O trabalho humano ou o rastro na lua
O artigo tenta explicar o singificado trabalho no plano filosófico e social.
Gisele Leite
Tanto o homem como o animal produz, aliás, perto da abelha, o homem é um exímio preguiçoso. Mas os animais só produzem na medida do estritamente necessário para si ou para as suas crias. O animal só produz mediante uma exigência da necessidade física imediata, enquanto que o homem produz quando é livre e necessitado.
Ainda assim é difícil definir trabalho. É sempre um vir-a-ser, um projeto eternamente inacabado. É assim algo inerente ao homem.
O trabalho é ação transformadora em que o homem encontra momentos de satisfação, de realização de seus projetos, mesmo que, concomitantemente, esteja gerando novas ansiedades.
Essa relação entre a natureza e o trabalho, entre a realização humana e o cosmos é tão antiga quanto à história da humanidade. Trabalho é atividade transformadora (material ou intelectual) do homem, realizada na natureza e na sociedade em que vive.
O trabalho é primeiramente um processo entre homem e natureza, um processo em que o homem possibilita, regula e controla sua troca de substâncias com a natureza por meio de sua própria ação. Ele se defronta com a própria substância da natureza com um poder natural.
Coloca em movimento forças naturais pertencentes a seu corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, para se apropriar da substância da natureza numa forma utilizável para sua própria vida. Enquanto, nesse movimento, age sobre a natureza. Desenvolve as potências nela adormecidas e submete o jogo das forças naturais a seu próprio domínio.( Karl Marx)
O trabalho representa e espelha o humano, mas sobretudo representa a dominação do homem sobre a natureza.
Segundo Julián Marías, a vida não está feita; ao contrário, temos que a fazer, e ela é o que eu faço, é o fazer mesmo (...) Mas a vida não se define simplesmente por um fazer no sentido de mero acontecer ou atividade; fazer, em sua significação rigorosa de fazer humano é sempre o meu fazer, ou com maior precisão, eufazer.
A vida é minha, além de se fazer, é propriamente que fazer, tarefa imposta ao ser que tem de viver, destino, missão.
A mesma indignação tinha o poeta Carlos Drummond de Andrade que não se julgava um homem realizado.
A filosofia atual deu-se conta de que antes de poder falar o que a vida tem ou não, há uma preocupação de si mesma e, está essencialmente constituída pela temporada na qual não só está ou acontece como, mas sobretudo se faz.
Trabalho é, portanto tipicamente humano, o que distingue o pior dos arquitetos da melhor das formigas, é que ele projeta mentalmente a construção antes mesmo de realizá-la.
Pois o homem não transforma apenas o material em que trabalha. Ele realiza no material o projeto que trazia em sua consciência. (K. Marx) Através do concreto, o homem demonstra a apreensão do abstrato.
O trabalho foi revalorizado, e principalmente o lucro passou a ser visto como sinal da benção divina.
Hegel definiu o trabalho como elemento de autoconstrução do homem. Destacando o aspecto positivo do trabalho, como o fato de exercer sobre a natureza, a sua criatividade.
Marx em sua análise desvendou a alienação que se desenvolve a partir do trabalho assalariado.
De qualquer ângulo que analisemos a alienação esta dilapida tanto o valor do homem como o do trabalho, sendo este um processo segundo Hegel pelo qual os indivíduos colocam as suas potencialidades nos objetos por eles criados.
Para Aristóteles a diferença social entre os homens era natural e, completamente justificável, o cidadão grego estava proibido ao trabalho braçal, pois deveria dedicar-se à reflexão, ao exercício da cidadania e do bem-governar.
A experiência medieval calcada na economia de subsistência onde o trabalho era preso a terra, ao teocentrismo e a luta pela sobrevivência. E a Igreja Católica pregava a adoração a Deus, e condenava o trabalho como forma de enriquecimento, deveria apenas servir para purificação da mente e a disciplinar o corpo.
A ociosidade das elites não era nociva e nem era considerada como preguiça posto que se destinava ao exercício de nobres funções: a política, a guerra, a caça, ao sacerdócio enfim, ao exercício do poder.
Aos servos cabiam as atividades agrícolas, artesanais, era permitido possuir as ferramentas e dominar o saber técnico da produção, apesar da ausência de direitos políticos, gozava-se de relativa liberdade.
A crise na ordem feudal, e com o desenvolvimento do comércio, surge aos poucos, o que veio a cominar no que conhecemos hoje como sociedade capitalista. Primeiro surgiram os burgos, em seguida, o mercantilismo até vir consagrar o trabalho livre.
O trabalho livre era forma ideal burguesa, sendo o homem livre para usar a força do seu corpo como uma máquina natural e, para escolher de forma soberana o que deseja para si mesmo.
Ocorre a separação entre o trabalhador e a propriedade dos meios de produção; ou seja,o divórcio entre o capital e o trabalho.Sob dupla face, o trabalho se apresenta como fruto da vontade e de objetivos livremente determinados; e por outro lado, o trabalho mecânico que era subordinado a uma vontade dos que não possuem os meios de produção. A revolução Industrial, nos séculos XVIII e XIX veio a consolidar tal cisão.
O tempo útil do trabalho produtivo deveria funcionar como um “relógio moral” que cada indivíduo levaria dentro de si.O valia pelo que produzia.
Trabalho que permita assim um mínimo de realização pessoal é aquele que proporciona liberdade ao homem e, não opressão e desumanização. É aquele que dá um mínimo de dignidade ao trabalhador e a plena cidadania.
