Conseqüências da inseminação artificial depois da morte do pai
É curioso que a modernidade atente contra o direito sucessório. As técnicas de inseminação artificial, ou de fertilidade assistida, trouxe à baila uma série de situações inusitadas que podem efetivamente ocorrer.
Imagine uma viúva que após os 300 dias de falecimento do marido, sabendo da existência de material recolhido por seu consorte falecido a um banco de sêmen, solicita o respectivo material e, ipso facto também a respectiva inseminação. A gravidez se sucede, e ela dá a luz a um rebento que geneticamente é de seu marido falecido. Porém não o é juridicamente por força do art. 338, II do CC . A rigor teríamos um ser humano sem pai...
Maria Helena Diniz sublinha com razão que a inseminação depende de
autorização de ambos cônjuges e que devem fazê-lo expressamente.
Os pais deverão estar vivos para que seja evidente que se trata de uma paternidade desejada e não imposta, de acordo com a autora. Não sendo mesmo ético impor a paternidade póstuma.
A lei espanhola 35/88 a respeito veda radicalmente a inseminação post mortem., deixando claro que se efetuada, só estabelecerá vínculo de filiação se houver declaração expressa nesse sentido do marido por instrumento público ou testamento (...)
Por outro lado, sob o título "Dos direitos da esposa sobre o esperma do marido", Eduardo de Oliveira Leite, em Procriações artificiais e o direito, São Paulo, RT, 1995, aborda o mesmo tema, trazendo a lume a solução emprestada por uma Corte francesa, no que ficou conhecido como o caso Parpelaix. Outro problema a enfocar é a licitude do contrato de depósito de esperma que não vem regulado pelos dispositivos do Código Civil tendo em vista que se refere a coisa fora do comércio, sendo o germe da vida destinada à procriação humana.
O referido caso Parcelais começou com uma ação ingressada no Tribunal da Grande Instance de Créteil, e começa quando Alain Parpelaix estando em união estável com Corinne R.., fora acometido por um câncer nos testículos. Advertido por seu médico do risco de esterilidade que provocaria o tratamento quimioterápico, Alain depositou no Cecos, em 1981, o produto de uma coleta de esperma.
Durante os anos de 1982 e 1983 ele se submeteu a diferentes tratamentos, vindo finalmente em 25.12.1983 a falecer, quando já se encontrava casado com Corinne desde de 23 de dezembro do mesmo ano.
A viúva e seus parentes solicitaram ao Cecos, que se negou, a devolução do esperma coletado com a finalidade de proceder à inseminação de Corinne Parpelaix. Esses são os fatos resumidamente.
Submetida a questão a julgamento, houve o Tribunal por bem decidir e manifestar-se:
"Cabe fixar os limites da questão. Tal questão se refere a devolução à viúva do esperma de seu falecido marido, a questão relativa a inseminação dependeria obviamente do pedido ser acolhido e, mais particularmente da consciência da viúva e do médico que lhe assistirá para a dita inseminação.
A questão quanto a filiação da criança ainda por nascer, não se encontra presente no caso. Sobre a interpretação das vontades de Alain Parpelaix e do Cecos: as diferentes declarações apresentadas nos debates e especialmente as de Pierre e Danielle R., pais de Corinne P. e atitude de Alain que durante a doença, e com a concordância da companheira, quis preservar sua chances de procriar; atitude solenemente confirmada dois dias antes de sua morte através de um casamento religioso civil; a tomada de posição dos pais de Alain neste procedimento, que tiverem condições de conhecer as intenções profundas de seu filho, constituem um conjunto de testemunhos e de presunções que estabelecem, com certeza, a vontade formal do marido de Corinne P., de tornar sua esposa mãe de um filho comum, quer a concepção dessa criança ocorresse em vida ou após sua morte.
Cecos não provou e nem alegou que preveniu Alain sobre sua oposição a devolver o esperma, após a sua morte, aceitou a vontade de Alain.
Aliás, houve a respeito do tema uma mudança de atitude dessa associação que só começou a advertir os doadores de sua posição a respeito sobre este ponto, aproxidamente dois anos após a aceitação do esperma de Alain.
Igualmente o acordo estabelecido entre Alain e Cecos, não poderia se submeter ao regime jurídico da doação de órgãos, previsto pela Lei francesa de 22.12.1976, tendo em vista a diferença da natureza entre o esperma e os órgãos do corpo humano.
