RELAÇÕES DE DIREITO E PODER
No romance clássico de Daniel Defoe, "Vida e Aventuras de Robinson Crusoe", o protagonista, como resultado de um naufrágio, é lançado na costa de uma ilha deserta ao largo do litoral da América do Sul.
Após vinte anos de vida solitária, atinge a costa da ilha uma horda de canibais a borda de canoas. Eles carregam dois prisioneiros, com a finalidade de guisá-los ​​e devorá-los na calma e pacífica solidão do local.
Um dos prisioneiros consegue escapar em direção à ilha. Dois canibais passam a persegui-lo, mas Robinson derruba um que desaparece e mata o outro com seu rifle, salvando assim a vida daquele fugitivo de um terrível destino que o aguardava.
O jovem selvagem, cheio de gratidão para com seu salvador, se ajoelha diante de Crusoe, baixa sua cabeça até a testa no chão, toma o pé de Robinson e o coloca sobre seu crânio e, desta maneira jura ser seu escravo perpétuo.
Dá a ele um domínio absoluto e um poder de vida e morte sobre ele, se comprometendo a obedecer todos os mandos de seu salvador, sem pedir qualquer compensação por isso.
Algum tempo depois, Robinson novamente tem a oportunidade de salvar a vida de um homem. Desta vez trata-se do capitão de um navio britânico cuja tripulação se amotinara contra ele, jogando-o na ilha de Robinson.
Após encontrar o capitão, Robinson promete libertá-lo e ajudá-lo a recuperar seu barco, sob duas condições: primeiro, que enquanto estiver na ilha o capitão esteja sob a autoridade dele e, segundo, depois de recuperar o barco o capitão o leve de volta para a Inglaterra, sem nada cobrar. O capitão aceita as condições e tudo combinado se cumpre.
Estas duas situações são exemplos claros de dois tipos possíveis de relações entre os homens. A relação entre Crusoe e Sexta-feira, seu parceiro, mas nativo e de cor diferente, é de dominação e submissão. Robinson goza de poderes ilimitados sobre Sexta-feira. Crusoe não sente nenhuma obrigação para com ele, mas tem poder de fazer com ele o que quiser, podendo até matar.
Em contraste, a relação entre Robinson e o capitão é um contrato e da Igualdade. Os dois homens se reconhecem mutuamente como livres ingleses, nenhum dos quais sendo capaz de considerar seriamente a possibilidade de ter o outro como um escravo ou de poder arbitrário sobre o outro. Cada um se considera suficiente em ter algo a oferecer ao outro como pessoa e, portanto, a forma natural de troca de seus serviços é um acordo contratual.
Essas considerações nos permitem estabelecer uma distinção importante. A relação entre Robinson e Sexta-feira é uma relação de poder. Tais relações existem quando um homem está sujeito à vontade arbitrária e totalmente ilimitada de outro.
Para um escravo o poder de seu amo é um mero ato de dominação; o escravo não tem direitos que podem funcionar como limitações ao poder do amo.
A relação entre Robinson e o capitão, no entanto, é uma relação de Direito. É uma relação contratual em que ambas as partes reconhecem a existência de direitos e deveres recíprocos, com base em alguma igualdade.
A circunstância de que naquela ilha onde Robinson está, não ter poder superior - não há um Governo - que possa garantir e obrigar que seja cumprido fielmente um contrato, não destrói a natureza jurídica da relação entre os que se respeitam iguais.
A garantia de execução reside no fato de que nenhuma das partes considere poder atingir os seus fins sem cumprimento fiel do contrato.
"Se considerarmos meramente a forma de Direito podemos captar a diferença essencial entre o Estado de poder e o Estado de direito. Por exemplo, na Alemanha de Hitler - protótipo do Estado de poder - se publicaram diariamente mais leis que em nenhum outro país. Se considerarmos o Direito - como fazem os positivistas - meramente como um mandato do Estado, promulgado em forma legal, esta Alemanha hitleriana seria um Estado de Direito 'por excelência'."
- Edgar Bodenheimer in "Jurisprudence: the philosophy and method of the law", Harvard University Press, 1974, 463 p.
Versão brasileira Joseph Shafan