete à discussão da relação existente entre a lei humana e a lei divina (perpassando pela justiça política, justiça distributiva, justiça comutativa e justiça corretiva). E se identifica com a oposição divina versus humana.
Onde se percebe claramente o dualismo platonismo (corpo-alma, terreno-divino, mutável-imutável, transitório-perene, imperfeito-perfeito, relativo-absoluto, sensível e inteligível) assim a justiça agostiniana corporifica a radical concepção entre o que é e o que deve ser.
A justiça humana é inter homines e se opera por decisão humana em sociedade. Sua fonte basilar que é a lei humana pretende comandar o comportamento humano. E realiza o controle das relações sociais. Não regula o que preexiste ao comportamento social.
A tarefa divina no controle do todo, o que aos olhos humanos é irrealizável. Pois a ilimitação de poderes de Deus permite tudo conhecer, saber e coordenar. Por outro lado é a limitação humana que torna a abrangência da lei humana também restrita.
A justiça divina é aquela que a tudo governa e preside dos anteplanos celestes; sua origem conforme já apregoava o platonismo é a ordem natural das coisas.
Esta se baseia na lei divina que não é sujeita ao relativismo sociocultural e nem as diferenças legislativas existentes entre povos, civilizações, continentes e culturas diversas. Assim, a lei divina é além de absoluta, imutável, perfeita e infalível e infinitamente boa e justa. É a justiça também que se desdobra na própria justiça divina.
Assim é a lei que Deus produziu no homem assim, a lei humana também é divina, de certa forma, à medida que é dada por Deus. Afirmar que Deus é essentia por excelência ou que é supremamente ser, ou que é a imutabilidade é, pois, afirmar a mesma coisa.
A lei eterna inspira a lei humana da mesma forma que a natureza divina inspira a natureza humana. Prima a justiça divina em ter onisciência e onipresença. É perfeita, pois traduz o julgamento perfeito.
A lei humana é corrupta bem como seu julgamento e ordenações. É viciada ab origine. A justiça dentro dessa dimensão vem compreendida como algo profundamente marcado pelos próprios defeitos humanos.
A lei eterna comanda a alma para aproximação de Deus, promovendo gradativo desprendimento e ordena purificar o amor e seu rastro é alcançar a perfeição.
A lei humana temporal se preocupa com o delito não com bens materiais. Preocupa-se apenas em ordenar a conduta social. Deve a lei humana recriminar os crimes de forma suficiente para promover a paz social.
As paixões que a lei humana exclui de sua regulamentação e tutela e desde que não se concretizem em atos ilegais, a lei divina condena (tais como inveja, ódio, concupiscência ), Agostinho sublinhou que a lei divina é, portanto, mais severa por penetrar na própria alma humana.
A lei temporal tem na lei escrita um recurso auxiliar na organização social. Apontou ainda que só possa haver mesmo Direito, quando seus mandamentos coincidem (a lei divina e a lei humana). Conceber o Direito dissociado da justiça é conceber conjunto de atividades institucionais humanas que se encontram dissociadas dos anseios da justiça. Mais que isso: “Suprimida a justiça que serão os grandes reinos senão vastos latrocínios?”.
Invocou o conceito de república de Cícero (res publica) ao lado da doutrina de Varrão o que se faz com o direito, se faz com justiça; e o que se faz sem justiça, não se pode fazer com Direito.
A coisa pública deve ser administrada não só com Direito, mas, sobretudo com a justiça. Portanto, ainda que em meio a transitoriedade dos interesses humanos, andando de mãos dadas.
A noção de justiça em Santo Agostinho é marcada pela acepção romana e a de Cícero de que o governo de direito é o governo justo, em que a justiça é dar a cada um o que é seu ( suum cuirque tribuere).
Não há república sem ordem, não há ordem sem direito, e não há direito sem justiça. Quebrar essa ordem estabelecida significa romper com a ordem de Deus.
A justiça, portanto tem haver com a ordem, da razão sobre as paixões, das virtudes sobre os vícios, de Deus sobre o homem. A justiça divina exerce-se, para Agostinho, em função do livre arbítrio que pode atuar contra ou a favor do que prescreve a lei eterna.
O livre-arbítrio é o que permite que o homem atue segundo a sua vontade e, pode ser a favor ou contra a lei divina. A vontade governa o homem, e há o apelo à prudentia que nos remete à noção de equilíbrio na atuação da vida prática.
