Conquistas e Constituição

A memória Constitucional e as conquistas sociais

A memória constitucional é aquilo que deriva das experiências constitucionais, não apenas das constituições, mas principalmente dos fatos, do mundo fenomênico que ensejou fundamento ao desenvolvimento até as Constituições atuais. Não se baseia unicamente, desta feita, em ideias de juristas, em abstrações apriorísticas, mas em pragmática resultante da experiência, de um quase materialismo onde se interpreta construtivamente. Nesse passo, ao fim surge a jurisprudência Constitucional, o conjunto de julgados que dá corpus a essa ideia jurídica chamada Constituição, a qual pode ou não estar refletida em normas. As memórias são assim também fatos históricos, que aparentemente não se ligam ao texto constitucional, mas principalmente a direitos e princípios colocados na mesma, como exemplo de luta pela liberdade dos escravos, dos direitos da mulher, da igualdade ao direito de voto, etc. Assim, fatos como a construção de um quilombo, manifestações feministas, proclamação da independência, instauração da república, guerra do Contestado entre outros colaboram para a fundamentação dessa memória constitucional, principalmente no que há de mais relevante na mesma, ou seja, os direitos fundamentais. Sobre a memória já falou Aristóteles : “É da memória que os homens derivam a experiência, pois as recordações repetidas da mesma coisa produzem o efeito de uma única experiência” . Desse modo, a memória faz olhar para o passado, num quase atavismo que inclina a que se mude o que não colabora para o bem estar social, para o contrato social, ou melhor, para o cidadão e a sociedade. Mundialmente vimos como fato o marco da Revolução Francesa, o que acabou por ser uma luta inicial contra a tirania, o que futuramente iria motivar a independência dos países colonizados. A luta nessa fase histórica, o que nos resta como memória constitucional, é a do liberalismo. Motivada por ideologias de pensadores principalmente ingleses e franceses, iluministas, ou como já falei em outro texto, maçons, resultou principalmente na defesa do direito de propriedade e de liberdade, tremulando em bandeiras com triângulos e lemas de “liberdade, igualdade e fraternidade”. No Brasil Don Pedro, grão mestre da referida sociedade iniciática, deu o grito de “fico” justamente porque aqui não estava só, porque tinha auxílio de irmãos maçons. Mas a Revolução Francesa foi em verdade obra de outra sociedade dita secreta, ou seja, os Illuminati, que querem mais do que deixar memórias constitucionais, querem modificar o mundo, criando um governo mundial, moeda mundial, controle de governantes nacionais etc. Bem, isso é história que não temos muita memória, que deixamos ao inconsciente, assim como o havia teorizado Sigmund Freud. Aproveitando a questão do imperado brasileiro, a nossa Constituição imperial não deixou-nos grande memória a título de progresso, sendo quase plágio da francesa. Cabe a nós vermos o que ocorreu antes, com a Idade Média, onde já se reconheciam alguns direitos, como atesta Alexandre de Moraes, : “A noção de constitucionalismo na Idade Média passou, de maneira mais aparente, a interligar-se com a ideia de limitação do poder estatal e proteção do indivíduo da atuação arbitrária das autoridades públicas. A luta constitucional do século XVII não foi tão simples como outrora apresentada pelos historiadores, pois as disputas entre o despotismo e a liberdade não estavam claramente definidas”. O problema não se vê solucionado com Constituições como a do império do Brasil, onde apenas se veem refletidas tendências como a escravagista, de monocultura, de voto censitário e nada mais sendo que voz elitista de um imperador, deixando um pouco de poder ao legislativo e quase nenhum ao judiciário, este último, utilizando um termo francês, “mera boca da lei”. Já com a outra constituição, a republicana, pelo menos colocamos a possibilidade de exercer o poder nas mãos de mais gentes. Com a res publica (coisa pública) fundamentada num texto constitucional, tivemos nesta um fundamento mais sólido, uma vez que até hodiernamente vivemos na república, com a CF de 1988. Já na de 1967 com a emenda de 69, vimos a instituição de uma nova tirania, agora militar, como seus atos institucionais, o mais famoso o n° 5, onde foram suprimidos uma série de direitos. Bom enfoque coloca Pontes de Miranda : “Pode-se dizer que a Constituição – a primeira – nos foi dada ao nascermos. Procuramo-la e demoramos em achá-la. Outorgaram-no-la. A segunda que tivemos, fizemo-la, mas fizemo-la porque a Monarquia caíra sem levar consigo os monarquistas. Mais uma vez o constitucionalismo brasileiro se ligou a fato que o acarreta. Não foi diferente o que ocorreu em 1934. Porque 1930 não foi nem partiu da vontade de uma Constituição: 1930 produziu 1932, que a apressou, e 1934, que a realizou. 1937 foi crítica, a súbitas, a 1934, mais crítica em parte, e continuação em muitas regras jurídicas, principalmente às Emendas. 1946 propôs-se raspar o 1937, que se tornou, até então, a regressão maior da nossa história”. Havia mais feição sistemática que costumeira, mais legislar que fundamentar a vontade do povo, a democracia. A memória constitucional estava assim fundamentada, com suas sete constituições, com esse número quase cabalístico. Mas não foram os textos que influenciaram atuais conquistas do controle de constitucionalidade, pois o Poder Judiciário, através do STF, fez desse último antes mero tribunal de recursos, não uma corte constitucional como a vemos na de 1988. Fatos como revoltas populares, guerras como cabanagem ou Contestado, movimentos estudantis, manifestações culturais, diretas já, etc, estes fatos fundamentaram o que conhecemos como memória constitucional, mais do que letras, frases prometendo igualdade ou liberdade formal, quando se viam escravos ou mulheres sem direito a voto, na realidade.

Destarte, sobre a função das memórias constitucionais, vemos que é de fundamento, de real propósito, além da mera norma programática. São assim mais do que jurídicas, são também econômicas, sociais, políticas. Nesse sentido lembra Coelho : “Como o direito participa do mundo da cultura, o conhecimento das normas jurídicas, também ele, está submetido a todas as vicissitudes que singularizam o processo gnosiológico das coisas do espírito, o que se constitui num motivo adicional para não se exigir mais objetividade aos sujeitos da interpretação”. Assim, vimos a evolução do constitucionalismo liberal ao social, principalmente com a de 1937, com advento da CLT, colocando na prática o que defendeu Canotilho. Também Miguel Reale colocava numa obra a experiência e a cultura como relevantes. Mesmo as grandes guerras tiveram grande influência, principalmente no que tange aos direitos humanos, sendo memórias tristes, mas difíceis de esquecer à humanidade, nos demonstrando que a função das memórias constitucionais é sumamente para a evolução constitucional, surgindo não somente do âmbito jurídico. As memórias constitucionais são assim mais amplas do que vemos em manuais de direito constitucional, onde se colocam apenas as Constituições e suas características, são também econômicas, políticas e sociais, refletindo um desiderato bem mais amplo.

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