A reação da justiça em decorrência dos acontecimentos anormais dos últimos dias

* Prof. Ms. Arnaldo de Souza Ribeiro

Ce que se passe à la conscience d’um bête je ne le sais pas, parce que je ne le suis pas, mais ça que se passe dans la conscience d’un bon homme, je le sais : c’est scabreux.

Joseph-Marie de Maistre. Escritor, filosofo, diplomata e advogado. Nasceu em Savóia, no ano de 1753 onde faleceu em 1821.

1. Introdução

Para abordar este instigante conteúdo: A reação da justiça em face dos acontecimentos anormais nos últimos dias, neste II Congresso de Psicanálise [1] promovido pela Sociedade Fluminense de Psicanálise Clínica, que abordará a temática : A Leitura Psicanalítica em Decorrência de Fatos Inesperados; iniciarei com a abordagem dos termos: justiça, direito e anormalidade e o farei de forma simples e didática, com o propósito de alcançar a todos os participantes, em especial aqueles, cujas atividades profissionais e acadêmicas não se encontram ligadas à área jurídica, tendo em vista o perfil eclético dos congressistas.

2. Justiça, direito e anormalidade

Hoje e antanho cultua-se a justiça como o bem maior que o ser humano possui e para alcançá-la é imprescindível a correta aplicação do direito. Juristas, filósofos e dicionaristas de várias tendências, em diferentes épocas, definiram-na e sugeriram caminhos para alcançá-la. Dentre eles, cita-se o conceito apresentado pelo dicionarista jurídico De Plácido e Silva:

[... Derivado de justitia, de justos, quer o vocábulo exprimir, na linguagem jurídica, o que se faz conforme o Direito ou segundo as regras prescritas em lei.

É, assim, a prática do justo ou a razão de ser do próprio Direito, pois que por ela se reconhece a legitimidade dos direitos e se estabelece o império da própria lei.

Os romanos consideravam-na em grau tão elevado que ULPIANO, arguindo-a de virtude, a definia como “constans et perpetua, volutas jus suum cuique tribuere” (Vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu)...] [2]

Em se tratando de Direito, o jurista alemão Gustav Radbruch conceitua: El “ Derecho” puede, pues, definirse como el conjunto de las normas generales y positivas que regulan la vida social. [3]

Para conceituar anormalidade, buscamos a sabedoria de Howard C. Warren, psicólogo, Professor da Princeton University, que coordenou uma pesquisa integrada por vários psicólogos e professores, que resultou na elaboração do festejado Diccionario de Psicologia:

Anormal. Que difiere sensiblemente de la norma o del tipo. [Caracteriza las acciones, la mentalidad, los modos de conducta, etc., de un organismo, que difieren tanto de los del individuo sano, o típico, que no se les suele considerar como perteneciendo al mismo grupo o serie. Frecuentemente confundido con patológico, que designa una clase de anormalidad; los fenómenos o individuos anormales pueden ser subnormales, supernormales, o cualitativamente perturbados o desequilibrados, esto es, extranormales.] anormalidad. [4]

Os conceitos supramencionados confirmam: chega-se à justiça com a efetiva aplicação do direito. E para bem aplicá-lo, tendo em vista que a lei é igual para todos, porém na dosagem da pena, para ser justa, deverá ser aplicada na proporção do delito e do alcance da compreensão do agente. Deste modo, conhecer o indivíduo, analisar sua conduta e suas anomalias são condições imprescindíveis para a dosagem correta. Na prática, isso constitui tarefa árdua para os julgadores, tendo em vista que não existem duas pessoas iguais no universo.

3. Acontecimentos anormais a guisa de reflexão

Nestes últimos dias, a mídia televisa, falada e escrita trouxe de forma clara e incisiva vários acontecimentos que chocaram a todos e, diante deles, muitos se perguntaram e afirmaram:

Onde está a justiça?

O autor do fato só pode ser um doente.