Cogita Agostinho de um atuar secundum legem ou contra legem, a ideia do livre-arbítrio é a chave para compreensão do julgamento divino das obras humanas.
Ser livre é poder deliberar com autonomia sendo iluminado pelo espírito divino que busca a interiorização, o caminho na direção de Deus.
Aborda Santo Agostinho que a alma pode ser corrompida pelo corpo e, nesses casos a virtude desempenha papel fundamental na contenção das paixões ou no combate dos vícios.
Onde o livre arbítrio permite a possibilidade de escolha e, em face dessa escolha que cada qual será julgado.
O supremo julgamento ou juízo final figura como crucial momento de distinção entre aqueles que souberam utilizar o livre-arbítrio de acordo ou contra a lei divina. Aos bons lhe será dado o bem supremo e aos maus, o mal supremo. Será o momento de exaltação dos bons e de ranger os dentes para os outros.
O livre arbítrio deve permitir conhecer-se e conhecer a Deus, o que nos remetem ao estudo unificado do mistério da criação. Sabedoria é o conhecimento das verdades, mas também da verdade maior, ou seja, de Deus.
Só é sábio quem conhece a perenidade do bem absoluto. O autoconhecimento propicia a aproximação de Deus e vencer a natureza corrupta do homem.
Ser feliz e ser sábio são a mesma coisa, ou seja, possuir a sabedoria de Deus. Essa sabedoria é medida do equilíbrio cristão em Deus (que é diverso do equilíbrio estoico) que previne contra o excesso e a intemperança.
A revelação e a graça são instrumentos para o conhecimento da verdade, e o intelecto ganha sua existência com a intervenção da divindade, por meio do verbum.
A posse da sabedoria corresponde aposse contemplativa de Deus, pelo que a tarefa filosófica se constitui de sua natureza como itinerário da mente para Deus.
Tendo a política humana esse compromisso com o divino, o Estado passa a ser, portanto, o meio para realização da lei eterna. Deve a politica ter anseio de perseguir a junção eterna das almas com Deus, daí o compromisso teocrático do Estado na visão de Santo Agostinho.
A Cidade dos Homens é caracterizada desde sua origem pelo pecado original, onde a corrupção invadiu o espírito humano, distanciando-o de sua fonte de vida, de Deus. Mas há indelegável missão terrena de se conquistar a pax social.
A teoria de Agostinho denuncia a miséria da Cidade dos Homens que antagoniza com a beleza da Cidade de Deus. E condena os malefícios das penas e é crítico mordaz da tortura e da pena de morte, pois tudo que é humano (sistema de governo e justiça) ofusca-se diante do que imutável e perfeito (Justiça, Ordem e Bem).
Apesar dessa base dicotômica, a cidade de Deus diante da Cidade dos Homens, pode-se identificar dois amores: amor de si, e o desprezo de Deus que deu origem a cidade terrestre; um segundo amor seria o amor de Deus e o desprezo de si, presente na cidade celeste.
A Cidade dos Homens possui história, sendo anterior à cidade de Deus que somente surgiu com o advento do verbum encarnado. Mas as cidades, os dois amores, as duas histórias e dois espíritos diversos fazem diferir profundamente ambas as cidades.
Assim, a justiça pode ser definida por ser divina e humana. A lei humana se destina a realização da paz social (secular e temporal).
Santo Tomás de Aquino: Justiça e sindérese
Expôs também uma filosofia comprometida com os Sagrados Escritos e com o pensamento aristotélico. Não deixando de albergar outras propostas, como a síntese do pensamento filosófico até o século XIII como as ideias de Dionísio, Bócio, Albergo Magno, Santo Agostinho, entre outros.
As lições do aristotelismo traçaram nos ensinamentos tomistas peculiar clarividência. Tudo é racional e concatenado e metodicamente exposto. A justiça encontra lugar especial recebendo extensivo tratamento na Summa Theologica.
O estudo dos conceitos de Direito (iure) e de justiça (iustitia) faz-se como parte de um estudo que se volta para o conjunto de interesses dos homens; esta pesquisa deixa de possuir qualquer remissão mais aprofundada das discussões sobre a justiça metafísica, como o é a discussão sobre a justiça dos atos de Deus e, outras implicações correlatas ao tema.
Tanto a influência do aristotelismo e a jurisprudência romana só favoreceram ao desenvolvimento ao conceito de justiça de Santo Tomás de Aquino. Focalizando como problema ligado à ação humana, à práxis, à virtude que sabe atribuir a cada um, o que é seu.