Tudo indica que o acordo fechado de 1991 entre Alain e o Cecos constitua um contrato específico comportando para Cecos a obrigação de conservação e de restituição ao doador, ou devolução do esperma a quem era destinado.
Nem as condições de conservação ou de devolução do esperma de um marido falecido, nem a inseminação de sua viúva são proibidas ou mesmo previstas por um texto legislativo ou regulamentar. Além disso, eles não se chocam com o direito natural, um dos fins do casamento sendo a procriação".
Cita a autora o referido caso onde a viúva afinal conseguiu garantir a devolução do esperma e, sua posterior inseminação com as bênçãos dos Tribunais franceses, bem como de toda sua família e, ainda a família do falecido marido que atestaram o inequívoco desejo de ter filho no momento em que depositou em Cecos seu esperma.
Guardadas as devidas proporções e, ainda as diferenças entrem a sistemática jurídica francesa e a brasileira, analisemos o mesmo caso à luz do direito pátrio.
Outro fato relevante é que apesar de não observada a presunção legal estatuída no art. 338 do CC que possui dispositivo correspondente no art. 1.597, II no Novo Codex, a lei magna determina que não se pode mais obrar distinção entre filhos em decorrência de sua filiação ex vi o art. 227 §6º CF/1988.
Evidentemente que a inseminação post mortem implica nos direitos sucessórios que são regulados pela lei da época da abertura da sucessão (o óbito do autor da herança); não se poderia invocar a proteção ao nascituro previsto no art. 4º do CC.
A capacidade de testar do autor da herança admite às pessoas existentes, há exceções previstas aos termos do art. 1.718 CC em primeiro lugar em prol do nascituro e, em segundo lugar a prole eventual. O que poderia perfeitamente bem contemplar a inseminação artificial post mortem da viúva.
De qualquer maneira, as supostas lacunas da lei poderiam ser supridas até pela Declaração Universal dos Direitos do homem pelo Pacto de São José da Costa Rica do qual o Brasil é signatário e, absorveu a isenção de discriminação dos filhos quanto a sua filiação. É discutida severamente qual seria a natureza jurídica do embrião humano congelado, tanto quanto do esperma depositado em bancos de sêmen.
Outro ângulo a ser analisado é que pela prática de inseminação post mortem a viúva pode legitimar um filho que irá concorrer sucessoriamente com os herdeiros legítimos já existentes. Por esta razão, acertadamente agiu a lei espanhola em coibir a inseminação post mortem, ademais porque tal prática atenta contra os princípios gerais do direito privado e à ordem pública.
Há de se ressaltar que a inseminação post mortem feita à revelia de seu titular ou nas hipóteses de recolhimento fraudulento ou eivado de vícios de vontade, não podem galgar efeitos jurídicos, até por se tratar de ato anulável.
O princípio da dignidade da pessoa humana ocupa então posição determinante ante o aparente conflito de direitos. Outro bem jurídico a ser tutelado é a diversidade da espécie humana em face de uma busca seletiva e até comercial de embriões, esperma ou óvulos.
Ultrapassados os 300 dias, o processo hábil a legitimar o filho havido por meio de inseminação post mortem, é a investigatória de paternidade cumulada com a petição de herança, que através da perícia do DNA era revelar-se positiva e dotar a filiação de máxima plenitude jurídica.
Ainda que ilícita a conduta da clínica que promoveu a inseminação , esta em nada poderá subtrair os direitos da criança a nascer. Não há como vedar juridicamente o acesso do filho ao nome e a herança do pai finado. Feitas tais considerações, a primeira evidente conclusão a que se chega é no sentido da necessidade premente de uma legislação nacional a respeito desse tema, uma vez que as disposições reguladoras da filiação contidas no Código Civil mesmo o Novo Codex, não se prestam a dar solução a tais questões como a apresentada, até por não prever em 1917 o avanço científico que se chegaria anos mais tarde.
O contrato de depósito de sêmen normalmente traz cláusula expressa proibindo a sua utilização após a morte do doador, quer seja marido ou companheiro. O bem jurídico protegido seria a diversidade da espécie humana. É curial que seja inviável juridicamente a inseminação post mortem da viúva ou da companheira. Até por ser improvável se certificar do autêntico consentimento do de cujus para tal procriação.
Gisele Leite é professora, mestre em direito, e conselheira do Instituto Brasileiro de Pesquisas Jurídicas
Revista Consultor Jurídico, 14 de maio de 2002