A VIRTUALIZAÇÃO DOS TÍTULOS DE CRÉDITO E O PRINCÍPIO DA CARTULARIDADE
A VIRTUALIZAÇÃO DOS TÍTULOS DE CRÉDITO E O PRINCÍPIO DA CARTULARIDADE
Kleydson Muniz da Silva
Sumário: 1. Introdução, 2. Considerações iniciais, 2.1. Conceito, 2.2 Princípios, 2.3. Legislação, 2.4. Requisitos formais dos títulos de crédito, 3. As relações negociais no meio digital, 4. O fenômeno da virtualização dos títulos de crédito e o princípio da cartularidade, 4.1. Evolução histórica, 4.2. Certificados digitais, 4.3. Duplicatas virtuais, 5. Circulação dos títulos de crédito eletrônicos, 6. Protesto e execução, 7. Conclusão, 8. Referências.
Resumo
Os títulos de crédito são utilizados como forma de dar autonomia às relações negociais e maior portabilidade aos direitos creditórios. Este trabalho perquire a evolução e inserção dos títulos de crédito no ramo tecnológico. O presente artigo visa analisar, no âmbito jurídico, essas relações digitais, buscando os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, sobretudo acerca da contraposição ao princípio da cartularidade e os impactos do objeto do tema no ordenamento jurídico. Para tanto, foram realizadas pesquisas no âmbito doutrinário, legislativo, jurisprudencial e no direito consuetudinário, por meio físico e virtual, inclusive através de artigos prévios em revista especializada acerca do tema. Com isso, verifica-se que as relações negociais, no meio telemático, estão cada vez mais presentes na sociedade e a desmaterialização dos títulos de crédito tornou-se um meio fundamental para manejar esse comércio eletrônico. Dessa forma, intenta-se contribuir com maiores esclarecimentos sobre o objeto do estudo, como a utilização de certificação digital nessas transações, além de ousar em propor novos caminhos legislativos e doutrinários para viabilizar um melhor amparo desse fenômeno na atualidade.
Palavras-chaves: títulos de crédito eletrônicos, cartularidade, certificação digital.
THE VIRTUALIZATION OF THE NOTES RECEIVABLE AND THE PHYSICAL FORM PRINCIPLE
Abstract
The notes receivable are used as a way to empower business relationships and provide more portability to receivables. This paper pursuits the evolution and insertion of the notes receivable in the technology field. This article aims to analyze, in the legal matter, these digital relationships, seeking doctrinal and jurisprudential understandings, especially faced with the principle of physical form principle and the theme’s impact in the judicial system. To this end, studies were carried out under doctrinal, legislative, judicial and common law researches, through physical and virtual, including previous articles at specialized electronic journals. Thus, it appears that the business relationships inside telematics are increasingly present in society and the dematerialization of notes receivable has become a fundamental way to manage this e-commerce. Thus, the paper attempts to contribute with further information about the object of study, such as the use of digital certification in these transactions, and dare to propose new legislative and doctrinal paths for achieving better protection of this phenomenon today.
Keywords: notes receivable, physical form principle, digital certification.
1. Introdução
A palavra crédito tem origem, etimologicamente, do latim credere, creditum. Trata-se de um ato de confiança em que o credor espera um pagamento futuro do devedor. Os títulos de crédito simbolizam, portanto, a representação de um direito creditório.
O surgimento dos títulos de crédito remonta à Idade Média como forma de propiciar a circulação mais rápida e segura dos valores em contraposição aos meios mais arcaicos e de difícil circulação como, por exemplo, o escambo.
Os comerciantes da época sofriam com os frequentes roubos e tinham dificuldades em movimentar grandes quantidades de dinheiro, portanto foi criada a letra de câmbio com o objetivo de se transferir valores de uma cidade a outra de uma forma mais eficaz, facilitando as relações comerciais vigentes.
É fato que os documentos creditórios estão presentes até hoje face à sua rapidez, segurança e mobilidade de circulação de valores nos negócios jurídicos. Ademais, as relações comerciais evoluíram de tal sorte que novas ferramentas creditícias foram surgindo. Além da letra de câmbio, documentos outros, como o cheque e a duplicata levam portabilidade e autonomia a um direito creditício.
Com o advento da informática nas relações comerciais, tornaram-se necessárias novas ferramentas para acompanhar essa evolução digital. O Direito Cambial adaptou-se para enquadrar uma nova forma de representação do documento cambial: os títulos de crédito eletrônicos.