Conforme aponta Miguel Reale o estudo de justiça sob a ótica tomista consolida-se e nos faz debruçar-se sobre as três acepções do termo lex: uma, no sentido humano, outra no sentido natural e, outra no sentido divino.
Assim, em Santo Tomás de Aquino o homem é composto de corpo (corpus) e alma (anima), sendo que o primeiro corresponde a matéria que colabora para aperfeiçoamento da alma, esta criada por Deus.
Como expõe Santo Tomás, como a potência está no ato, a alma está para o corpo; a alma é incorruptível imaterial e imortal, enquanto que o corpo é corruptível, material e mortal.
Aliás, a alma não é componente só do homem, também a possuem os animais e vegetais que existe em graus diferenciados e com potências e faculdades diferenciadas (o que permite que se diferenciem entre si na escala natural).
A alma intelectual é inerente ao animal racional (homem) que é capaz, além de sobreviver, de executar atividades, e apreender a forma e o fim de suas ações.
Enfim, o conhecimento das causas dos meios e dos fins que distingue a categoria das almas (a racional) na escala natural. O homem acumula três faculdades anímicas : a vegetativa, a sensitiva e a intelectual. E, essa última o capacita conhecer o fim de suas ações. Dessa forma, é a faculdade intelectual que particulariza o homem em meio aos outros seres dotados de alma.
A liberdade consiste exatamente na possibilidade humana de escolha entre inúmeros valores que se apresentam como aptos à realização de um bem;
A possibilidade de escolha, por sua vez, deita-se sobre a verdade real (aquilo que realmente é um bem) ou em uma verdade aparente (aquilo que parece ser bem) o que comprova a existência do livre arbítrio, ou seja, da capacidade de julgar o que é certo ou errado, o que é justo ou injusto.
A atividade ética consiste exatamente, por meio da razão prática o saber discernir o mal do bem e executar o escolhido mediante a vontade, destinando-se atos e comportamentos para determinado fim, o que é bem (o télos da filosofia aristotélica).
O ato moral de escolha do bem, e de repúdio do mal, consiste em atividade racional à medida que os melhores meios que se escolhem pela experiência haurida, direcionando-se para realização do bem vislumbrado também pela razão.
A ética é fruto da razão prática e deve presidir o convívio social. E assim o Doutor Angélico segue os passos bem de perto do pensamento aristotélico no que concerne à ética do coletivo.
Já se disse que é sobre o agir (individual, familiar, social), ou seja, sobre a razão prática que a ética incide. Na filosofia tomista, esse conceito corresponde a sindérese (sinderesis) que é o conjunto de conhecimentos conquistados a partir da experiência habitual; da onde se podem cunhar os conceitos acerca do que é bom e do que é mau, do que é justo ou injusto.
Nas estreitas palavras aristotélicas presentes em Ethica Nicomachea que preceituam uma doutrina que faz do “agir ético” um agir pendular entre o vício e a virtude, lastreia-se na escolha entre a dor e o prazer.
Atua a sindérese estabelecendo um fim da razão prática, ou seja, o Bem. E relembrando Aristóteles o bem é o que a todos agrada. A realização do Sumo Bem é simples, e deve-se buscar o autêntico bem e, não o bem aparente.
Todo o conjunto de experiências sideréticas, ou seja, experiências hauridas pela prática da ação, capaz de formar princípios, conceitos que permitem a decisão por hábitos (bons, maus, justos ou injustos).
Assim, os hábitos não são inatos e sim conquistados pela experiência (e esta é a base das operações da razão prática). O primeiro princípio atua de modo que o bem evite o mal. Esses princípios deverá governar a teoria tomista de justiça.
O conceito tomista de justiça emerge de conceitos éticos: ethos, em grego, significa hábito, reiteração de atos voluntários que se destinam a realização de fins (a justiça é uma virtude). E repete: a justiça é uma vontade perene de dar a cada um, o que é seu, segundo a razão geométrica.
Trata-se de igualdade proporcional. E, pode-se dizer, então que razão (ratio) e experiência (habitus) caminham de mãos dadas, tudo no sentido de dizer a justiça, em particular, consiste em dar a cada um, o que é seu, nem a mais e nem a menos do que é devido.
A justiça não tem haver com um exercício do intelecto especulativo, puramente reflexivo. A justiça é um hábito, portanto, uma prática, que atribuiu a cada um, o que é seu, à medida que cada um possui.