Dentre estes acontecimentos registra-se a chacina em uma Escola no Rio de Janeiro; o aluno que saiu algemado de uma sala de aula; o aluno que quebrou o braço de uma professora; uma mãe que jogou seu filho em uma lagoa e a outra que deixou seu filho em uma caçamba de coletar lixo. Este último episódio foi registrado pelas câmaras e estas mostraram a perplexidade e o desespero de um modesto e digno catador de papel ao perceber a presença da criança.

Todos estes lamentáveis e irreparáveis incidentes, se estudados e analisados seus protagonistas, por certo se constatará, que antes de serem delinquentes destinados à justiça, deveriam encontrar-se tutelados pelo Estado, em especial pelo sistema educacional e de saúde mental, e por certo não o foram, tendo em vista o seu contumaz descaso com os cidadãos.

Porém, pela prática do ilícito, com a transgressão de norma de direito público, foram imediatamente alcançados pelo Estado, em especial pelo judiciário para a prestação jurisdicional, tendo em vista que a ninguém é dado o direito de fazer justiça com as próprias mãos. Por esta razão o dever-direito de fazer Justiça foi transferido ao Estado e este, muitas vezes, limita-se à aplicação da pena, sem preocupação com a da análise do sujeito para oferecer-lhe, além da pena, a oportunidade de ressocialização.

Neste sentido o Magistrado João Alfredo Medeiros Vieira:

[... Diante de mim as pessoas se inclinam; à minha voz acorrem, à minha palavra obedecem, ao meu mandado se entregam, ao meu gesto se unem, ou se separam, ou se despojam. Ao meu aceno as portas das prisões se fecham às costas do condenado ou se lhe abrem um dia, para a liberdade. O meu veredicto pode transformar a pobreza em abastança, e a riqueza em miséria. Da minha decisão depende o destino de muitas vidas. Sábios e ignorantes, ricos e pobres, homens e mulheres, os nascituros, as crianças, os jovens, os loucos e os moribundos, todos estão sujeitos, desde o nascimento até a morte à LEI que eu represento e à JUSTIÇA, que eu simbolizo...] [5]

Para comprovar o poder da justiça na promoção e restituição da dignidade das pessoas transcreve-se trecho da sentença da lavra do eminente magistrado Dr. João Batista Herkenhoff, prolatada na tarde do dia nove de agosto de 1978, conforme fls. 32 do Processo número 3.775, da Primeira Vara Criminal de Vila Velha - ES:

[... A acusada é multiplicadamente marginalizada: por ser mulher, numa sociedade machista; por ser pobre, cujo latifúndio são os sete palmos de terra dos versos imortais do poeta; por ser prostituta, desconsiderada pelos homens, mas amada por um Nazareno que certa vez passou por este mundo; por não ter saúde; por estar grávida, santificada pelo feto que tem dentro de si, mulher diante da qual este juiz deveria se ajoelhar, numa homenagem à Maternidade, porém que, na nossa estrutura social, em vez de estar recebendo cuidados pré-natais, espera pelo filho na cadeia.

É uma dupla liberdade a que concedo neste despacho: liberdade para Edna e liberdade para o filho de Edna que, se do ventre da mãe puder ouvir o som da palavra humana, sinta o calor e o amor da palavra que lhe dirijo, para que venha a este mundo tão injusto com forças para lutar, sofrer e sobreviver...] [6]

Deste modo, espera-se que a justiça do século XXI não se limite a aplicar o direito materializado nas penas, ou seja, que vá além, para que sua aplicação contribua na promoção da paz social e na ressocialização do indivíduo. Para isto, seus operadores precisam conhecer um pouco da alma, da história e do pensamento daqueles que por eles são julgados.

4. A contribuição de Cesare Lombroso

A busca do conhecimento dos indivíduos, para melhor aplicação da pena com vistas à prevenção e a ressocialização do indivíduo data de priscas eras. Desta se tem notícias mesmo antes dos modernos recursos apresentados pelos estudiosos da antropologia, da psiquiatria, da psicologia, da sociologia e da psicanálise.