Embora seja um recurso novo, o legislador pátrio já faz menção à possibilidade da representação cambial por via eletrônica. O art. 889, § 3º, traz, in verbis:
Art. 889. Deve o título de crédito conter a data da emissão, a indicação precisa dos direitos que confere, e a assinatura do emitente. (...)
§ 3o O título poderá ser emitido a partir dos caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente e que constem da escrituração do emitente, observados os requisitos mínimos previstos neste artigo.
Nesse contexto, debruça-se o presente artigo, na análise desses títulos de crédito veiculados por meio eletrônico em face do princípio da cartularidade, que, em regra, pressupõe a existência de um documento físico, como papel ou pergaminho. Lado outro, em face dos modernos meios de negociações informatizadas, perceberemos uma flexibilização desse princípio.
2. Considerações Iniciais
2.1. Conceito
Antes de adentrar ao tema em si, mister se faz realizar uma abordagem geral acerca dos títulos de crédito. Nesse diapasão, cabe ressaltar: que é título de crédito?
Conforme mencionado em linhas anteriores, a palavra crédito decorre do latim credere, creditum, assim sendo, crédito implica em um ato de confiança acerca de uma obrigação pecuniária a ser, em regra, adimplida futuramente.
Para REQUIÃO (2011, p.440), “Não configura o crédito um agente de produção, pois consiste apenas em transferir a riqueza de A para B. Ora, transferir evidentemente não é criar, nem produzir”.
Ora, e os títulos de crédito? São documentos que representam esses direitos creditórios. Esses documentos materializam a promessa do pagamento; a confiança do cumprimento da obrigação é corporificada no papel, na cártula.
O código civil de 2002, em seu art. 887, traz um conceito, sobretudo principiológico, acerca dos títulos de crédito afirmando ser o “documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido, somente produz efeito quando preencha os requisitos da lei".
O título é um documento, mas não é qualquer documento; é aquele que atende determinados requisitos legais conforme positivado nas leis cambiais. Tal conceito advém do entendimento clássico da doutrina de VIVANTE que diz que o "Título de crédito é um documento necessário para o exercício do direito literal e autônomo nele mencionado" (apud REQUIÃO:2011).
Pela decorrência lógica dos conceitos aqui abarcados, em não se existindo o documento físico, em tese, não há título e, portanto, não há executoriedade. Em nosso trabalho, verificaremos uma atipicidade desse princípio, fator denominado de desmaterialização dos títulos de crédito, ante às mais modernas formas de negociação eletrônica.
2.2. Princípios
São princípios dos títulos de crédito decorrentes do conceito legal:
a) Cartularidade
Pela cartularidade entende-se que o título é meio físico, corpóreo, sem o qual inviabiliza a representação do crédito. NEGRÃO (2011) afirma que “A pessoa detentora do título - de boa-fé - é reconhecida como credora da prestação nele incorporada e, inversamente, sem a representação do título não há como obrigar o devedor a cumprir a obrigação inscrita no título”.
Logo, em não se havendo o documento, meio material (papel) não há título. Este princípio pode ser flexibilizado conforme a ser apurado posteriormente.
b) Literalidade
Pela literalidade verifica-se que apenas se pode exigir o que está escrito no título. Qualquer obrigação que não esteja no título não pode ser exigida por meio dele. Considera-se, ainda, que, em caso de divergência numérica, o valor considerado é o delimitado por extenso.
A este princípio cabem salutar intelecções da Lei Uniforme de Genebra:
Art. 13. O endosso deve ser escrito na letra ou numa folha ligada a esta (anexo). Deve ser assinado pelo endossante. O endosso pode não designar o benefício, ou consistir simplesmente na assinatura do endossante (endosso em branco). Neste último caso, o endosso para ser válido deve ser escrito no verso da letra ou na folha anexa.
Art. 25. O aceite é escrito na própria letra.
Art. 31. O aval é escrito na própria letra ou numa folha anexa. (...)
Art. 50. Qualquer dos coobrigados, contra o qual se intentou ou pode ser intentada uma ação, pode exigir, desde que pague a letra, que ela lhe seja entregue com o protesto e um recibo. Qualquer dos endossantes que tenha pago uma letra pode riscar o seu endosso e os dos endossantes subsequentes
(Grifos nossos).
