DO IMPACTO DA PENHORA DO BEM DE FAMÍLIA DADO EM GARANTIA LOCATÍCIA
Antonio Carlos de Paula
SUMÁRIO :
1. Considerações Preliminares. 2. Garantias Locatícias. 2.1 Caução. 2.2 Fiança. 2.3 Seguro Fiança Locatícia. 3. Bem de Família. 3.1 Bem de Família Voluntário. 3.2 Bem de Família Legal. 4. Das exceções à regra de Inexcutibilidade .5. Questões de Direito Intertemporal. 6. Posicionamento dos Tribunais. 7. Da aplicação do Direito. 8 Direito Civil Constitucional. 9. Conclusão.
1. Considerações Preliminares
Com o tema proposto pretendemos demonstrar ainda que de forma sucinta, as razões e fundamentos que nos levaram a concluir que, no que se refere a penhorabilidade do bem imóvel, dado como fiança em garantia locatícia, principalmente no que tange ao bem de família, estamos sem sombra de dúvida pisando em um campo minado,visto que a polêmica sobre a (in) constitucionalidade da penhora do bem do fiador está longe de breve solução
Aqueles que pugnam pela penhorabilidade do bem de família do fiador, o fazem com argumento de que, os fiadores têm o livre arbítrio para contratar ou não, e têm consciência plena da possibilidade de uma eventual penhora, além do que ninguém pode alegar o desconhecimento da lei, conforme preceitua o art. 3° da Lei de Introdução ao Código Civil. Há de se notar ainda, que a alegada inconstitucionalidade, de certa maneira gera insegurança contratual ao resvalar pela validade do acordo de vontade entre as partes contratantes.
Os breves comentários sobre os institutos da fiança e do bem de família, assim como o enfoque sobre o ponto de vista do Direito Civil Constitucional, se fazem imprescindíveis para melhor assimilação.
2. Garantias Locatícias
Podemos definir como garantia locatícia a declaração facultativa e portanto por livre convenção, ou aquela dada em virtude de preceito legal, que tem por escopo a proteção acautelatória de uma obrigação pré-constituída, e que pode ser de caráter pessoal, ou real, e que se presta a beneficiar o credor na hipótese de inadimplemento das obrigações pelo devedor.
A Lei 8245/91, alterada pela Lei 12.112/09 em seu art. 37, estabelece de forma cogente, quais são as garantias possíveis de aplicação ao contrato de locação de imóveis urbanos, a saber: I- a caução, II – fiança, III – seguro fiança locatícia e IV – cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento. O mesmo art. 37 veda a utilização de mais de uma dessas modalidades para garantia de um mesmo contrato de locação. Portanto, é nula a segunda garantia prestada no mesmo contrato locatício, podendo esta nulidade ser declarada ex ofício pelo Juiz, conforme o disposto no Art. 168, parágrafo único, do Código Civil.
Conforme nos ensina Francisco Carlos Rocha de Barros, ¹ na hipótese de serem prestadas duas garantias, deve prevalecer a que foi dada antes e, se fornecidas simultaneamente, a que primeiro foi mencionada no contrato e, ainda, se uma foi dada no contrato de locação e outra em documento apartado, anula-se esta, reputando-se válida a do contrato locatício. Esclarece ainda que, mesmo sobrevivendo uma das garantias, não há como excluir a contravenção que estará tipificada no momento em que as duas garantias foram exigidas.
¹ Francisco Carlos Rocha de Barros, Comentários à Lei do Inquilinato, 2ª Ed.; São Paulo, Saraiva, p.37, l997.
A Lei n 8.245, de 18 de Outubro de 1991, dispõe sobre as locações de imóveis urbanos e os procedimentos que lhes são pertinentes, no artigo 37, conforme segue:
"Artigo 37. No contrato de locação, pode o locador exigir do locatário as seguintes modalidades de garantia:
I – Caução;
II – Fiança;
III – Seguro de fiança Locatícia.
Parágrafo único. É vedada, sob pena de nulidade, mais de uma das modalidas de garantia num mesmo contrato de locação.”
As garantias locatícias existem de maneira a proteger o locador, garantindo o cumprimento da obrigação principal. Devemos observar, no entanto, que as garantias minimizam os riscos de prejuízos, mas no entanto não os eliminam por completo.
