O problema da seletividade penal no Brasil

Juliana Valis



Um dos grandes problemas que afetam o mundo contemporâneo diz respeito às diferentes facetas da criminalidade. De um lado, existe o submundo do crime “tradicional”, que atenta contra os direitos individuais clássicos (vida, integridade física, patrimônio etc) e assola principalmente os grandes centros urbanos. De outro lado, vê-se o incremento cada vez maior da dita "criminalidade de elite", ou seja, aquela praticada por setores sociais específicos que, via de regra, não são abrangidos pelo sistema penal com eficácia.


Antes, porém, que se faça uma análise das duas vertentes criminais já aludidas, é importante ressaltar a necessidade de não se ter uma visão preconceituosa ou parcial acerca das vertentes referidas. Nesse sentido, afirmações segundo as quais existiriam crimes praticados apenas por pessoas economicamente desfavorecidas e outros, cometidos apenas por indivíduos abastados, devem ser vistas com cautela e profundidade crítica. Feita essa observação preliminar, cumpre aferir quais são as diferenças preponderantes entre a criminalidade tradicional e a de elite.



A primeira grande diferença entre os tipos de criminalidade referidos concerne aos bens jurídicos tutelados. No âmbito dos crimes tradicionais, tutelam-se especialmente os direitos liberais clássicos, entre os quais o direito de propriedade, protegido desde os tempos mais remotos. Percebe-se, historicamente, que civilizações antigas já proibiam condutas atentatórias ao patrimônio alheio. Como salienta o autor Luiz Vicente Cernicchiaro, “a trombadinha já existia em Roma (...). Lê-se nas Instituições de Gaio 3, 202: responde às vezes por furto quem não lhe foi o autor, como sucede com a pessoa, por ordem e conselho da qual se praticou o furto”. Diversamente do que ocorre com a mencionada criminalidade tradicional, os crimes de elite em geral dizem respeito à tutela de bens jurídicos coletivos ou difusos, e não apenas individuais. Assim, os chamados crimes de elite atentam, de modo mais nítido, contra a ordem econômica e tributária, o meio ambiente, os direitos do consumidor e a atividade previdenciária, por exemplo.


Além da questão da tutela penal, outro aspecto que diferencia os crimes tradicionais daqueles de elite diz respeito à potencialidade lesiva de ambos. Enquanto os crimes tradicionais, como roubo ou homicídio, prejudicam sujeitos específicos, os crimes de elite tendem a lesar um número indeterminado de indivíduos e interesses. Os chamados crimes de “colarinho branco”, por exemplo, têm potencialidade de prejudicar direta ou indiretamente diversos cidadãos. No âmbito do Brasil, estatísticas apontam que o País perde cerca de 3 a 5% de seu Produto Interno Bruto (PIB) em virtude de constantes casos de corrupção, o que equivale a 72 bilhões de reais por ano, no mínimo. No mesmo sentido, pesquisas indicam que um decréscimo de aproximadamente 10% no nível de corrupção poderia aumentar em cerca de 50% a renda per capita dos brasileiros, em um período estimado de 25 anos . Por meio desses dados, constata-se que os crimes de corrupção, em suas modalidades ativa ou passiva, emprego irregular de verbas públicas, concussão, entre outros, atingem o povo brasileiro com um todo, em especial as pessoas mais carentes. Assim, se os bilhões de reais que são anualmente absorvidos pela corrupção fossem empregados em setores como saúde, educação e segurança, seria bastante provável que os serviços públicos no Brasil melhorassem de forma substancial.


O terceiro aspecto que diferencia os crimes tradicionais dos crimes de elite se refere à eficácia das sanções que são efetivamente aplicadas. Para os crimes tradicionais, as respostas do sistema penal são, em geral, inflexíveis. Já no que tange aos crimes de elite, o problema da impunidade é algo cada vez mais tormentoso e preocupante no contexto brasileiro. Freqüentemente, a imprensa divulga diversos escândalos de corrupção no País, mas poucos desses casos resultam em efetiva sanção aos infratores, seja no âmbito penal, civil ou administrativo. Nesse sentido, há um nítido descompasso entre a reprovação dada pela mídia brasileira aos casos de improbidade e o castigo que deveria ser implementado pelo sistema penal. Assim, os cidadãos brasileiros assistem a constantes “novelas” nas quais contracenam atores dignos de um Oscar: os insignes corruptos da high society tupiniquim. Filmados por câmeras escondidas ou simplesmente flagrados à luz dos holofotes, os referidos atores não se contentam com o glamour de seus papéis no cenário social, político e econômico do País: exigem cachês milionários, ainda que seja à custa da exploração e da miséria de seus compatriotas.

Existe ainda outra substancial diferença entre os crimes tradicionais e aqueles de elite. Trata-se da seguinte diferença entre as condutas de João, que furta um certo supermercado, e a de José, dono do estabelecimento e exímio sonegador de impostos: a extinção da punibilidade. Enquanto João estará incurso no artigo 155 do Código Penal, ainda que devolva a res furtiva ao supermercado; José, caso venha a ser inserido na chamada “malha fina” e pagar os tributos devidos, terá sua punibilidade extinta. Assim, o sistema penal brasileiro costuma perdoar os contumazes sonegadores de impostos e, ao mesmo tempo, execrar veementemente os tão conhecidos “ladrões de galinha”. E, então, por vezes se esquece que os impostos não arrecadados significam, como conseqüência, decréscimo nas verbas para investimento nos serviços públicos em geral. Desse modo, muitas autoridades brasileiras parecem ignorar a necessidade de um aprimoramento do sistema penal no País e desconhecer lições jurídicas como as de Beccaria, que assim já se pronunciava em 1764: “uma boa legislação não é mais do que a arte de proporcionar aos homens a maior soma de bem-estar possível (...)” .


As grandes diferenças, portanto, entre a criminalidade tradicional e a de elite não se restringem a dicotomias teóricas, mas também englobam práticas jurídicas e fatos notórios. Em suma, perquire-se se, ainda em tempos hodiernos, prevaleceria máxima romana “suum cuique tribuere” , que implica, injustamente, conceder ao pobre o infortúnio e, ao rico, a opulência. Um dos maiores desafios que se apresentam no século XXI é o de se reverter tal situação, a fim de que o sistema penal possa tornar-se mais efetivo e equânime.