Percebe-se, dessa forma, que só cabe a obrigação daquilo que está especificamente inscrito no título. Seja a vinculação do endossante com a sua assinatura no verso (endosso por garantia, por exemplo) ou, ainda, a vinculação de um avalista como coobrigado (assinatura na frente do título).
Por decorrência, entende-se que toda declaração deve ser interposta no título, por exemplo, quem são os endossatários, avalistas, se há garantia de endosso, risco no endosso, qual o valor e se houve a quitação.
c) Autonomia
Esse princípio implica que, ao possuidor de boa-fé do título, não cabe arguir vícios do negócio jurídico das relações obrigacionais anteriores ao recebimento do título. Ora, trata-se da autonomia das obrigações, princípio pelo qual viabiliza a circulação dos títulos de crédito. Caso contrário, a sua finalidade de transferência de créditos restaria prejudicada.
NEGRÃO (2011) preleciona que:
A autonomia é a característica dos títulos de crédito que garante a independência obrigacional das relações jurídicas subjacentes, simultâneas ou sobrejacentes à sua criação e circulação e impede que eventual vício existente em uma relação se comunique às demais ou invalide a obrigação literal inscrita na cártula.
Decorrem do princípio da autonomia duas consequências: a abstração das obrigações e a inoponibilidade das exceções pessoais. Pela primeira entende-se que as obrigações são independentes entre si e pela segunda implica na impossibilidade de se alegar vícios, ao possuidor de boa-fé, de obrigações de que este não participou.
Nessa intelecção, elucida o art. 17 da LUG:
Art. 17. As pessoas acionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador exceções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor.
2.3. Legislação
Os títulos de crédito são regidos por diversas fontes legais nacionais e internacionais. Uma das mais importantes é a Lei Uniforme de Genebra (LUG), regulamentada pelo Decreto nº 57.663 de 24 de Janeiro de 1966.
Ao que pese ser esta Lei um acordo internacional, ficou reservado no próprio Decreto nº 57.663/66, a aplicação da lei pátria ante a uma discordância com a LUG . A própria letra de câmbio regida na LUG, por exemplo, esta regulamentada no Decreto nº 2.044/1908 que "Define a letra de câmbio e a nota promissória e regula as Operações Cambiais". Em caso de divergência, aplica-se o último.
Ademais, os títulos de crédito estão regulamentados, de forma genérica, no Título VIII do Código Civil de 2002. Cabe, entretanto, verificar que a Lei especial (Lei de cheque, por exemplo) se sobrepõe à regra geral do Código.
2.4. Requisitos formais dos títulos de crédito
São requisitos formais dos títulos de crédito:
a) Nome do título;
b) Assinatura do subscritor;
c) Identificação de quem deve pagar;
d) Identificação do direito creditício;
e) Data de vencimento (na omissão, presume-se como à vista);
f) Data de emissão;
g) Data do pagamento;
h) Local da emissão.
No entanto, leis especiais podem mencionar requisitos outros específicos de cada título de crédito.
Dentre os vários documentos creditórios podem ser mencionados: a letra de câmbio; a nota promissória; o cheque; a duplicata; os títulos de crédito rural (nota promissória rural, duplicata rural, cédula rural pignoratícia, cédula rural hipotecária, cédula rural pignoratícia e hipotecária e nota de crédito rural); os títulos de crédito industrial (cédula de crédito industrial e nota de crédito industrial); as debêntures; o warrant; o conhecimento de transportes; as ações; os títulos da dívida pública; a letra imobiliária; e a cédula hipotecária .
3. As relações negociais no meio digital
A evolução tecnológica é, sem sombra de dúvidas, um movimento constante na nossa sociedade. Com ela, novas formas de comunicações e mais rápidas possibilitam o alavancamento dos negócios jurídicos, independente da distância dos contratantes.
Se as relações negociais estão cada vez mais presentes no mundo telemático, por óbvio, as formas de pagamento e transferências de valores acompanham esses contratos. Os títulos de crédito não escapam dessa realidade.
O contrato, como conhecido na doutrina, é a junção de vontades entre duas ou mais pessoas no intuito de se criar, modificar ou extinguir um direito. Na era tecnológica, ao que pese não haver extensa legislação a respeito, este cumpre os mesmos requisitos do Código Civil, abarcando, porém, algumas características peculiares ao seu meio.