A impossibilidade de cumulação de garantias, ou seja, do locador não poder exigir duas garantias para assegurar a locação de um mesmo contrato, sob pena de nulidade, denota a preocupação do legislador em evitar que o locatário seja prejudicado com exigências por demais onerosas, sob a alegação de garantir o cumprimento do contrato locatício. No entanto, a despeito do cuidado tido pelo legislador, tal questão é, via de regra, causadora de indagações, suscitadas principalmente na hipótese de duas garantias, ou seja, a caução e a fiança locatícia havendo sido prestadas; qual delas deveria prevalecer?! Qual delas seria nula?
A jurisprudência tem assim se posicionado:
"LOCAÇÃO - Fiança e caução exigidas pelo locador - Dupla garantia que ofende o parágrafo único do art. 37, da Lei 8.245/91 - Nulidade, porém, que atinge apenas a garantia excedente. A nulidade cominada pelo parágrafo único, art. 37 da Lei 8.245/91, a exemplo do que ocorria na Lei 6.649/79, atinge apenas a garantia excedente, quer dizer, a que se seguir à primeira, e assim por diante e não toda a garantia. ACÓRDÃO - Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Juízes desta Turma Julgadora do 2ºTribunal de Alçada Civil, de conformidade com o relatório e o voto do relator, que ficam fazendo parte integrante deste julgado, nesta data, deram provimento ao recurso, por votação unânime. JOÃO SALETTI, relator com a seguinte declaração de voto: A r.sentença de fls., de relatório adotado, julgou procedentes embargos à execução. Apela o embargado (fls.) sustentando, com apoio na doutrina e jurisprudência, que menciona, que a pena de nulidade, cominada pelo art.37 da Lei 8.245/91, reproduzindo o parágrafo único do art. 31 da Lei anterior, atinge apenas as garantias excedentes da primeira prestada no contrato. No caso, a fiança foi a primeira garantia prestada no próprio contrato. Nele não há menção a uma segunda garantia, devendo a nulidade, se houver, recair sobre a caução, prestada fora dele. Recurso tempestivo, respondido (fls.) e preparado (fls.). É o relatório. Em que pese os judiciosos fundamentos da r. sentença recorrida, a melhor solução está com os que defendem que a nulidade cominada pelo parágrafo único do art. 37 da Lei 8.245/91, a exemplo do que ocorria na Lei 6.649/79, atinge apenas a garantia excedente, quer dizer, a que se seguiu à primeira, e assim por diante, e não toda a garantia, como decidido. Essa a orientação da doutrina e da jurisprudência. O Des. Gildo dos Santos, ex-integrante deste E. Tribunal, comentando o dispositivo em questão, assinala que, "se a segunda garantia figura em documento à parte, prevalece a primeira prestada no próprio contrato de locação, porque não pode o locador exigir mais de um tipo de garantia. O frontal descumprimento da proibição legal não pode gerar conseqüência outra que não a da invalidade da garantia em excessos" (RT 601/ 161, rel. Mello Junqueira, 2o. TACivSP)". E acrescenta: "do contrário quem tem duas espécies de garantia ficará sem nenhuma,o que, repetimos, se for punição à atitude do locador, deveria ser expressa em lei.Assim, desta deveria constar que havendo mais de um tipo de garantia, todas seriam nulas, o que inexiste no dispositivo legal" (cf. Locação e Despejo, Comentários à Lei n. 8.245/ 91, Ed. RT, p. 86). Do mesmo pensar Sílvio de Salvo Venosa, verbis: "só é valida uma única garantia, pela dicção do parágrafo único. Nula é a garantia que se acrescentar à primeira concedida" (Nova Lei do Inquilinato Comentada, Doutrina e Prática, Ed. Atlas, p. 135; cf. tb., Ap. 183.524 - 5a. C. - Rel. Juiz Alves Bevilacqua - j. 3.9.85, in JTA (RT) 101/352; Ap. 182.751 - 8a. C. - Rel. Juiz Mello Junqueira - j. 27.8.85, in JTA (RT) 101/300). Os próprios embargantes invocaram esse entendimento (fls.),a despeito de também mencionarem o de Carlos Celso Orcesi da Costa (Locação de Imóvel Urbano, p. 192/193), pensamento este último acolhido pelo magistrado, no sentido de que a nulidade atinge toda a garantia. Certo que a nulidade atinge apenas a garantia excedente, acrescida,resta saber qual delas, no caso, não pode prevalecer. Aqui, duas foram as garantias exigidas pelo senhorio. A fiança, descrita e entabulada no contrato, que os apelados assinaram, e a caução, não referida no instrumento, mas tomada em separado, diretamente do locatário. Ambas foram obtidas no mesmo dia da assinatura do instrumento. Pode parecer, então, tenham sido dadas simultaneamente. Ocorre, no entanto, que a caução somente poderia se entender exigível quando completado o contrato, em que não foi mencionada. Se não o foi, há de entender-se que foi tomada somente depois, até porque objeto de simples recibo, dado pelo senhorio ao locatário, sem o conhecimento dos fiadores, presentes ao ato. De outra parte, a caução não representa mais que um aluguel, mostrando-se de todo insuficiente para garantir as obrigações assumidas pelo locatário. Ante o exposto, dou provimento ao recurso, para afastar a extinção do processo executório devendo os embargos prosseguir, com vistas ao exame das demais questões suscitadas. É meu voto."
