PRISÃO POR APRESENTAÇÃO
O comparecimento espontâneo nos casos de flagrante é a apresentação voluntária do agente infrator à autoridade policial após o cometimento do delito.
Pois bem, a doutrina e a jurisprudência discutem se nesses casos de apresentação voluntária do agente acusado poderá a autoridade policial lavrar o auto de prisão em flagrante.
Em Minas Gerais, o Provimento Conjunto nº 09/11, de 08 de novembro de 2011, dispõe a respeito do comparecimento espontâneo, a saber:
Art. 277. A confecção do Termo de Comparecimento Espontâneo (TCE), previsto no artigo 262 e seu parágrafo único do CPPM, só será possível nas seguintes hipóteses:
I – quando, uma vez instaurado o Inquérito Policial Militar, alguém que não seja investigado ou indiciado se apresentar como responsável pelo fato;
II – quando a autoridade tomar conhecimento, pelo próprio militar que se apresenta, ocorrência do ilícito penal por ele praticado, e até então desconhecido, quando ausentes os requisitos do flagrante delito.
§ 1º. No caso de incidência do inciso II deste artigo, além do TCE, deverá a autoridade instaurar imediatamente o IPM, nos termos do art. 10, “a” ou “b”, do CPPM.
§ 2º. O TCE constitui peça a ser formalizada nos autos do IPM, conforme os termos do parágrafo único do art. 262 do CPPM.
§ 3º. O comparecimento espontâneo não elidirá a lavratura do APF, desde que presentes os seus requisitos.
§ 4º. O fato de o militar ter praticado o crime em serviço ou agindo em razão da função, com comunicação ou apresentação imediata à Central de Operações da Instituição Militar Estadual, Coordenador do turno ou qualquer outra autoridade de polícia judiciária com atribuição equivalente, não afastará a lavratura do APF, se preenchidos os requisitos para tal, excetuando-se a hipótese prevista no art. 274 deste Provimento.
§ 5º. Reduzido a termo, serão os autos imediatamente encaminhados à autoridade judiciária militar. (grifo nosso)
Percebe-se nitidamente que o Provimento manifestou-se pela possibilidade de efetuar a prisão em flagrante, nos casos de apresentação espontânea do militar que tiver cometido o crime militar.
Com a devida máxima vênia, ousamos discordar de tal entendimento, pelos motivos que passamos a expor.
Para se afigurar a prisão em flagrante deve obrigatoriamente estar previsto uma das condições do artigo 244 do CPPM ou art. 302 do CPP.
Os referidos artigos dispõe que estar-se-á em flagrante nos casos em que estiver cometendo o crime; acaba de cometê-lo; é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração ou é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.
O rol dos artigos 244, CPPM e art. 302, CPP são taxativos, afora os casos supra citados é inadmissível a prisão em flagrante, devendo ser imediatamente relaxada pelo juiz. (art. 5º, LXV, CF)
Ora, se o agente se apresenta voluntariamente após cometer o crime, sem dúvidas, não foi flagrado cometendo o crime, não foi flagrado acabando de cometê-lo; não foi perseguido e nem encontrado. O agente infrator autoapresentou-se à autoridade policial, o que não está previsto no rol numerus clausus das situações de flagrância, logo, não há que se falar em prisão em flagrante quando o infrator se apresenta,o flagrante é “quebrado”, o que de per si não obsta a sua prisão preventiva, se presentes os requisitos do art. 312 do CPP ou art. 255 do CPPM.
Antes do art. 317 ser revogado pela lei 12.403/2011 previa que “A apresentação espontânea do acusado à autoridade não impedirá a decretação da prisão preventiva nos casos em que a lei a autoriza.”
O art. 262 do CPPM aduz que “Comparecendo espontaneamente o indiciado ou acusado, tomar-se-ão por termo as declarações que fizer. Se o comparecimento não se der perante a autoridade judiciária, a esta serão apresentados o termo e o indiciado ou acusado, para que delibere acerca da prisão preventiva ou de outra medida que entender cabível.”