Patrícia Peck Pinheiro, em sua obra Direito Digital , traz algumas dessas peculiaridades que devem nortear os contratos eletrônicos. São elas:
a) indicação clara das responsabilidades de todos os participantes da cadeia de relações envolvida, principalmente porque a Internet privilegia as relações em rede, com vários co-participantes e especial atenção nos direito do consumidor final; b) estabelecer uma política de informação clara; c) política de segurança e privacidade; d) cláusulas de arbitragem; e) territorialidade, estabelecendo os limites geográficos de ação de cada envolvido; f) relação dos parceiros envolvidos no negócio; g) no caso de os produtos transacionados envolverem tecnologia, estabelecer responsabilidades por upgrades e obsolência.
E arremata, trazendo o polêmico tema da força probante dos contratos eletrônicos . Independentemente de lacuna legal, que regule os contratos eletrônicos, estes mantém sua força jurídica, desde que cumpram os requisitos já estabelecidos no Código Civil. Não há uma vedação expressa.
Cabe, entretanto, ressalvar dois elementos essenciais, quais sejam: a autenticidade e a integridade. Pelo primeiro, comprova-se a autoria; pelo segundo, a não alteração dos dados emitidos. Essa garantia, chamada de certificação digital, se dá pela assinatura digital. Tais recursos garantem, também, a autenticidade de documentos, como os títulos de crédito eletrônicos.
4. O fenômeno da virtualização dos Títulos de Crédito e o Princípio da Cartularidade
4.1. Evolução histórica
Por força das novas formas de negociações que trafegam no âmbito do mundo digital, os meios de transferências de valores também foram influenciados por esse movimento tecnológico. Os títulos de créditos eletrônicos ganharam forçam, no entanto, o tema sofre obstáculos em decorrência da inércia do legislador e da falta de um conhecimento mais aprofundado por parte dos doutrinadores.
Lado outro, o movimento da desmaterialização dos títulos de crédito não é tão recente quanto se pensa. ALBERNAZ pontua que,
Este movimento teve início na França, onde se procurou minimizar a necessidade de entrega de documentos nos negócios bancários pela criação, por exemplo, com a implantação em 1967, e aperfeiçoado em 1973, da lettre de change-relevé, uma letra de câmbio que não circula materialmente: o cliente já remete ao banco os seus créditos sob forma de fitas magnéticas, acompanhadas de um borderô de cobrança, inexistindo a circulação do título. Posteriormente na Alemanha, visando vantagens operacionais e redução de custos. Já na década de 70, a França substituiu por completo o papel na emissão e circulação de títulos representativos de crédito.
Em 1996, a Organização das Nações Unidas editou a Lei UNCITRAL (United Nations Commission on International Trade Law) acerca do comércio eletrônico, tendo como escopo orientar o legislativo dos países na elaboração de leis que visem a regular e dar mais segurança às negociações eletrônicas. Trata-se de uma espécie de lei modelo dispondo sobre princípios gerais do comércio eletrônico.
Um dos princípios mais importantes que podemos extrair desta lei modelo é o princípio da equivalência funcional também chamado de princípio da não discriminação . Dessa forma, o meio eletrônico ganha o mesmo status que o meio físico.
Passadas décadas desde o surgimento da desmaterialização dos títulos de crédito, o tema ainda é controverso no Brasil. No entanto, foi com a Medida Provisória No 2.200-2, de 24 de agosto de 2001 , que primeiro se regulou a certificação digital no País, estruturando-se as Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, para garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica, das aplicações de suporte e das aplicações habilitadas que utilizem certificados digitais, bem como a realização de transações eletrônicas seguras.
Vimos, ainda, que o art. 889, § 3º já faz uma menção sorrateira aos títulos de crédito eletrônicos ou meio equivalente . No entanto, a fim de garantir os requisitos básicos de um título (como assinatura do emitente), são necessários alguns recursos insertos no objeto do tema.
Outrossim, o código civil, em seu art. 225, ensina que
As reproduções fotográficas, cinematográficas, os registros fonográficos e, em geral, quaisquer outras reproduções mecânicas ou eletrônicas de fatos ou de coisas fazem prova plena destes, se a parte, contra quem forem exibidos, não lhes impugnar a exatidão.
(Grifos nossos)
Nesse diapasão, verifica-se que a emissão e a circulação dos títulos de crédito eletrônicos não podem ser feitos de qualquer forma. São necessários requisitos específicos a fim de assegurar a autoria e a integridade do título ou do seu endosso.