Os precursores das ciências modernas associavam o ato praticado ao perfil físico daqueles que o praticaram. Dentre eles especial destaque para Cesare Lombroso, médico, professor e criminologista italiano.

Cesare Lombroso desenvolveu seus estudos e suas teorias referenciando-se na caracterologia, ou seja, suas análises partiam da relação entre as características físicas e mentais, dentre elas o tamanho da mandíbula à psicopatologia criminal, ou a tendência inata de indivíduos sociopatas, com comportamento criminal.

Seus trabalhos inspiraram-se na frenologia, criada pelo físico alemão Franz Joseph Gall, no começo do século IX, que eram estreitamente relacionados com outros campos da caracterologia (ciência que tem por objeto a essência, gênese e formas estruturais do caráter) e a fisiognomia (estudo das propriedades mentais a partir da fisionomia do indivíduo).

Neste sentido Henri Piéron:

Estudo das características psíquicas do Homem, baseado na conformação externa do crânio. Esse estudo fundamentou-se na hipótese formulada por GALL, e desde muito reconhecida como falsa, de que as faculdades humanas teriam localizações precisas, as quais se projetariam na conformação externa do crânio. [7]

A teoria de Cesare Lombroso não encontrou respaldo científico, alterou e desacreditou-se com o passar dos tempos, porém estimulou o estudo das mentes criminosas, que ficou conhecido como antropologia criminal. Seus estudos influenciaram vários pesquisadores em vários países da Europa e das Américas, em especial no Brasil. Os manuais de Medicina Legal tratam de suas teorias e conferem-lhe o titulo de precursor dos estudos relacionados à psicologia do criminoso.

5. A contribuição da psicanálise

A busca pela humanização e pela coerência das penas e através delas motivar a redução da criminalidade e a ressocialização do agente, constitui tarefa que ao longo dos anos vem ocupando os operadores do direito. Muitos destes buscam nos ensinamentos da psicologia, da psiquiatria e da psicanálise o caminho para entender o agente e os motivos que o levaram à prática do delito.

Prova insofismável da assertiva supramencionada, encontra-se na clássica obra do Prof. Hélio Gomes, Medicina Legal, que teve sua primeira edição no ano de 1942 e várias outras edições que se seguiram.

Assevera o Prof. Hélio Gomes:

PSICANÁLISE. Qual a contribuição que a psicanálise trouxe ou poderá trazer à investigação da verdade judiciária? As opiniões não se manifestam unânimes. Há os que a superestimam; há os que a subestimam, há os que lhe negam qualquer utilidade. Entre os que a superestimam estão ALEXANDER e STAUD, para os quais “somente a introdução da psicanálise nos tribunais dissipará a obscuridade que neles reina e indicará a única solução para a crise da Justiça”.

PÔRTO CARRERO está entre os que lhe dão valor relativo. Escreveu o grande psicanalista brasileiro, na sua Psicologia Judiciária, o seguinte: “Se diante dos dados da Psicologia Clássica a certeza baseada sobre o depoimento da testemunha tem valor muito relativo, a conclusão não é diversa entre os ensinamentos da psicanálise”.

CESAR CAMARGO Y MARIN, admitido a aplicação da psicanálise para obter confissões de acusados, reconhece, sinceramente, que a Justiça Criminal não se encontra nas mesmas condições dos experimentadores, quando empregam os vários processos psicológicos, inclusive a psicanálise. [8]

Mesmo diante das contradições existentes entre os pesquisadores e os aplicadores do direito, ambos reconhecem que a psicanálise pode fornecer importantes subsídios para analisar a conduta humana em seus aspectos mais variados, incluindo aí o delinquente e a melhor forma para julgá-lo e reintegrá-lo à sociedade, tendo em vista a abrangência dos conceitos psicanalíticos.