Uma curiosa história que os antigos romanos e gregos utilizavam para justificar o trabalho é a de Sísifo (filho de Eélo e neto de Helen), era irmão de Salmônea, tendo conquistado toda Elida, foi fulminado por Júpiter.
Sísifo reinou em Corinto, depois da retirada de Medéia. Diz-se que ele conseguira prender a Morte e a manteve amarrada, até que a pedido de Plutão, foi soltá-la. Homero explica que Sísifo livrou a Morte, evitando a guerra e, se empenhando pela paz. Sísifo foi o mais sábio e prudente dos mortais.
No entanto, foi condenado aos infernos e a rolar incessantemente um enorme rochedo até o alto de uma montanha ao chegar ao cimo a imensa pedra que desce atraída pelo seu próprio peso, e ele era condenado a recomeçar imediatamente a ascensão, com um trabalho sem tréguas. Por que mereceu esse suplício?
Alegam-se muitas razões; uma delas que, como Tântalo, também revelara os segredos dos deuses. Tendo Júpiter raptado Égina, este se dirigiu a Sísifo para saber sobre o paradeiro de sua filha. E, então, Sísifo se propôs a revelar o destino de sua filha desde que o rei Ásopo fornecesse água a cidadela de Corinto. Com essa paga, Sísifo então revelou o segredo e foi punido nos Infernos.
Segundo outros, foi por ter desviado dos seus deveres. Finalmene outros, faz de Sísifo um criminoso que praticava todas as espécies de latrocínios na Ática e que imolva todos os estrangeiros. O rochedo que ele rola sem descanso, pode bem ser o emblema de um príncipe ambicioso que resolveu muito tempo na cabeça projetos sem execução.
Diante desta história o trabalho era um sacrifício ou uma punição ou até uma missão destinada a purificar, punir ou justificar a existência de um poder.
Ulisses comenta num trecho de Homero: “Também vi Sísifo extenuando-se e sofrendo; empurrava um bloco imenso e com ambas as mãos. Na verdade, ele o arrastava até o cume, sustentando-o com os pés e as mãos; mas, quando estava a ponto de finalmente atingir o alto do morro, o peso excessivo o impelia para baixo. Novamente, então, a pedra impiedosa rolava para o vale. Entretanto, ele reiniciava o trabalho e empurrava-a ponto de ter o corpo banhado de suor; ao redor de sua cabeça, porém, pairava uma nuvem de poeira”.
Aristóteles in Ética a Nicômano pontifica: “Embora pareça certo e reconhecido dizer que a felicidade éo que há de melhor, seria desejável que se mostrasse com mais clareza o que é. Talvez se conseguisse isso ao se compreender a obra do homem (...) Parece também que a felicidade consiste no ócio, pois nos esforçamos para repousar e guerreamos para estar em paz”.
A atividade profissional constitui fonte de satisfação especial se for livremente escolhida (...) No entretanto, como caminho para a felicidade, o trabalho não é altamente prezado pelos homens. Não se esforçam em relação a ele como o fazem em relação a outras possibilidades de satisfação. A grande maioria só trabalha por necessidade, e esta natural aversão humana ao trabalho suscita problemas sociais extremamente difíceis.
De qualquer modo, o trabalho exprime o ser, suas características, seu pensar, seu agir e, sobretudo sua essência. O trabalho eterniza o homem, através das obras e pela dominação e apreensão da realidade que o trabalho sintetiza.
Como dizia Sartre O importante não é o que fazem do homem, mas o que ele faz do que fizeram dele. Somente o pleno exercício da capacidade de agir pode conferir aos negócios humanos fé e esperança, características essenciais da existência humana que a Antigüidade ignorou por completo, desconsiderando a fé como virtude muito incomum e pouco importante, e considerando a esperança como um dos males da ilusão contidos na caixa de Pandora.
Hannah Arendt traça a distinção entre labor e trabalho.O labor possui conotação de dor e atribuição, advém do latim tripalium que era uma espécie de tortura. O desprezo pelo labor é resultante da acirrada luta do homem contra a necessidade e de uma impaciência não menos forte em relação ao todo esforço.
Já a idéia de trabalho, encerra a atividade do artífice, reside na mentalidade do homo faber, pressupõe a indubitaável racionalidade. Pois o trabalho conhece o método (caminho em grego) enquanto que o labor conhece o sacrifício.No trabalho se descobre o mundo como objeto.
Ao definir o trabalho como o metabolismo do homem com a natureza, em cujo processo o material da natureza é adaptado por uma mudança de forma, às necessidades do homem, de sorte que o trabalho incorpora ao sujeito.
É verdade também que o labor transmite à natureza algo que é próprio ao homem, o processo natural da vida reside no corpo, nenhuma atividade é tão imediatamente vinculada à vida quanto o trabalho.
A vitória do animal laborans jamais teria sido plena se não houvesse o processo de secularização, a perda da fé como decorrência inevitável da dúvida cartesiana, o mundo passou a ser menos estável, menos confiável. E então, o homem foi arremessado para dentro de si mesmo e percebeu que a única coisa imortal era o processo vital da espécie humana e a ênfase no social.
Primoroso ou banal, qualificado ou braçal, contínuo ou exíguo, científico ou leigo, trabalho é na verdade a marca do homem no planeta, tal qual a pegada deixada pelo astronauta na lua. Significa bem mais que um mero passo, significa um marco na história, um resquício inesquecível da existência, persistência e da superação humana.