Breve apreciação sobre a jurisdição voluntária
“a jurisdição graciosa é sob o ponto de vista material, função administrativa, e sob o ponto de vista formal, função judiciária”.
Gisele Leite
A única verdade extraída a fórceps sobre o tema, é que nem é jurisdição e nem é voluntária. Ademais, sendo ontologicamente a jurisdição uma, a divisão que se faz em contenciosa e voluntária é acientífica assim como também é a laceração da Ciência do Direito em inúmeros ramos jurídicos aparentemente distintos, embora saibamos ser uma ciência uma.
Ninguém de plena boa fé pode garantir quais são os processos que devem ser realmente decididos por jurisdição voluntária ou pela jurisdição contenciosa.
A chamada jurisdição voluntária também denominada de graciosa ou administrativa, nada tem de gratuita e realmente desfigura as funções do Poder Judiciário, arremessando-as para o terreno reservado à Administração própria do Poder Executivo.
Carnelutti com sua intensa verve revolucionária adianta que nem ao menos existe jurisdição voluntária propriamente dita, mas única e exclusivamente processo voluntário.
Pelos caminhos definidos pela doutrina antevemos que a jurisdição voluntária é aquela que o juiz exerce sem as solenidades do juízo, que por meio de intervenção em assunto de natureza própria, por si só, não admite contradição de parte. Ou seja, sendo necessária a ingerência do juiz onde o interessado está empenhado em compor judicialmente a lide.
A jurisdição voluntária que tomou corpo no processo itálico medieval e para o qual foi mantido esse mesmo nomen provindo do direito romano clássico.
José Frederico Marques, autor de brilhante monografia sobre o tema, destaca que a jurisdição voluntária é atividade administrativa que o Judiciário exerce a tutela de direitos subjetivos.
Advém do doutrinador Zanobini a máxima definidora: “amministrazione pubblica del diritto privato”, ou seja, administração do direito privado.
Pela jurisdição voluntária o Estado restringe alguns casos, o ius dispositivum dos particulares no que concerne dos interesses de ordem patrimonial e, sobretudo, os de Direito de Família onde incide também rígidas limitações quanto aos negócios jurídicos de natureza privada. Tudo em prol de salvaguardar bens jurídicos mais preciosos.
Vamos a um exemplo prático: a venda de bem móvel é feita sem a necessária intervenção de qualquer órgão estatal. Todavia, quanto aos bens imóveis para melhor garantir o direito de propriedade sobres estes, exige a lei civil que a venda se realize por escritura pública e se formalize posterior registro do ato na matrícula do imóvel no RGI. Assim tanto, o notário da lavratura da escritura pública quanto o notário do RGI intervem necessariamente para validade e eficácia de negócio jurídico de natureza privada.
Em outras hipóteses, como verbi gratia, a da venda de bem imóvel de incapaz, não basta a escritura pública e, o registro da alienação em RGI, é igualmente imprescindível a prévia autorização do Judiciário. E, nisto, consiste a jurisdição voluntária posto que se consagra como tutela administrativa dos direitos subjetivos privados.
Assim, a jurisdição voluntária se exerce inter volentes, ou seja, por solicitação ou consentimento dos interessados. Assevera Goldschmidt que esta se distingue da contenciosa, pois que a primeira é preventiva enquanto que a segunda é repressiva ou de justiça compensativa.
Enfatizando a diferença, frisa Chiovenda que na jurisdição voluntária falta o elemento essencial do juízo que é a questão entre as partes.
De sorte que é pontual a afirmação de Luís Machado Guimarães: “a jurisdição graciosa é sob o ponto de vista material, função administrativa, e sob o ponto de vista formal, função judiciária”.
Amílcar de Castro alega que contencioso ou voluntário não é a jurisdição, e, sim o procedimento. Retomando a consignar que a jurisdição é função unitária. Em suma, é indivisível pela essência do dividendo.
Assim o referido jurista mineiro prossegue: “denomina-se jurisdição, o poder de julgar entre o Estado e as partes, em sentido vertical. E em relação aos juízes e tribunais uns com os outros, visto em sentido horizontal e vertical, chama-se competência”.