Neste sentido Araceli Albino:

A Psicanálise nasceu a partir de conhecimentos advindos de diversas áreas do saber, como Filosofia, Mitologia, Antropologia, Psicologia, Medicina e Física, transformando-se em uma ciência única que investiga o inconsciente humano. Genialmente, Freud partiu desses conhecimentos e criou uma teoria específica do inconsciente, metodologia e técnica capazes de ajudar os seres humanos a compreender a origem de seus conflitos e, assim, poder resolvê-los. Para tanto, dedicou a vida em busca de conhecimentos e alicerçou uma obra que mudou a visão do homem sobre si mesmo, mobilizando toda uma época e se firmando como “ciência do inconsciente”, ciência que se comprova e se fortalece a cada sessão analítica. [9]

Tendo em vista os pilares que sustentam a psicanálise, sabe-se que através dela, o sujeito poderá conhecer a si mesmo, considerando que ela busca não a exterioridade da pessoa, mas o que a pessoa tem de mais íntimo em seu inconsciente.

6. A contribuição do Tribunal de Justiça de Minas Gerais

O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, numa clara demonstração da importância da análise do homem pelos seus atos conscientes e inconscientes, no período de 30 de setembro a 1º de outubro de 1994, ofereceu aos operadores do direito e funcionários do Judiciário a Primeira Jornada de Psicologia Judiciária de Minas Gerais, que abordou o tema “A Legalidade da Subjetividade”. O evento realizou-se em Belo Horizonte, com a presença de profissionais do direito, da psicologia, da psiquiatria e da psicanálise, que debateram o perfil do doente e a influência das neuroses na conduta do agente.

Aquele encontro abriu espaço para o debate entre a conduta objetiva e subjetiva, entre o corpo e a mente, e deste modo melhor entender aqueles que batem à porta da Justiça à procura de ajuda para resgatar direitos e dignidade ou aqueles que são conduzidos para receber a justa condenação.

Aquela iniciativa pioneira do Tribunal de Justiça de Minas Gerais disseminou por todo o Estado e atualmente, a maioria dos Juízes e Promotores contam com a orientação de profissionais da área psicológica tanto para suas decisões interlocutórias, quanto em suas sentenças.

7. Conclusão

Pelo exposto, chega-se à conclusão que a reação da justiça, em decorrência dos acontecimentos anormais dos últimos dias, é também de perplexidade, tendo em vista que a Justiça em seu sentido latu resulta do trabalho dos operadores do direito e daqueles que possuem delegação de poder do Estado para sua aplicação.

Espera-se, portanto, que esta perplexidade possa levar a todos a refletirem sobre suas condutas e seus papeis para que se possa alcançar a verdadeira justiça, com a correta e eficiente aplicação das leis. E ao aplicá-la tenham sempre em mente os ensinamentos de Joseph-Marie de Maistre: “ O que se passa na consciência de um canalha eu não sei, por que eu não sou, mas o que se passa na consciência de um homem bom, eu sei: é escabroso”

Pelo exposto, para discernir se uma pessoa é boa ou má e aplicar uma penalização exemplar e adequada que sirva de estímulo para desmotivar a criminalidade e promover a ressocialização do agente, é importante que os operadores do direito sigam não só os instrumentos objetivos consubstanciados nas leis, mas também os subjetivos oferecidos pela psicanálise e ciências afins.

Notas

1. O Congresso supramencionado realizou-se no dia 04 de junho de 2011, no Teatro do Clube dos Diretores Lojistas de Nova Iguaçu, situado na Avenida Governador Portela, n. 966 – Nova Iguaçu – RJ.

2. SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 12. ed. Forense: Rio de Janeiro, 1996. V. 2, p. 40.

3. RADBRUCH, Gustav. Introducción a la filosofia del derecho. Traducción de Wenceslao Roces. Fondo de Cultura Económica: México, 1951. p. 47

4. WARREN, Howard C. Diccionario de psicologia. Traducción y revisión de E. Imaz, A. Alatorre y L. Alaminos. Fondo de Cultura Económica: México, 1948. p. 16

5. VIEIRA, João Alfredo Medeiros. A prece de um juiz.

Disponível em: < http://www.dantaspimentel.adv.br/jcdp7900e.htm > Acesso em 28/05/2011.