Assim, existe o certificado digital que é um documento eletrônico que garante proteção às transações online e a troca virtual de documentos, mensagens e dados, com validade jurídica .
Que são esses certificados? Quem os emitem? Trata-se de assunto do próximo tópico.
4.2. Certificados digitais
Alexandre Cateb comenta que:
[...] por meio de um certificado digital, qualquer pessoa pode assinar um documento eletrônico, conferindo a ele a qualidade de um documento legítimo. O certificado digital da ICP-Brasil, garante validade jurídica aos atos praticados com seu uso e personifica a figura do autor do documento. Transações virtuais, sem a presença física do interessado, tem no certificado digital a identificação inequívoca da pessoa que a está realizando .
Logo, o certificado digital garante a assinatura do emitente, requisito essencial dos títulos de créditos. O documento digital, certificado nos moldes da medida provisória nº 2200-2/2001, equipara-se ao documento físico, com as mesmas consequências do meio digital (por exemplo, possibilidade de endosso, aval, etc.).
Conforme definido na Medida Provisória 2.200-2-2001, o Instituto Nacional de Tecnologia e Informação, autarquia federal, é a Autoridade Certificadora Raiz, incumbido-lhe:
Art. 5o À AC Raiz, primeira autoridade da cadeia de certificação, executora das Políticas de Certificados e normas técnicas e operacionais aprovadas pelo Comitê Gestor da ICP-Brasil, compete emitir, expedir, distribuir, revogar e gerenciar os certificados das AC de nível imediatamente subseqüente ao seu, gerenciar a lista de certificados emitidos, revogados e vencidos, e executar atividades de fiscalização e auditoria das AC e das AR e dos prestadores de serviço habilitados na ICP, em conformidade com as diretrizes e normas técnicas estabelecidas pelo Comitê Gestor da ICP-Brasil, e exercer outras atribuições que lhe forem cometidas pela autoridade gestora de políticas.
As Autoridades Certificadoras são definidas pela Autoridade Certificadora Raiz que é o ITI, conforme já visto. Dentre as Autoridades Certificadoras estão: Caixa Econômica Federal, Serpro, Certsign, Serasa, Receita Federal, Imprensa Oficial de São Paulo, a Autoridade Certificadora da Justiça, a Autoridade Certificadora da Presidência da República e a Autoridade Certificadora da Casa da Moeda do Brasil .
Nessa intelecção:
Art. 6o Às AC, entidades credenciadas a emitir certificados digitais vinculando pares de chaves criptográficas ao respectivo titular, compete emitir, expedir, distribuir, revogar e gerenciar os certificados, bem como colocar à disposição dos usuários listas de certificados revogados e outras informações pertinentes e manter registro de suas operações .
Por fim, na escala de hierarquia estabelecida na Medida Provisória 2200-2/2001, vem as Autoridades de Registro, cabendo-lhe "identificar e cadastrar usuários na presença destes, encaminhar solicitações de certificados às AC e manter registros de suas operações".
Dessa forma, as declarações emitidas no título, quando certificadas dentro dos padrões da ICP-Brasil, ganham força jurídica, conforme art. 10 da Medida Provisória 2200-2/2001, in verbis:
Art. 10. Consideram-se documentos públicos ou particulares, para todos os fins legais, os documentos eletrônicos de que trata esta Medida Provisória.
§ 1o As declarações constantes dos documentos em forma eletrônica produzidos com a utilização de processo de certificação disponibilizado pela ICP-Brasil presumem-se verdadeiros em relação aos signatários, na forma do art. 131 da Lei no 3.071, de 1o de janeiro de 1916 - Código Civil .
Um certificado digital pode ter validade entre 01 (um) a 03 (três) anos. Dentre os certificados digitais que atestam a assinatura digital temos o e-cpf e o e-cnpj. O e-cpf é a identificação da pessoa física no meio virtual, sendo-lhe possível, dentre outros, enviar declaração de imposto de renda, por exemplo. Já o e-cnpj é a identificação da empresa e, através dele, é possível, por exemplo, emitir notas ficais eletrônicas (NFe).
Questionado quanto à possibilidade de fraude dos títulos de créditos eletrônicos, ULHÔA afirma que, assim como o papel, no meio eletrônico também se vislumbra a possibilidade de se apurar a quebra da integridade do título. Para ele,
adotadas certas tecnologias, hoje acessíveis a todos, se houver alguma alteração no conteúdo de certo arquivo eletrônico, isto deixará pistas que um perito pode detectar e, por vezes, desfazer. A única diferença é que as pistas da adulteração do papel são físicas e as do arquivo eletrônico são eletrônicas .