Bem elucida José Alberto dos Reis redator do CPC lusitano que paira em aberto a delimitação entre jurisdição voluntária e a contenciosa sendo rematada imprudência pretender solve r o problema mediante fórmula legal. Assim, resolveu o lusitano adotar um critério taxativo para os processos de jurisdição voluntária.
É óbvio que apesar de ser uma arrumação defeituosa e artificial, a tese lusitana galgou adeptos entre os legisladores brasileiros, porém possui a vantagem de oferecer à jurisprudência segurança e certeza em terreno que reconhecemos como movediço e perigoso.
Não foi o acaso ou o mero capricho que norteou critério e, sim, o fato de que a jurisdição voluntária implica no exercício de uma atividade essencialmente administrativa enquanto que a jurisdição contenciosa implica numa atividade autenticamente jurisdicional.
Ressaltava Pontes Miranda com sua lapidar magnitude que o verdadeiro divisor de águas é o de que pretendem as partes, pois daí, resulta tudo mais.
Pautamos na legislação pátria pela divisão com base em Alfredo Buzaid, mas nem mesmo a legislação alemã conhecida pelo intenso rigor técnico abrange totalmente a jurisdição voluntária.
Alcalá-Zamora y Castillo considera a jurisdição voluntária como objeto de lei especial, tal qual na Alemanha, sendo possível substituir a intervenção do juiz por notário, apesar de constar da tradição jurídica à função do juiz em administrar interesses privados.
Endossa Lopes da Costa a opinião de Alcalá-Zamora de que a voluntária não é jurisdição e nem mesmo é voluntária, pois não representa atividade de um órgão de poder público para declarar o direito de uma parte contra ou em face de.
Também não é voluntária, pois muitas vezes o interessado é coagido a obedecer à decisão da autoridade.
O objeto da jurisdição civil conhecido como a pretensão civil (que é conceito obtido pela exclusão do que é penal ou criminal).
Assim, na jurisdição voluntária, o juiz pratica atos da administração civil que também os pratica em outras oportunidades. Bem como os demais poderes (Legislativo e Executivo) não se privam totalmente do ato de julgar. Pois a separação dos três poderes não é rígida, absoluta ou mesmo matemática. Enfim, o Poder Judiciário enfim, não é o único que aplica a lei casos concretos particulares.
Algumas considerações de ordem doutrinária se fazem curiais para tentarmos fixar com maior clareza os limites entre a contenciosa e a voluntária. E são essas:
Na jurisdição contenciosa há ação, na voluntária há simples pedido de um interessado. Tanto é assim que o art. 1.112 e seguintes do CPC in verbis menciona “o procedimento terá início...”.Assim na jurisdição contenciosa há ação e pretensão; na voluntária não há ação nem pretensão, entendida a pretensão como a exigência de que um interesse alheio se subordine ao próprio.
A jurisdição contenciosa produz coisa julgada, a voluntária não produz. Até porque a decisão final paira sobre numa equação de incógnitas eternamente variáveis.
Aliás, a coisa julgada é bem mais adequadamente conceituada como a qualidade de que se reveste a sentença tornando-se numa decisão definitiva, imutável e irrecorrível.
Na jurisdição contenciosa há partes, na voluntária há interessados ou requerentes conforme menciona o art. 1.104 do CPC; enquanto que o art. 262 do CPC que explicita escrachadamente que “o processo civil começa por iniciativa da parte”.
Na contenciosa há tutela de direitos em conflito; na voluntária pode haver no máximo dissensões; há mesmo doutrinadores que justificam que na primeira existe o litígio enquanto que na segunda há conflito atenuado de interesses e, longe de ser propriamente lide.
Assim o pressuposto da jurisdição contenciosa é o litígio enquanto que o da voluntária é o negócio ou ato;
Na contenciosa uma parte pede a intervenção judicial à custa de outra parte; e a prova disso é a existência de ônus sucumbenciais. E, na voluntária pede-se à própria custa.
A jurisdição contenciosa é substantiva, a voluntária é administrativa, pois o juiz não substitui a atividade do interessado, mas apenas integra-se no negócio ou ato jurídico.