Também não tem a justiça haver com as paixões interiores que são objetos de outras virtudes; a justiça é fundamentalmente, um hábito à medida que pressupõe exterioridade do comportamento.
A elaboração eclética do conceito tomista de justiça não perde noção de realidade e da imperiosa necessidade de efetivação da justiça. Sendo função cardeal.
O Direito é objeto da justiça. Em meio às demais virtudes, é a justiça que cuida da conduta exterior do homem; e também a temperança e a prudência. A justiça implica numa certa igualdade.
Tanto a justiça como o justo interessam ao estudo do Direito. O direito não é a justiça considerada a maior das virtudes. É o iuris não se reduz a lex, e algo mais que advém razão divina e da razão natural.
A justiça se encontra presente como meio de equilíbrio na intenção, estabelecendo a igualdade entre aqueles que se relacionam. O objeto da justiça é o Direito. O ato da justiça é o ato de julgar.
A tese tomista por tratar da justiça in genere definindo-a, como se fez até o presente momento como uma virtude, lançando-lhe características e suas relações com o Direito, suas espécies.
A grande contribuição tomista em seu jusnaturalismo, sendo que admite a lex naturalis mutável. Ademais, sua concepção transcende a lei divina, da qual faz derivar tudo que foi gerado.
Nesse sentido, todas aas disposições do direito positivo deve se adequar às prescrições do direito natural que lhe são superiores e fontes de inspiração. Assim o ius transcende a lex scripta; a lei posta pela autoridade não exaure o Direito.
O modelo utopiano de organização social, política e econômica e jurídica refunda a realidade em novas bases. Destaca-se atenção pelo sistema comunal de produção e pela divisão de trabalho de acordo com a aptidão de cada membro de corpo social.
Entre as condições geográficas, as mais favoráveis, a Utopia oferece a seus habitantes a ordem, abundância de alimentos, sistema jurídico organizado, sistema político organizado, integração povo-poder, e divisão de tarefas na construção de ideais sociais.
Na cidade utópica inexistem burocracia excessiva e inoperabilidade do sistema jurídico devido à excessiva quantidade de normas, leis e regulamentos, bem como a grande distância entre o povo e a ordem jurídica, sendo esta inteligível e manuseável unicamente por seus técnicos, sendo pouco democrática.
A Utopia além de ser devaneio intelectual serviu de ferramenta crítica e teórica enfocando a justiça necessária para o meio social, sendo importante referência para a modernidade.
Jusnaturalismo
A escolástica exaltava a lei divina e sua perfeição e imutabilidade. Tal influência é facilmente perceptível nas concepções de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino.
De fato, a Cidade de Deus era o lugar regido pela lei divina que contrastava com a cidade dos homens, regida pela lei humana. A tarefa de incorporar a lei divina no âmbito da lei humana é do direito. Sublinhe-se que é uma árdua tarefa.
Dentro da concepção tomista existe: a lei natural, a lei eterna e uma lei humana. A lei eterna rege toda ordem cósmica (o céu, estrelas e constelações), enquanto que a lei natural é decorrente desta lei eterna.
Resta evidenciada a hierarquia onde a lei superior é a divina para Santo Agostinho e para São Tomás de Aquino é a lei que emana de Deus. Então surge o direito natural conforme definiu Grócio, in verbis: “O mandamento da reta razão que indica lealdade moral ou a necessidade moral inerente a uma ação qualquer, mediante acordo ou desacordo com a natureza racional”.
Essa virada copérnica registra a saída das concepções mítico-religiosas, para buscar seu fundamento da razão. Basicamente o direito natural se divide em duas fases: a primeira antiga que surgiu com a Cidade-Estado grega e usa a natureza como fonte da lei que tem a mesma força em toda parte e independe da diversidade de opiniões.
Hugo Grócio inaugurou uma nova concepção do Direito Natural. O princípio último de todas as coisas não seria de Deus, nem a natureza, mas a razão.
Estava criada a Escola Clássica de Direito Natural que teve como representantes como: Hugo Grócio (Huig Van Der Groot), Samuel Pufendorf e John Locke.
Os diversos autores do jusracionalismo não concordavam entre si, e autores como Henrique e Samuel Coccejo, Leibniz e Wolf adotaram posição antiracionalistas, afirmando que Deus é a fonte última do Direito natural, o que contrariava a famosa assertiva de Grócio: “O Direito Natural existiria mesmo que Deus não existisse, ou ainda que Deus não cuidasse das coisas humanas”.