A tecnologia mencionada é a da certificação digital. Consiste, portanto, em atestar a autenticidade de uma mensagem de outrem e criptografá-la para que apenas o destinatário a receba (sem alterações) e que este tenha certeza quanto à autoria do documento.
Exemplificando, A emite um título e o submete para a Autoridade Certificadora para atestar a sua autoria e autenticidade. O título é então criptografado para daí ser encaminhado ao destinatário B. Uma vez emitido e certificado, o título não mais pode ser alterado sem que a chave aponte a adulteração. Tal método preserva a integridade das declarações.
4.3.Duplicatas virtuais
As duplicatas estão regulamentadas na Lei 5.474/1968. Trata-se de um título de crédito causal, em que a relação jurídica (compra e venda de mercadorias) vincula a emissão do título. A duplicata só pode ser emitida caso haja o negócio jurídico que dela anteveem. Não obstante o nexo causal, as duplicatas podem ser endossadas tomando-se, dessa forma, a abstração inerente aos títulos de crédito. Um exemplo clássico dessa autonomia é o desconto bancário de duplicatas.
Nessa intelecção, Wile Costa Duarte diz que,
A duplicata é um título causal e à ordem, que pode ser criada no ato da extração da fatura, para circulação como efeito comercial, decorrente da compra e venda mercantil ou da prestação de serviços, não sendo admitida outra espécie de título de crédito para documentar o saque do vendedor ou prestador de serviços pela importância faturada ao comprador ou ao beneficiário dos serviços. A duplicata admite o aceite do devedor e não é copia ou segunda via da fatura. Nela não se discriminam as mercadorias vendidas ou serviços prestados, o que deve ser feito na nota fiscal ou na fatura correspondente. [...] Exige uma provisão determinada, que se consubstancia no valor da compra e venda de mercadorias ou da prestação de serviços, discriminados na fatura ou na nota fiscal. Sem tal provisão, a duplicata torna-se sem lastro e é chamada fria, constituindo-se em crime de estelionato previsto no art., 172 do Código Penal por emissão de duplicata simulada.
Luiz Emydgio F. da Rosa Júnior expõe de maneira clara sobre a emissão de duplicata através do computador:
O vendedor, via computador, saca a duplicata e a envia pelo mesmo processo ao banco, que, igualmente, por meio magnético, realiza a operação de desconto, creditando o valor correspondente ao sacador, expedindo, em seguida, guia de compensação bancária, que, por correio, é enviada ao devedor da duplicata virtual, para que o sacado, de posse do boleto, proceda ao pagamento em qualquer agencia bancária.
Ora, as duplicatas virtuais revestem-se dos mesmos requisitos que as convencionais. O vendedor saca a duplicata em face do comprador em decorrência da venda de alguma mercadoria. Ocorre, então, a transmissão, que é realizada por sistema bancário, certificada com uma chave digital (emitida por uma Autoridade Certificadora) e criptografada para, finalmente, ser enviada ao comprador.
Ademais, por via online, também através do sistema bancário (certificado digitalmente) já é possível realizar o desconto bancário do título, tornando o procedimento muito mais rápido e eficiente.
Lado outro, para WILE , as duplicatas virtuais não se caracterizam como títulos de crédito, conforme entendimento a seguir:
"(...) se o título não pode e nem deve ser alterado na sua feição característica; se o “boleto” bancário não corresponde ao modelo oficial da duplicata; se no “boleto” bancário, via computador, não existe assinatura de quem quer que seja, mesmo criptografada; se não sendo duplicata, a duplicata virtual não é enviada para aceite e não recebe, por isso, aceite algum do sacado; se não é enviada a duplicata virtual ao sacado, a não ser para pagamento, o sacado não pode impugná-la nos termos dos arts. 8 e 21 da Lei de Duplicatas; essa chamada “duplicata virtual” ou “duplicata escritural” não pode e nem deve existir. É preciso combatê-la, pois não corresponde a um título típico, com base em lei especial."