2.1 Caução
Deve o proprietário do imóvel disponível para locação ter muita cautela ao oferecê-lo ao mercado, diretamente ou por intermédio de uma imobiliária, principalmente no que diz respeito à modalidade de garantia a ser prestada pelo inquilino.
A caução em dinheiro é limitada a três vezes o valor do aluguel e o recurso deve ser depositado em caderneta de poupança. Na hipótese da ocorrência do não cumprimento da obrigação locatícia,, a ação de despejo será ajuizada, normalmente após dois ou três meses de atraso, e a solução final da retomada, com o despejo, tem levado em torno de seis meses, na melhor das hipóteses. O prejuízo do proprietário chega a ser de certeza absoluta, relativamente à diferença entre o valor depositado e a efetiva desocupação do imóvel.
Evidente está que e prejuízo maior certamente será suportado pelo proprietário que não terá meios de obter o ressarcimento de seu prejuízo na maioria das vezes, por falta de bens penhoráveis do inquilino. A administradora se ressarcirá do valor garantido, após o levantamento da caução, o que também é natural. Diante deste quadro, e até que seja alterado o limite da caução, o locador deve ficar atento ao seu contrato de locação, analisando a garantia e ponderando com seu administrador as vantagens ou desvantagens desta ou daquela opção.
A ocorrência do sinistro, necessariamente não implica na ocorrência de prejuízo, no entanto estatisticamente tem se demonstrado que na grande maioria das vezes, o locatário que oferece caução em dinheiro para garantir a locação, quando demandado por falta de pagamento, não possui meios de cumprir o compromisso, o que torna o risco desta garantia locatícia muito grande.
Cumpre ressaltar que a caução quando ofertada deve ser depositada em caderneta de poupança em nome do locador e locatário, e somente poderá ser resgatada com anuência de ambos, ou através de autorização judicial. A utilização por quem quer que seja da caução ofertada pelo inquilino caracteriza crime de apropriação indébita, sujeito o infrator a pena de prisão. Temos então concluído que, a caução do valor de três aluguéis é uma péssima alternativa. Porém, havendo opção por esta modalidade de garantia, certos requisitos deverão ser obedecidos sob pena de caracterizar a prática de ilegalidade e de apropriação indébito de quem mantêm o valor sob seu poder.
2.2 Fiança
Por razões inclusive de maior praticidade a fiança é a espécie de garantia locatícia mais utilizada, isto porque prescinde ela da formalidade exigida pelas demais modalidades garantidoras. A fiança na realidade é um contrato acessório que, portanto, em regra não subsiste sem o principal. É imprescindível a outorga uxória ou marital nos termos do artigo 147, III do Código Civil. Na opinião do professor Luiz Antonio Scavone Junior.²
“não se pode olvidar que o Artigo 166, V, do Código Civil, determina que é nulo o ato em que for preterida alguma solenidade e, portanto, a fiança, sem que se tenha colhido autorização do marido ou da mulher, como, aliás, vem decidindo a jurisprudência de forma remansosa.”
O verbete 332, da Súmula STJ, tem a seguinte redação: /a anulação de fiança prestada sem outorga uxória implica a ineficácia total da garantia.
Superior Tribunal de Justiça
REsp. nº 832669/SP: Recurso Especial 2006/0060124-0. Julgamento:17.05.2007. Civil. Locação. Alegada violação ao art. 1483 do Código Civil de 1916 e ao art 586 do Código de Processo Civil. Ausência de prequestionamento. Súmula nº 211/STJ. Fiança. Outorga uxória. Ausência. Vício que invalida totalmente a garantia, mas que só pode ser alegado pelo cônjuge que não concedeu a vênia conjugal. Precedentes.
1. Este Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento, cristalizado no Enunciado da Súmula 211/STJ, segundo o qual mera oposição de embargos declaratórios não é o suficiente para suprir o requisito de prequestionamento, sendo indispensável o efetivo exame da questão pelo acórdão objurgado.