Extrai-se dos dispositivos que nos casos de apresentação voluntária do autor do delito à autoridade policial, quem decidirá se este será preso ou não é o juiz, podendo para tal expedir o mandado de prisão, caso estejam presentes os requisitos da prisão preventiva.
Nesse sentido:
"Prisão em flagrante - Inocorrência - Inteligência dos arts. 302 e 317 do CPP - O caráter de flagrante não se coaduna com a apresentação espontânea do acusado à autoridade policial. Inexiste prisão em tais circunstâncias." (TJSP _ Câm. Crim. h.c. nº 126351, em 22.7.75, Rel. Des. Márcio Bonilha - RT 82/296) (grifo nosso)
A Suprema Corte já se manifestou inclusive que “A apresentação espontânea do réu demonstra que não existia a intenção de fuga, não havendo nos autos motivo para a decretação de sua prisão preventiva.”, o que deve ser visto cum grano salis, haja vista que pode ser um bom pretexto exatamente para fugir.
HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO TRIPLAMENTE QUALIFICADO. PRISÃO PREVENTIVA. GARANTIA DE APLICAÇÃO DA LEI PENAL. FUNDAMENTO INSUFICIENTE PARA A PRISÃO DO PACIENTE. INEXISTÊNCIA DE FUGA.ORDEM CONCEDIDA.1. O Paciente praticou o crime em situação de emoção específica, separação, e somente fugiu do local dos fatos por ter sido ameaçado pelos parentes da vítima, tendo se apresentado espontaneamente perante a autoridade policial de Ponta Grossa/PR alguns dias depois, antes que sua prisão preventiva fosse decretada pelo juízo da Vara Criminal da Comarca de Reserva/PR.2. A apresentação espontânea do réu demonstra que não existia a intenção de fuga, não havendo nos autos motivo para a decretação de sua prisão preventiva. Precedentes.3. Ordem concedida. (STF HC 104635 PR , Relator: Min. CÁRMEN LÚCIA, Data de Julgamento: 15/02/2011, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-081 DIVULG 02-05-2011 PUBLIC 03-05-2011) (grifo nosso)
E ainda que:
PRISÃO EM FLAGRANTE. NÃO TEM CABIMENTO PRENDER EM FLAGRANTE O AGENTE QUE, HORAS DEPOIS DO DELITO, ENTREGA-SE A POLICIA, QUE O NÃO PERSEGUIA, E CONFESSA O CRIME. RESSALVADA A HIPÓTESE DE DECRETAÇÃO DA CUSTODIA PREVENTIVA, SE PRESENTES OS SEUS PRESSUPOSTOS, CONCEDE-SE A ORDEM DE HABEAS CORPUS, PARA INVALIDAR O FLAGRANTE. (STF – RHC 61442 MT , Relator: FRANCISCO REZEK, Data de Julgamento: 29/11/1983, SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJ 10-02-1984 PP-11016 EMENT VOL-01323-02 PP-00224 RTJ VOL-00108-03 PP-01065)
Renato Brasileiro leciona que “a apresentação espontânea continua figurando como causa impeditiva da prisão em flagrante. Afinal, não tem cabimento prender em flagrante o agente que se entrega à polícia, que não o perseguia, e confessa o crime. De mais a mais, quando o agente se apresenta espontaneamente, não haverá flagrante próprio, impróprio, nem tampouco presumido (CPP, art. 302, incs. I, II, III, IV), desautorizando sua prisão em flagrante. Obviamente, caso o juiz entenda que estão presentes os pressupostos dos arts. 312 e 313 do CPP, nada impede a decretação da prisão preventiva pela autoridade judiciária competente, caso se revelem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão previstas no art. 319 do CPP.”
