Common Law e o sistema constitucional inglês:
                                                   breves reflexões




            Como sistema de direito construído historicamente, o common law apresenta diversas peculiaridades concernentes à sua formação e aos modos pelos quais ele foi e é aplicado. Para que se compreenda o funcionamento do regime constitucional inglês, no âmbito desse common law, é preciso antes ter uma breve notícia acerca do significado e das características fundamentais de uma constituição ocidental. 

          Assim, cabe agora compreender como se formou e se caracterizou o sistema de common law inglês e seu correspondente regime constitucional. Preliminarmente, o autor John Gilissen (1) define o common law da seguinte maneira: 


“Dá-se o nome de common law ao sistema jurídico que foi elaborado em Inglaterra a partir do século XII pelas decisões das jurisdições reais. Manteve-se e desenvolveu-se até os nossos dias, e além disso impôs-se na maior parte dos países de língua inglesa, designadamente nos Estados Unidos, Canadá, Austrália, etc (...). o sentido de common law é, pois, muito diferente do sentido da expressão direito comum, ius commune, utlizada no continente para designar, sobretudo a partir do século XVI, o direito erudito, elaborado com base no direito romano e servindo de direito supletivo às leis e costumes de cada país.”

             Frise-se, nesse sentido, que o common law não corresponde a todo o direito inglês. O statute law (os estatutos ou conjunto de leis promulgadas) teve desenvolvimento marginal ao common law e adquiriu importância a partir do século XX. Há ainda a equity, que se desenvolveu primordialmente no período anterior ao século XV, consistindo em um conjunto de regras jurídicas aplicadas pelos órgãos jurisdicionais sudordinados ao Chanceler. 

           No que concerne à formação do common law, deve-se considerar especialmente a organização das jurisdições reais, durante o século XII, implementada por meio de reformas do rei Henrique II e já descrita de forma clara por Harold Berman. Dessa forma, cabe apenas relembrar o modo pelo qual era efetivada a organização judiciária inglesa. Em princípio, havia A Curia Regis, Tribunal do rei, que se seccionou em diferentes jurisdições especializadas: 

a) Tribunal do Tesouro (Saccarium, Court of Exchequer), com competência para o julgamento de finanças e outras lides fiscais;
b) Tribunal de Queixas Comuns (Court of Common Pleas), incumbido de julgar litígios concernentes à posse de terra;
c) Tribunal do Banco do Rei (King’s Bench), tribunal itinerante que julgava os crimes perturbadores da paz do reino. 


           Além de tal organização judiciária, Henrique II ainda implementou o sistema dos writs (escritos com que o Chanceler se pronunciava a respeito de conflitos), contra o qual os senhores feudais lutaram. Nesse sentido, recorde-se que é equivocado dizer que a Carta Magna seria uma das precursoras de uma constituição em sentido formal. A mesma apenas continha alguns elementos constitucionais, como a idéia de devido processo legal. A primeira constituição formal só foi ser promulgada em 1787, nos Estados Unidos. 


            Destarte, há duas grandes influências sobre a forma e a substância da Constituição britânica. A primeira delas diz respeito à gradual e pacífica transição inglesa de um regime autocrático para uma democracia e um governo limitado. Já a segunda é concernente à importância que as decisões judiciais têm no âmbito do common law. Essas influências, dentre outras, contribuíram para a atual conformação do sistema constitucional inglês. É óbvio que não se trata aqui de uma relação de “bicausalidade”, no sentido de que somente esses dois fatores aludidos tenham possibilitado a configuração dos aspectos constitucionais britânicos, mas tais fatores foram preponderantes para que a mesma ocorresse. 


             E quais são as principais características desse sistema constitucional britânico ? A monarquia como forma de governo; a inexistência de separação de poderes (fala-se em colaboração de poderes); o governo misto, com a existência de órgãos como as Câmaras dos Lordes e dos Comuns e o Parlamento, entre outras. 


           Quanto à colaboração de poderes existente na Inglaterra, saliente-se a peculiaridade britânica de não dispor de poderes separados (um dos requisitos que os franceses estabeleceram, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, como imprescindíveis para que um país tivesse uma constituição). Já no que concerne aos órgãos governamentais ingleses, é necessário ressaltar alguns fatores históricos concernentes aos mesmos. A Câmara dos Lordes teve origem na nobreza e no clero britânicos do século XIII (havia os lordes espirituais e temporais) e, atualmente, constitui a corte máxima da Inglaterra. Já a Câmara dos Comuns originou-se na pequena burguesia urbana e rural, também durante o século XIII, e representa até hoje o caráter democrático do governo inglês.