2. É pacífico neste Superior Tribunal de Justiça o entendimento de que a falta da outorga uxória invalida a fiança por inteiro.
3. No caso dos autos, todavia, a falta da vênia conjugal foi argüida tão-somente pelo cônjuge que prestou a fiança sem a autorização da esposa. Nesse caso, é de se aplicar a orientação desta Corte nos termos do art.1650 do atual Código Civil.
4. Recurso especial parcialmente conhecido e improvido.
² Luiz Antonio Scavone Junior, Direito Imobiliário Teoria e Prática, 1ª Ed.; Rio de Janeiro, Editora Forense, p, 1106,1107.
2.3 Seguro de Fiança Locatícia
Sem sombra de dúvida esta é a opção que oferece a melhor garantia para o proprietário locador, é uma modalidade de seguro destinada a garantir o valor do aluguel e demais obrigações locatícias que devem ser suportadas pelo inquilino. Neste caso o proprietário do imóvel, em caso de inadimplemento do locatário, recebe os valores diretamente da companhia seguradora, que posteriormente busca o reembolso junto ao locatário. A principal vantagem é a substituição dos fiadores, que conforme o nosso tema, respondem solidariamente pelos ônus e responsabilidades previstos no contrato locatício, podendo responder pela obrigação inclusive com a eventual penhora de seu único bem imóvel.
3. Bem de Família
O Código Civil vigente, nos Art. 1711 a 1722 contempla tão somente a instituição do bem de família na modalidade voluntária, sendo que o bem de família instituído de forma obrigatória vem apenas inserto na Lei 8.009, de 29/03/90. Segundo o mestre Caio Mario da Silva Pereira “o bem de família é forma de afetação de um bem a uma finalidade".¹
Há uma corrente minoritária que entende ser inconstitucional a penhora do bem de família do fiador por caracterizar violência a isonomia (Art. 5º caput CF/88), bem como a proteção da dignidade humana (Art. 1º III CF/88). Caracteriza-se a tensão jurídica pelo fato de que o locatário (principal devedor) não pode ter o seu bem de família penhorado, no entanto o fiador, que é em regra um devedor subsidiário (Art.827 CC) está à mercê da constrição.
A lesão à isonomia reside no fato de a fiança ser um contrato acessório, que não pode trazer mais obrigações do que o contrato principal (locação). Reforçada ainda pelo entendimento de que haveria desrespeito a proteção constitucional da moradia (Art. 6° CF/88), um dos extratos legais do princípio da proteção da dignidade humana (Art. 1º III CF/88).
3.1 Bem de Família Voluntário
Nos séculos XIX e XX, sob a influência pensamento jurídico do liberal-individualismo predominante, foi criado o bem de família voluntário ou facultativo. Temos então que se trata de um ato de manifestação de vontade, que pode ou não ser unilateral, e que depende de ser registrado junto ao cartório de registro de imóveis competente, para ser válido perante terceiros. (Art. 1711 CC,cc Art. 167 I,l, e 172 da Lei de Registros Públicos). Os Arts 260 a 265 da Lei de Registros Públicos, Art 1218, nº VI do atual Código de Processo Civil, e o Decreto Lei n.3.200, de 19 de Abril de 1941, respectivamente, regulamentam o procedimento do instituição de bem de família. É essencial à substância do ato que ele seja feito por escritura pública, devendo o instituidor apresentar ao tabelião o título de propriedade devidamente registrado fazendo também prova de não pendências financeiras de ordem pessoal, devendo ainda apresentar as certidões de quitação de praxe.
A escritura de instituição deverá ser levada ao registro de imóveis competente para que se proceda ao registro e posterior publicação devendo constar desta que, se alguém se julgar prejudicado, deverá, dentro do prazo de 30 dias, contados da publicação, reclamar contra a referida instituição, por escrito e perante o oficial. Após o prazo legal de 30 dias, se não houver qualquer reclamação, o oficial deverá transcrever integralmente a escritura de instituição de bem de família, no Livro 03, devendo ainda fazer o registro na competente matrícula.
3.2 Bem de família legal (obrigatório)
A Constituição Federal promulgada em 1988 privilegiou a dignidade das pessoas enfatizando os direitos pessoais que devem prevalecer sobre as relações jurídicas de caráter meramente econômico. O Código Civil vigente, talvez por lapso do legislador, não tratou do bem de família legal ou obrigatório atendo-se tão somente ao bem de família voluntário contemplado no artigo 1711 e seguintes.
www.antoniocarlosdepaula.jur.adv.br