6. A íntegra da sentença encontra-se no Anexo n. 1

7. PIÉRON, Henri. Dicionário de Psicologia. 7. ed. rev e amp. Tradução e notas de Dora de Barros Cullignan. Editora Globo: Rio de Janeiro, 1987. p. 235.

8. GOMES, Hélio. Medicina legal. 26 ed. Livraria Freitas Bastos S. A.: Rio de Janeiro, 1989. p. 259.

9. ALBINO, Araceli. Psicanálise: um dia de referência.

Disponível em: < http://www.sindpes.com.br/artigos/psicanalise-um-dia-de-reverencia/ > Acesso em 26/05/2011

Bibliografia

ALBINO, Araceli. Psicanálise: um dia de referência.

Disponível em : < http://www.sindpes.com.br/artigos/psicanalise-um-dia-de-reverencia/ > Acesso em 26/05/2011

GOMES, Hélio. Medicina legal. 26 ed. Livraria Freitas Bastos S. A.: Rio de Janeiro, 1989.

LITTIG, Liria Helena Moreira Gomes. O olhar da psicanálise para o mundo virtual. Disponível em : < http://www.sindpes.com.br/artigos/o-olhar-da-psicanalise-para-o-mundo-virtual/ > Acesso em 26/05/2011.

PIERRE, Fédida. Dictionnaire de la psychanalyse. Paris: Librairie Larousse, 1974.

PIÉRON, Henri. Dicionário de Psicologia. 7. ed. rev e amp. Tradução e notas de Dora de Barros Cullignan. Editora Globo: Rio de Janeiro, 1987. p. 235.

VIEIRA, João Alfredo Medeiros. A prece de um juiz.

Disponível em: < http://www.dantaspimentel.adv.br/jcdp7900e.htm > Acesso em 28/05/2011.

RADBRUCH, Gustav. Introducción a la filosofia del derecho. Traducción de Wenceslao Roces. Fondo de Cultura Económica: México, 1951.

RIBEIRO, Arnaldo de Souza. Direito e psicanálise. Monografia. Nova Iguaçu - RJ: Escola Fluminense de Psicanálise – ESFLUP, 2005. 151 F.

SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 12. ed. Forense: Rio de Janeiro, 1996. V. 2.

WARREN, Howard C. Diccionario de psicologia. Traducción y revisión de E. Imaz; A. Alatorre y L. Alaminos. Fondo de Cultura Económica: México, 1948.

* Arnaldo de Souza Ribeiro é Doutorando pela UNIMES – Santos - SP. Mestre em Direito Privado pela UNIFRAN – Franca - SP. Especialista em Metodologia e a Didática do Ensino pelas Faculdades Claretianas – São José de Batatais – SP. Coordenador e professor do Curso de Direito da Universidade de Itaúna – UIT – Itaúna - MG. Professor convidado da Escola Fluminense de Psicanálise – ESFLUP – Nova Iguaçu - RJ. Advogado e conferencista. E-mail: arnaldodesouzaribeiro@hotmail.com

Anexo

Sentença que mudou a rota de uma vida

João Baptista Herkenhoff *

Dentre as milhares de decisões que proferi na carreira de juiz, há uma que me traz uma lembrança especial porque mudou a rota de uma vida.

A sentença a que me reporto veio a se tornar muito conhecida porque pessoas encarregaram-se de espalhá-la: por xerox, primeiramente; depois por mimeógrafo; depois por e-mail; finalmente, veio a ser estampada em sites da internet. Primorosos trabalhos de arte foram produzidos a partir do caso, por pessoas que não conheço pessoalmente: Odair José Gallo e Mari Caruso Cunha (versões sonoras e com imagens).

A protagonista do caso judicial chamava-se Edna.