Na contenciosa o juiz compõe a lide, na voluntária apenas constitui legalmente o negócio ou ato jurídico. Há o contraditório na contenciosa e controvérsia na voluntária.
Na contenciosa existe pugna de vontades das partes; na voluntária, não. Poderá haver apenas pugnar de interesses.
Enquanto na jurisdição contenciosa o órgão jurisdicional atua para a composição do conflito de interesses, na voluntária somente age para melhor tutelar o interesse em conflito.
Em geral, na jurisdição voluntária não se verifica a realização de um direito objetivo, senão o exercício de um direito subjetivo.
A jurisdição voluntária não exclui o exercício posterior da jurisdição contenciosa sobre o mesmo assunto.
A jurisdição voluntária tem caráter de função anômala, de vez que o ato por ela praticado, do ponto de vista material tem uma natureza, mas do ponto de vista orgânico, diverso é o seu aspecto, porque atribuído a um órgão que normalmente não o pratica; a contenciosa é normal. Porque atribuída a órgão que normalmente a pratica.
Os atos praticados pela magistratura são genericamente denominados “atos judiciários”, dividindo-se estes em atos propriamente ditos judiciários e atos jurisdicionais. Os segundos entendem com uma relação jurídica contenciosa, enquanto os primeiros entendem atividade não contenciosa, ou seja, voluntária, as atribuições judiciárias referem-se também a administração dos serviços da justiça, ao poder regularmente dos tribunais, ao poder de polícia dos juízes nas audiências, etc.
A jurisdição voluntária visa constituir relações jurídicas novas, enquanto a contenciosa objetiva realizar relações jurídicas existentes. Finalmente, a voluntária é constitutiva e não contém duas partes; a contenciosa embora possa ser constitutiva em alguns casos, nunca funciona sem duas partes.
Carnelutti quer que o processo voluntário seja uma espécie de contencioso sem litígio, tendo lugar nos lugares: quando o juiz intervém como órgão único e exclusivo para a tutela de interesse privado; quando o juiz é um dos órgãos que intervém por mandato legal na formação do ato jurídico; quando o juiz age para que um ato jurídico seja eficaz e sua intervenção é preventiva, quer dizer, anterior à celebração do ato.E, finalmente, quando o juiz age posteriormente à celebração do ato para que este tenha eficácia legal.
Os exemplos e lugares apontados por Carnelutti embora bastante esclarecedores não se coadunam perfeitamente com o direito privado brasileiro.
Oportuna é a observação de Cristofolini que esclarece que a jurisdição voluntária pode relacionar-se também aos interesses públicos, como ocorre na naturalização, onde ela se exerce em função de um direito subjetivo eminentemente público, qual seja a aquisição da cidadania brasileira.
Sobre o tema acalorados debates ocorreram entre Carnelutti e Chiovenda e Allorio, fazendo-nos concordar plenamente com a insigne afirmativa de que pela ciência do Direito com zelo de madrasta.
Costumam os processualistas separar a tutela jurisdicional em três modalidades fundamentais, a saber: a) de conhecimento; b) de execução; c) de prevenção ou cautelar.
A chamada jurisdição voluntária por existir como só atividade material de caráter administrativo embora formalmente judiciária não chega se configurar outra modalidade de tutela jurisdicional. É, pois considerada como uma função secundária do Poder Judiciário, cujos caracteres são ser função material e formalmente administrativa, e organicamente judiciária.
Como costumo a falar, em minhas aulas, o Estado bem que se interessa em saber para aonde vão as riquezas, os menores, senão para saber aquém tributar, pelo menos para se livrar das obrigações que surgiriam em caso de eventual abandono.
De qualquer maneira é a jurisdição um poder indeclinável, intransferível, indelegável, seja contenciosa, seja voluntária.
Preleciona Frederico Marques que são as leis de Direito Privado que as disciplinarem as relações entre os particulares que trazem as limitações resultantes da interferência do poder público para administração de direitos privados, pois que esta é sempre uma limitação à autonomia da vontade e à atuação dos interessados. Então o CPC apenas regula a forma e o modus faciendi dos atos de foro judicial que integram o exercício da jurisdição voluntária.