Em pese o vasto conhecimento do insigne doutrinador, tal entendimento não deve prevalecer. Primeiramente, o autor utiliza-se do princípio da cartularidade para limitar o objetivo do título de crédito que é a circulação. Tal entendimento nos parecer sem muito restritivo. Ademais, a própria Medida Provisória 2200-2/2001 e a Lei UNCINTRAL emanam o princípio da equivalência entre o meio físico e o eletrônico.
De fato, o boleto bancário não corresponde a um título de crédito, pois que não se reveste dos requisitos do Direito Cambial, porém o título caracterizado aqui é a duplicata, que antecede o boleto. Na duplicata, assinada digitalmente, os requisitos estão devidamente preenchidos e esta pode ser circulada sem nenhum óbice.
Outrossim, é cristalino o entendimento do STJ acerca do tema:
EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. DUPLICATA VIRTUAL. PROTESTO POR INDICAÇÃO. BOLETO BANCÁRIO ACOMPANHADO DO COMPROVANTE DE RECEBIMENTO DAS MERCADORIAS. DESNECESSIDADE DE EXIBIÇÃO JUDICIAL DO TÍTULO DE CRÉDITO ORIGINAL.
1. As duplicatas virtuais - emitidas e recebidas por meio magnético ou de gravação eletrônica - podem ser protestadas por mera indicação, de modo que a exibição do título não é imprescindível para o ajuizamento da execução judicial. Lei 9.492/97. 2. Os boletos de cobrança bancária vinculados ao título virtual, devidamente acompanhados dos instrumentos de protesto por indicação e dos comprovantes de entrega da mercadoria ou da prestação dos serviços, suprem a ausência física do título cambiário eletrônico e constituem, em princípio, títulos executivos extrajudiciais. 3. Recurso especial a que se nega provimento.
Por fim, verifica-se que o problema se situa mais na falta de regulamentação do que no meio utilizado. Mesmo assim, a duplicata escritural eletrônica obedece aos requisitos do art. 2º, §1º, da Lei 5.474/68 (Lei das Duplicatas). A sua utilização ocorre diariamente e seu protesto não resta prejudicado pelo simples fato de ocorrer eletronicamente.
5. Circulação dos Títulos de Crédito Eletrônicos
Livia Sant´Anna Faria e Alexandre Ferreira de Assumpção Alves, em seu artigo DESMATERIALIZAÇÃO DE DOCUMENTOS E TÍTULOS DE CRÉDITO: RAZÕES, CONSEQÜÊNCIAS E DESAFIOS , lecionam que,
A transmissão de um título de crédito desmaterializado se dá através do meio eletrônico e a emissão é feita praticamente da mesma forma daquela inserida em cártula, sendo certo que os requisitos para a emissão são os mesmos do tradicional.
A transferência do titulo na forma eletrônica compreende os direitos principais e acessórios, seguindo a linha do artigo 893 do Código Civil e os direitos acessórios, previstos nos artigos 908 e 909 do mesmo diploma legal .
Ademais, o art. 45 da Lei nº 10.931/2004, traz a possibilidade do desconto bancário eletrônico dos títulos de crédito, in verbis:
Art. 45. Os títulos de crédito e direitos creditórios, representados sob a forma escritural ou física, que tenham sido objeto de desconto, poderão ser admitidos a redesconto junto ao Banco Central do Brasil, observando-se as normas e instruções baixadas pelo Conselho Monetário Nacional.
§ 1o Os títulos de crédito e os direitos creditórios de que trata o caput considerar-se-ão transferidos, para fins de redesconto, à propriedade do Banco Central do Brasil, desde que inscritos em termo de tradição eletrônico constante do Sistema de Informações do Banco Central - SISBACEN, ou, ainda, no termo de tradição previsto no § 1o do art. 5o do Decreto no 21.499, de 9 de junho de 1932, com a redação dada pelo art. 1o do Decreto no 21.928, de 10 de outubro de 1932.
§ 2o Entendem-se inscritos nos termos de tradição referidos no § 1o os títulos de crédito e direitos creditórios neles relacionados e descritos, observando-se os requisitos, os critérios e as formas estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional.
§ 3o A inscrição produzirá os mesmos efeitos jurídicos do endosso, somente se aperfeiçoando com o recebimento, pela instituição financeira proponente do redesconto, de mensagem de aceitação do Banco Central do Brasil, ou, não sendo eletrônico o termo de tradição, após a assinatura das partes.
