Relações homoafetivas em xeque

Prólogo

Ontem, 14 de julho, recebi um e-mail de um leitor que talvez devesse ter o condão de sopitar os instintos agressivos da sociedade. Refiro-me à celeuma propiciada pela sábia e corajosa decisão do juiz Jeronymo Pedro Villas Boas quando decidiu que o casamento de duas pessoas do mesmo sexo não é válido, pois a Constituição (Art. 226, § 3º) e o Código Civil (Art. 1.723) fala em famílias formadas por homens e mulheres.

Na mensagem o simpático leitor escreveu, em forma de indagação, tal qual transcrevo:

“Boa tarde professor Wilson. Quero lhe parabenizar pelos textos que tem escrito e publicado no Recanto das Letras. Gostaria de saber se um juiz de primeira instância pode negligenciar uma determinação do STF e qual sua opinião sobre o caso de um juiz de Goiânia ter decidido contrariar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de permitir o casamento entre homossexuais e anulou um contrato assinado por um dos primeiros casais gays do Brasil a formalizarem a união.

Em uma decisão de ofício, o magistrado da 1º Vara da Fazenda Pública do estado, Jeronymo Pedro Villas Boas, decidiu que o casamento de duas pessoas do mesmo sexo não é válido, já que a Constituição fala em famílias formadas por homens e mulheres.

Desde já agradeço sua atenção e sei que serei atendido por entender que o senhor é uma pessoa educada e competente. Sou estudante de direito e pretendo trabalhar em casos polêmicos iguais a esse em foco atual na mídia. Respeitosamente... Durval de Moraes e Santos.” (SIC).

EIS MINHA RESPOSTA EM ATENÇÃO AO LEITOR QUE SE SUBSCREVEU

Ora, isso ainda vai dar muito que se falar por algum tempo. Já escrevi sobre o assunto quando publiquei no Recanto das Letras o texto “União estável entre homoafetivos”. Creio que já é hora de escrever com mais ênfase para os que ainda não alcançaram minha posição sobre essa pendenga jurídica.

Talvez eu devesse responder de uma forma curta e grossa escrevendo do modo que se segue: Não apenas para o magistrado Villas Boas, mas para todos os que têm bom siso, os atos (união estável e/ou casamento entre homoafetivos) contrariam a Constituição, que limita a família à convivência entre homem e mulher.

Não serei lacônico. Não posso ser monossilábico ao discutir um assunto tão sério... Não farei isso! Serei mais detalhista em minha resposta em respeito aos meus quase cinquenta mil leitores só no Recanto das Letras.

Não é competência do STF alterar a constituição; a Carta Magna deve ser respeitada; o STF não está acima da CONSTITUIÇÃO; mas, deve se submeter a ela como todos os cidadãos brasileiros. É de competência do Congresso Nacional fazer as alterações na constituição por meio de EMENDAS CONSTITUCIONAIS; porém, no caso de alterar o texto constitucional é preciso que se instale uma ASSEMBLEIA CONSTITUINTE.

A decisão do juiz Villas Boas de anular a escritura de união entre homossexuais provocou imediatamente a comoção dos setores favoráveis ao casamento entre os homoafetivos.

O fato disparou também as reprimendas do ministro Fux, do Supremo Tribunal Federal, que foi à mídia para condenar a suposta insubmissão do juiz titular da 1ª. Vara da Fazenda Pública de Goiânia, GO, por não acompanhar a recente decisão da corte superior do país que, num recurso extraordinário, reconheceu a união homoafetiva como núcleo familiar, dando interpretação extensiva ao conceito constitucional de família.

No entanto, abstraindo do caso as emoções e sentimentos que naturalmente carregam a matéria, do ponto de vista técnico a decisão do juiz goiano merece ser considerada. Primeiro, como corregedor de todos os cartórios da comarca, o juiz Villas Boas agiu dentro dos limites de seu poder (jurisdição) ao anular uma escritura de união estável homoafetiva. Segundo, ao fazê-lo, ele demonstrou na prática o princípio da independência dos magistrados.

É que o sistema jurídico nacional adota o instituto do livre convencimento motivado para as decisões judiciais, não estabelecendo hierarquia entre juízes. Ou seja, desde que fundamente sua decisão – o que se faz, geralmente, com base na lei, na doutrina e na jurisprudência – o juiz não está vinculado a decidir de acordo com outros juízes ou com os tribunais superiores. Isso seria, se desse modo agissem os magistrados, como dizia minha saudosa vovó Lupariana da Conceição: "Maria vai com as outras".

Na prática, nenhum tribunal pode dizer a um juiz como julgar determinada questão. As decisões das cortes superiores servem apenas de parâmetros. Quando há reiteradas decisões no mesmo sentido num tribunal, elas são convertidas em súmulas, que têm o poder de direcionar, mas jamais obrigar, decisões no mesmo sentido.

A exceção prevista no nosso ordenamento é a Súmula Vinculante, introduzida pela Emenda Constitucional 45, de 2004. Para sua edição, é necessário o voto favorável de dois terços dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Após, todos os juízes, em todos os níveis, são obrigados a decidir de acordo com a súmula vinculante.

Ora, nem mesmo a Súmula Vinculante nº 11 do STF é respeitada pelos órgãos de segurança, pois NÃO TEVE (TEM) a eficácia que deveria ter. Essa súmula é a que trata do uso indevido, abusivo e desnecessário de algemas. Já escrevi algo sobre a Súmula Vinculante nº 11 e publiquei no Recanto das Letras (Ver o texto: "Lupanário Forense versus Diarreia Legiferante").