Todos os atos de jurisdição voluntária são realizados pelo Poder Judiciário para reconhecer, verificar, autorizar, aprovar, constituir ou modificar situações jurídicas. Deles participa, sob pena de nulidade, o Ministério Público que é citado juntamente com todos os interessados.
Elucida Lopes da Costa que a decisão em julgado na jurisdição voluntária não impede novo e igual pedido, não cabendo, assim, ação rescisória de sentença, em sentido estrito. Pode ser atacada em outro processo, de jurisdição contenciosa. Assim, a autorização concedida pelo juiz ao incapaz, por haver sido, por exemplo, solicitada por quem não tinha para isso representação legal.
Embora incabível a rescisória no âmbito da jurisdição voluntária, quiçá nas sentenças homologatórias isso não significa que não se possam reformar por ação, é exatamente, aí que iremos encontrar a ação restitutória de negócio nulo.
Explica o CPC que quando não expressamente não fixar o procedimento especial, regem tal jurisdição pelas disposições constantes doas arts. 1.103 a 1.112, que se referem ao procedimento comum.
Convém ressaltar que os procedimentos de jurisdição voluntária são taxativamente enumerados pelo CPC, e são relacionados em dois grupos? Do procedimento geral e do especial. Do geral temos a emancipação, subrogação, alienação, oneração de bens de menores, de interditos, alienação, locação e administração da coisa comum, alienação de quinhão de coisa comum, extinção de usufruto, de fideicomisso.
No plano doutrinário, salienta Athos Gusmão Carneiro que é muito discutível o enquadramento da interdição como jurisdição voluntária, autores existem a reconhecer aí a jurisdição contenciosa. De outra parte, o enquadramento dos inventários entre os processos de jurisdição contenciosa como fez o vigente CPC tem merecido saraivada de críticas.
Dos procedimentos especiais temos: alienações judiciais, separação consensual e litigiosa, testamentos, codicilos, herança jacente, vacante, bens de ausente, curatela de interditos, de ausentes, tela, curatela, fiscalização de fundações, e, etc.
Interessados são todos os partícipes do feito processual, inclusive o MP. Determinando o juiz a produção de certa prova, não poderá o interessado esquivar-se de sua realização, sob pena de ver encerrado, sem a decisão final, dada à aplicabilidade subsidiária do processo de conhecimento quando possível, ou sujeitar-se às penalidades diversas impostas pelo CPC.
Enquanto que na contenciosa existe o campo da legalidade estrita com aplicação do direito objetivo para eliminação do conflito. Na voluntária não é obrigatória a legalidade stricto sensu podendo o juiz ater-se a critérios de conveniência e oportunidade ou até a função social da lei. Autorizando igualmente a utilização da eqüidade por parte do juiz.
A sentença da seara voluntária poderá ser modificada, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, se ocorrerem superveniências modificadoras. Seu sentido de coisa julgada é meramente formal, permitindo-se aos interessados, voltar em novo processo, para reapreciar o já decidido, como ocorre na ação de alimentos, com o pedido de revisão do valor da parcela arbitrada pelo juiz, ou com outra ação.
A intervenção do Judiciário, aliás, é também valiosa para reforça a prevenção de eventuais futuras lides, que poderiam surgir com facilidade, se não fosse realizada a intervenção por agentes do Poder Judiciário.
De qualquer modo, o campo da ação de jurisdição voluntária é vastíssimo e não pretendemos mesmo exauri-lo, mas apenas identifica-lo da forma mais didática que possível.
Gisele Leite, professora universitária do Rio de Janeiro, articulista dos sites www.direito.com.br, www.estudando.com , www.mundojuridico.adv.br ,e co-editora do www.jusvi.com.
Referências
Prata, Edson. Estudos de Direito Processual, volume3, Vellenich Editor, 1974.
Carneiro, Athos Gusmão. Jurisdição e Competência, Saraiva, 2002.
Sidou, Othon. Direito Processual Comprado. Forense Universitária, 2000.
Pallares, Eduardo, Dicionário Del Derecho Processual Civil. Editora Porrua, México, 1970.
De Miranda, Pontes. Comentários ao Código de Processo Civil, art. 1.448, Coimbra, Editora, 1946.