§ 4o Os títulos de crédito e documentos representativos de direitos creditórios, inscritos nos termos de tradição, poderão, a critério do Banco Central do Brasil, permanecer na posse direta da instituição financeira beneficiária do redesconto, que os guardará e conservará em depósito, devendo proceder, como comissária del credere, à sua cobrança judicial ou extrajudicial.
(Grifos nossos).
Dúvidas não pairam sobre a possibilidade do endosso do título de crédito eletrônico. As assinaturas digitais são amplamente seguras, pois garantem a inviolabilidade da transmissão original. A alteração de qualquer informação originária é percebida, evitando falsificações.
6. Protesto e Execução
O raciocínio do protesto e da execução não poderia se dar de forma diversa ao raciocínio até então empreendido. Dada a confiabilidade da origem do título, da sua não alteração e da viabilidade das interposições de endossos e outras declarações cambiais, sem alterar o título em si, garantido pela certificação digital, resta clara a possibilidade de execução de um título de crédito eletrônico.
Nos termos do parágrafo único do artigo 8º da Lei de Protestos, poderão ser recepcionadas as indicações a protesto das duplicatas mercantis e de prestação de serviços, por meio magnético ou de gravação eletrônica de dados, sendo de inteira responsabilidade do apresentante os dados fornecidos, ficando a cargo dos tabelionatos a mera instrumentalização das mesmas.
Entende-se, dessa forma, que é de responsabilidade, daquele que apresenta o título, sobre seu conteúdo. Vimos aqui que a certificação digital propicia ferramentas que asseguram a autoria e integridade do título, porém nenhum sistema é infalível (muito menos o título em forma cartular), dessa forma a lei traz essa ressalva da norteadora da boa-fé objetiva do declarante.
Outro passo a se analisar repousa sobre a execução dos títulos de crédito eletrônicos. A Lei no 11.419/06 , que dispõe sobre a informatização do processo judicial, preleciona que os documentos produzidos eletronicamente e juntados aos processos eletrônicos serão considerados originais para todos os efeitos legais.
Além disso, o magistrado poderá determinar que sejam realizados, por meio eletrônico, a exibição e o envio de dados e de documentos necessários à instrução do processo.
Importante salientar que havendo um título eletrônico, este pode ser juntado ao processo eletronicamente, mas as assinaturas eletrônicas constantes no título devem ser igualmente acostadas aos autos. Trata-se das assinaturas de todas as partes envolvidas naquele título de crédito, inclusive de possíveis avalistas e coobrigados .
Por derradeiro, verifica-se que se existir um título eletrônico, este pode ser anexado ao processo eletrônico para fins de execução.
7. Conclusão
Novas tecnologias surgem para facilitar o dia-a-dia na sociedade. No Direito Cambial não é diferente. A informática propulsiona uma reformulação nas relações negociais e demandam uma adaptação dos institutos jurídicos existentes.
Certo que é os títulos de crédito eletrônicos são uma realidade. A indagação repousa sobre a necessidade de criar mais leis para regular o tema, em prol da segurança jurídica, ou apenas deixar que o direito consuetudinário tome as rédeas dos títulos de crédito eletrônicos.
Os costumes são importantes no Direito Comercial, mas a carência excessiva de legislação, ante à inércia do legislador, gera um pouco de insegurança no mercado e controvérsias na doutrina.
De fato, propostas novas visam a amparar tal lacuna legal. O PL nº 4906/2001 , que dispõe sobre o comércio eletrônico, é uma dessas iniciativas. No projeto, está possibilitada a substituição da assinatura em papel pela assinatura eletrônica desde que comprovada a autoria da mensagem.
A verdade é que, mesmo sem regulação mais aprofundada, o direito costumeiro há de adaptar face às e constantes e novas formas de negócios jurídicos. Nesse diapasão, concordamos com Ulhôa, ao afirmar que o princípio da cartularidade, ante ao avanço dos títulos de crédito eletrônicos, está em declínio, ou pelo menos, bastante flexibilizado.
Diante dessa virtualização, entendemos que o documento cambial eletrônico não perde seu status apenas por essa natureza. A sua executoriedade é mantida, pois que seus requisitos são mantidos. A transmutação do meio apenas viabilizou uma celeridade e até mais segurança aos negócios.
Não se pode, dessa forma, negar validade jurídica a essa ferramenta. Privilegiam-se princípios como o da equidade e o da finalidade do título cambial. Não obstante, a avalanche das modernas formas de comunicação dentro do Direito Cambial não mais se coadunam com a ignorância do legislador acerca do tema.
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