Célio Lobão ensina que “Não sendo possível a apresentação imediata à autoridade judiciária e não havendo decreto de prisão preventiva, o apresentado será liberado, solicitando-se que informe onde pode ser encontrado. A apresentação será comunicada à autoridade judiciária competente, à qual será remetido, de imediato o termo de apresentação.”
Guilherme Nucci citando Tales Castelo Branco relata que este sustenta que a apresentação espontânea sempre impede a prisão em flagrante, dizendo que “Não perduram mais dúvidas de que o autor do crime, que acaba de ser cometido, não pode ser preso em flagrante quando de sua apresentação espontânea à autoridade. (...) É como se tivesse escrito: A apresentação espontânea do acusado à autoridade impedirá a decretação da prisão em flagrante. O ponto principal a ser considerado, portanto, não é o estado de flagrância, mas, sim, a espontaneidade da apresentação. (...) não há regras matemáticas para o aferimento dessa espontaneidade, tudo dependendo das variações concretas de cada caso.”
Lado outro, Nucci defende a possibilidade de prisão em flagrante decorrente de apresentação voluntária do agente infrator, argumentando que “Pensamos que o indivíduo que mata, cruelmente, várias pessoas e, logo em seguida, com a roupa manchada de sangue e o revólver na mão, adentra uma delegacia, apresentando-se. Por que não poderia a autoridade dar voz de prisão em flagrante, se o crime acaba de ocorrer e o agente está com a arma utilizada em plena evidência de ser o autor? Além disso há o clamor popular e o periculum in mora instala-se.” E conclui que a “prisão em flagrante de quem se apresenta espontaneamente pode ser possível, conforme o caso.”
Ousamos discordar de Nucci, pois não estão previstos os requisitos do art. 302 do CPP (art. 244, CPPM), e em se tratando de prisão, que é vista atualmente em nosso ordenamento jurídico como medida excepcionalíssima, como sendo a ultima ratio da ultima ratio, conforme o caso, a preservação do status libertatis do infrator é a medida que se impõe.
Deixamos claro que em todos os casos de apresentação voluntária não estarão presentes os requisitos para a lavratura do auto de prisão em flagrante delito, e em se tratando de crime militar, a autoridade de polícia judiciária militar deverá lavrar o termo de apresentação voluntária, apresentando o militar infrator imediatamente ao juiz para que este decida se mandará prender preventivamente, ou se manterá a liberdade do acusado, sendo os fatos apurados em sede de inquérito policial militar.
A comunicação com a autoridade judiciária poderá se dar via telefone, com o juiz de plantão, conforme o caso, e este é a autoridade competente para decidir se o militar será preso ou não, sendo ilegal a prisão decorrente da lavratura do auto de prisão em flagrante, mesmo que não haja dúvidas quanto à autoria e ao crime.
Não se trata de deixar o acusado impune,até mesmo porque será instaurado inquérito policial, mas tão somente resguardar-lhe um direito constitucional, o de não ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente.(art. 5º , LXI, CF)
Por mais que o crime seja cometido com requintes de crueldade, se apresentou-se voluntariamente, mesmo na certeza de ser ele o autor do crime, não cabe prisão em flagrante.Todavia, a autoridade policial deverá lavrar o termo de apresentação voluntária, comunicando imediatamente ao juiz, para que este decida.
Diante de todo o exposto, pedimos vênia para discordar do posicionamento adotado e afirmamos que o comparecimento espontâneo elidirá a lavratura do APF e que o fato de o militar ter praticado o crime em serviço ou agindo em razão da função, com comunicação ou apresentação imediata à Central de Operações da Instituição Militar Estadual, Coordenador do turno ou qualquer outra autoridade de polícia judiciária com atribuição equivalente, afastará outrossim a lavratura do APF.
Embora discordamos da posição adotada no Provimento supra referido,deixamos claro que o entendimento possui sustentação, é lógico e totalmente possível de ser aplicado juridicamente na prática,o que deve de fato ocorrer, embora preferimos adotar, no momento, o posicionamento aqui exposto.