SIMBOLOGIA DA JUSTIÇA
Na mesa de bar, a discussão sobre o layout do mobiliário nos tribunais assume discussão absurda, e nessa qualidade, nos remete ao “O processo”, de Kafka.
Nele, o bancário Josef K., será confrontado com o tribunal que o processa. Todo o roteiro e desenrolar do livro se transforma em manifestações sacralizadas do tribunal em face ao cidadão. O fato dele não saber do que é acusado é metáfora da circunstância de que tudo no judiciário é estruturado de maneira a despertar sentimento de culpa em quem por ele é convocado.
Essa emoção é necessária para a aceitação da condenação final ou para alimentar a esperança na absolvição, que nunca virá e, se vier, chegará como benesse do tribunal e não como um reconhecimento do que é justo e direito.
No livro, de início, o herói procura demonstrar que é superior aos guardas e inspetores e menospreza a estrutura do “processo”. Mas tudo evolui para a angústia, quando começa a observar que a realidade a sua volta não é como ele pensa ser. Todas respostas as suas indagações são manifestações sacralizadas do tribunal. Revestido de liturgia, burocracia e impessoalidade.
Tive um professor, há muito tempo, que afirmava não existir “erro judiciário”. O judiciário, dizia ele, é estruturado para colocar fim a um conflito. E colocará, por mais absurda que possa vir a ser a solução. O juiz seria como um padre. Recebeu ordenação, ao cumprir todos os requisitos da posse na função foi consagrado. Como um padre, foi ungido. Mesmo que seja um mal padre, mesmo que peque contra a igreja, mesmo que seja um canalha, tal padre, sempre que consagrar a hóstia ela estará definitivamente consagrada, pronta para alimentar as almas que procuram sua benção e consolo, e será recebida como tal. Porque a consagração obedeceu a um ritual, uma celebração, uma sacralização. Exatamente como num processo judicial.
Daí resultar correto o poema:
"Quando a Justiça quer,
os cestos sobem os rios,
os peixes cantam nas árvores e
os pássaros fazem ninho no fundo do mar..."
(Humberto de Campos - "A sombra das Tamareiras" - 1934)
Nesse compasso, resultam corretas algumas escolhas e soluções para representar a justiça. A imponência dos edifícios, as arcadas, a sobriedade (“..a luz e a sombra/são vultos/que se buscam e que se amam/ loucamente ...” – poema "Lunalva" de Carlos Nejar), e a disposição do mobiliário na sala de audiência.
Não há lugar para sanidade, só para o imaginário.
Assim, o cidadão, ao chegar ao tribunal já se sentirá culpado, para, quando sair, mesmo frustrado, saia consolado. Falei muito e não cheguei a lugar algum. Procuro, então, retomar o caminho e voltar a Josef K, que descobre no desenrolar do processo que a superioridade que julgava ter, (de cidadão de direitos protegido pelo Estado), é apenas uma ilusão. Ele aceita, por fim, a sentença pronunciada por um padre (novamente a metáfora), para que ele compreenda que a superioridade de um tribunal não deve ser pensada no sentido da razão, mas sim, como resultado de um processo imaginário que fala ao subconsciente.
Nesse processo, a realidade surge como ingrediente supérfluo.
“Uma caixa bem na praça, uma caixa bem quadradinha/
Uma caixa, outra caixa, todas elas iguaizinhas/
Uma verde, outra rosa e uma bem amarelinha/
Todas elas feitas de tic tac, todas elas iguaizinhas/
As pessoas dessas casas vão todas pra universidade/
Onde entram em caixinhas quadradinhas iguaizinhas/
Saem doutores, advogados, banqueiros de bons negócios/
Todos eles feitos de tic tac, todos, todos iguaizinhos/
Jogam golf, jogam pólo, bebendo um bom martini dry/
Todos têm lindos filhinhos bonequinhos engomadinhos/
As crianças vão pra escola, depois pra universidade/
Onde entram em caixinhas e saem todas iguaizinhas/
Os rapazes ficam ricos e formam uma família/
Todos eles em caixinhas, em casinhas iguaizinhas/
Uma verde, outra rosa e outra bem amarelinha/
E são todas feitas de tic tac, todas, todas iguaizinhas”.
(versão de “Boxes” - Nara Leão).
Não é sem sentido que o processo seja um arquivo "quadradinho", acondicionados em caixas “quadradinhas”, desenvolvidos em salas “quadradinhas”, com mobiliários “quadradinhos”, tudo certinho, arrumadinho.
Se assim não for, a realidade (sempre indisciplinada), pode escapulir e fugir do palácio de espelhos onde todos se tornam excelências.
Tudo é simbolismo, tudo faz parte da linguagem, da comunicação, entre pessoas, e, como somos iguais aos lobos, é integrante do diálogo discreto e subliminar (mas não despido de emoções), entre os fortes e os fracos.
Enfim, toda esta minha conversa mole é para chegar ao simbolismo da caixa e porque no judiciário tudo é arrumadinho, quadradinho, do edifício aos arquivos.
Mas caixa é um símbolo feminino, alegoria ou metáfora de “fraco”, “frágil”.
E guarda coisas que podem ser desconhecidas e profundas, como por exemplo a Caixa de Pandora.
É o medo que arquiva a sociedade em caixas fechadinhas: casas, apartamentos, sala de audiência, arquivo, autos, etc e tal e coisa e lousa.
É o medo que mantêm ainda a inoportuna e injusta disposição de móveis na sala da audiência.
Medo do novo, da novidade.
Daquilo que desconhecemos e que poderá trazer a pestilência.
Como por exemplo colocar o juiz bem acima de todos, numa cadeira quadradinha e bonitinha, de beca e chapéu negro bem tenebroso; o ministério público no mesmo nível ou um pouquinho abaixo do juiz, (mesmo que a constituição de 1988 disponha ao contrário); o advogado a rés do chão, ao nível do cidadão.
E esse último, que inventou o Estado e tudo o que nele orbita, ficará por todo simbolismo sentindo-se diminuto como gilete no asfalto.
Mas não se esqueçam!
A caixa de Pandora guardava, também, a Esperança.
Que sempre escapa, por mais trancafiada; e por mais que demore,
sempre vem à luz um dia.
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Se gostou leia também meu texto
"A dialética da caixa", publicado neste
recanto em em 23/11/2006.
Um abraço.
Sajob ("oxê, por que sou avesso a caixa?")