Observamos, contudo, depois que o STF se manifestou favoravelmente ao reconhecimento da formação de núcleo familiar em união homoafetiva, a mídia erigiu imediatamente a decisão unitária ao patamar de súmula vinculante, sem sequer passar pelo nível de súmula simples.

Por outro lado, o ministro Fux, ao brandir o látego do palavrório do alto de sua posição - conquistada por mérito (disso não se tem dúvida) - na mais elevada corte a possibilidade de aplicar punição ao juiz Villas Boas, parece ter-se esquecido do básico, contido, exemplarmente, no primeiro artigo do nosso Código de Processo Civil: “a jurisdição civil, contenciosa e voluntária, é exercida pelos juízes em todo o território nacional...”.

Sem a independência de julgar segundo seu livre convencimento, retira-se a imparcialidade do juiz e corrói-se a segurança jurisdicional. Nada obsta, no entanto, de que em graus superiores a decisão do juiz goiano seja revertida, também de acordo com o princípio do livre convencimento motivado. O argumento do juiz Vilas Boas, de que as escrituras de união homoafetiva só poderiam resultar de um processo judicial também deve ser analisado sob a perspectiva da independência dos Poderes.

Não cabe ao Poder Judiciário legislar, ou seja, no caso concreto, criar normas de registro público. Essa é competência dos entes legislativos. Portanto, seguindo a decisão do STF, será necessário que uma lei regulamente as escrituras de casamento entre homossexuais.

Até que não exista tal lei, o entendimento do juiz Villas Boas de que tais tipos de escrituras só podem ser autorizados por decisão judicial está em conformidade com nosso sistema político-jurídico.

Portanto, embora socialmente impopular para uns poucos interessados, a decisão do juiz Villas Boas é tecnicamente correta, reflete a independência dos juízes para prolatar suas decisões e merece ser respeitada para que não se viole um direito tão legitimo como o que o STF outorgou aos homossexuais: o direito à liberdade – no caso, tanto judicial quanto cidadã - e à livre manifestação do pensamento.

Para o presidente em exercício da OAB, Miguel Cançado (com “ç” mesmo), a atitude do juiz Villas Boas representa “um retrocesso moralista”. Afirmo que NÃO É esse o entendimento da maioria dos brasileiros com ou sem nenhum conhecimento jurídico, senão vejamos esse exemplo que menciono abaixo à guisa de quebra de gelo.

No intervalo de uma conversa informal perguntei a minha faxineira se ela concordava com o casamento entre homens com homens ou mulheres com mulheres e ela respondeu encabulada: "Se a lei disser que pode quem sou eu pra contrariar doutor...". - Ai está a sabedoria popular: "Se a lei disser que pode...". A lei NÃO DISSE, AINDA, QUE PODE!

CONCLUSÃO

Para ser curto, grosso e direto finalmente concluo meu entendimento sobre esse tropeço do Supremo Tribunal Federal (STF). Midiático, o anacronismo dessa medida intempestiva da egrégia corte compromete sua eficácia e credibilidade não apenas diante de toda a justiça, mas, sobretudo da sociedade como um todo.

O casamento gay, no Brasil, ainda é tratado com hipocrisia como se homossexuais fossem socialmente oprimidos no país e a parada gay fosse um movimento social sério e não um evento de pleno deboche carnavalesco.

Por fim concluo meu arrazoado texto sussurrando para não despertar os que trabalham, na esfera judicial e pública, mais do que precisam e ganham menos do que merecem (refiro-me aos advogados, funcionários públicos em geral e outros serventuários não menos sacrificados):

O ministro Fux alega principio da igualdade, como se este fosse mais importante que a segurança jurídica e a separação dos poderes. Ambos são princípios basilares, e a decisão do STF tem um tempero ou destempero de sua tendência legislativa e metediça há muitos anos.

Uma sentença final (acórdão) dada por instância superior e que passa a funcionar como modelo para solucionar questões análogas, se não for consistente cairá no ridículo da ineficiência, será alvo de zombaria, terá unicamente o total descrédito da sociedade. Com todo o respeito que o caso requer creio que ainda é cedo para julgar os resultados catastróficos dessa crise provocada por uma imensurável diarreia legiferante.

EM 06 DE MAIO DE 2011 EU PUBLIQUEI NO RECANTO DAS LETRAS:

“Entretanto, faz-se necessário a vontade política e o interesse do Poder Legislativo em alterar: O artigo 226, § 3º, da CF/88 e o artigo 1.723, do Código Civil. Sem essas mudanças TUDO NÃO PASSARÁ de conversa mole e ensejará apenas e tão-somente atos nulos quando os homoafetivos tentarem transformar seus casos em união estável ou algo mais bizarro ou extravagante (casamento).” – (Texto: “União estável entre homoafetivos”).

Ora, é claro que o Supremo Tribunal Federal – (STF) NÃO TEM, ainda, o poder de alterar a Constituição Federal Brasileira. Isso é uma prerrogativa do Congresso Nacional, onde seus membros, estes sim, têm a força e o poder de traduzir em lei os anseios da sociedade.

______________________________________

NOTAS REFERENCIADAS E BIBLIOGRÁFICAS

- Constituição Federal Brasileira – De 5 de outubro de 1988;

- Código Civil Brasileiro – Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002;

- Código de Processo Civil Brasileiro – Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973;

- Notas de Aulas do Autor sobre Direito de Família - Pós-Graduação.