             Desse modo é composto o governo misto inglês, com o rei representando a monarquia; a Câmara dos Comuns como representante da democracia e, enfim, a Câmara dos Lordes, associada durante séculos à aristocracia. Ressalte-se que tal governo misto não permaneceu intocado ao longo do tempo, mas passou por crises e teve, de certo modo, que se adaptar às novas contingências sócio-políticas que foram surgindo na Inglaterra. Cabe ainda mencionar que a união das duas Câmaras referidas forma o Parlamento, cujas origens também remontam ao século XIII.
         Após todo essa explanação sobre o common law e o regime constitucional inglês, algumas críticas podem ser levantadas quanto à forma pela qual ele se desenvolveu e foi historicamente construído. Apesar de que os ingleses defendam ardorosamente sua originalidade e tradição, é preciso compreender o common law não como uma construção exclusivamente britânica, mas como um produto de transformações históricas cujas características não foram apenas inglesas. Por mais evidente que tal afirmação possa parecer, é preciso ressaltá-la, de modo a evidenciar o fato de que os sistemas jurídicos (de origem anglo-saxã, romano-germânica etc) não devem ser compreendidos como modelos estanques e herméticos de uma determinada cultura.
Dessa forma, observa-se uma série de razões econômicas e ideológicas por trás da idéia britânica de supervalorização de seu sistema jurídico, como um produto genuinamente inglês. 

            Em primeiro lugar, a predominância econômica da Inglaterra no contexto mundial, verificada principalmente nos séculos XVIII e XIX, concedia-lhe um status de potência hegemônica cujas repercussões ocorriam também no âmbito jurídico. Ora, como poderia uma potência, em plena expansão econômica, deixar de fazer uso de um direito que se sobrepusesse aos sistemas jurídicos dos países sob sua hegemonia ? E, assim, esse mesmo direito não deveria ser tão mais racionalizado e eficaz do que os sistemas jurídicos dos países economicamente dependentes da Inglaterra, a ponto de sobrepujar-lhes ? 

              Por mais que essas indagações induzam a respostas afirmativas de uma certa prepotência jurídica que, atualmente, não é apenas britânica, mas também norte-americana ou mesmo anglo-saxã, o fato é que a economia indubitavelmente gera influências sobre o direito. Nesse sentido, é provável que a tendência relativa a países economicamente fortes de realçar suas características, como se fossem as melhores, também tenha tido repercussões na esfera jurídica. Em outras palavras, se o direito for aqui considerado como um produto cultural, torna-se fácil perceber que (via de regra) as ditas potências econômicas tentam impor sua cultura aos demais países como se a mesma fosse, falsamente, melhor ou superior. Portanto, como o common law é parte integrante da cultura britânica ou do american way of life tão difundido pelos cinemas do mundo, nada mais factível do que passar a imagem desse direito como um sistema racional, justo, equânime e infalível . 
              
           Não se trata aqui de fazer uma correlação unicausal entre economia e direito ou entre economia e qualquer outra coisa, tal como costumavam fazer os pensadores de cunho marxista, mas o objetivo da crítica mencionada é apenas o de salientar como a afirmação excessiva do common law por parte dos ingleses ou norte-americanos não é, nem poderia ser, gratuita. É antes elemento de uma forte ideologia de pseudosuperioridade que constantemente é inserida nos chamados países de terceiro mundo. 

                Enfim, o que se pretendeu demonstrar por meio das observações aludidas neste trabalho é a necessidade de cautela para a compreensão e a análise de sistemas jurídicos, em especial o common law. Nesse sentido, preconceitos e generalizações mais obscurecem que auxiliam o entendimento do que realmente significa um determinado sistema de direito. Assim, é necessária sempre uma prévia perquirição histórica para que se compreenda, de forma efetiva, o funcionamento das bases jurídicas de um certo lugar. 


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

(1) GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. Trad. de A. M. Botelho Hespanha e I.M. Macaísta Malheiros. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.

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