Hoje, aos 74 anos, a memória visual me socorre. Sou capaz de me lembrar do rosto de Edna e do ambiente do fórum, naquela tarde de nove de agosto de 1978, há trinta e dois anos, portanto. Uma mulher grávida e anônima entrou no fórum sob escolta policial. Essa mesma mulher grávida saiu do fórum, não mais anônima, porém Edna, não mais sob escolta, porém livre.

Após ouvir, palavra por palavra, o despacho que a colocou em liberdade, Edna disse que se seu filho fosse homem ele iria se chamar João Batista. Mas nasceu uma menina, a quem ela colocou o nome de Elke, em homenagem a Elke Maravilha.

Edna declarou no dia da sua liberdade: poderia passar fome, porém prostituta nunca mais seria.

Passados todos estes anos, perdi Edna de vista. Nenhuma notícia tenho dela ou da filha. Entretanto, Edna marcou minha vida. Primeiro, pelo resgate de sua existência. Segundo, pela promessa de que colocaria no filho por nascer o nome do juiz. Era o maior galardão que eu poderia receber, superior a qualquer prêmio, medalha, insígnia, consagração, dignidade ou comenda.

Lembremo-nos de Jesus diante da viúva que lançou duas moedinhas no cesto das ofertas: "Eu vos digo que esta pobre viúva lançou mais do que todos, pois todos aqueles deram do que lhes sobrava para as ofertas; esta, porém, na sua penúria, ofereceu tudo o que possuía para viver." (Lucas, 21, 1 a 4).

Edna era humilde e pobre. Sua maior riqueza era aquela criança que pulsava no seu ventre. Ela não me oferecia assim alguma coisa externa a ela, mas algo que era a expressão maior do seu ser. Se a promessa não se concretizou isto não tem relevância, pois sua intenção foi declarada. O que impediu a homenagem foi o fato de não lhe ter nascido um menino.

Em razão do que acabo de relatar, se eu encontrasse Edna, teria de agradecer o que ela fez por mim. Edna me ensinou a ser juiz. Edna me ensinou que mais do que os códigos valem as pessoas. Isso que eu aprendi dela tenho procurado transmitir a outros, principalmente a meus alunos e a jovens juízes.

Segue-se a íntegra da decisão extraída da folha 32 do Processo número 3.775, da Primeira Vara Criminal de Vila Velha:

A acusada é multiplicadamente marginalizada: por ser mulher, numa sociedade machista; por ser pobre, cujo latifúndio são os sete palmos de terra dos versos imortais do poeta; por ser prostituta, desconsiderada pelos homens, mas amada por um Nazareno que certa vez passou por este mundo; por não ter saúde; por estar grávida, santificada pelo feto que tem dentro de si, mulher diante da qual este juiz deveria se ajoelhar, numa homenagem à Maternidade, porém que, na nossa estrutura social, em vez de estar recebendo cuidados pré-natais, espera pelo filho na cadeia.

É uma dupla liberdade a que concedo neste despacho: liberdade para Edna e liberdade para o filho de Edna que, se do ventre da mãe puder ouvir o som da palavra humana, sinta o calor e o amor da palavra que lhe dirijo, para que venha a este mundo tão injusto com forças para lutar, sofrer e sobreviver.

Quando tanta gente foge da maternidade; quando milhares de brasileiras, mesmo jovens e sem discernimento, são esterilizadas; quando se deve afirmar ao mundo que os seres têm direito à vida, que é preciso distribuir melhor os bens da Terra e não reduzir os comensais; quando, por motivo de conforto ou até mesmo por motivos fúteis, mulheres se privam de gerar, Edna engrandece hoje este Fórum, com o feto que traz dentro de si.

Este Juiz renegaria todo o seu credo, rasgaria todos os seus princípios, trairia a memória de sua Mãe, se permitisse sair Edna deste Fórum sob prisão.

Saia livre, saia abençoada por Deus, saia com seu filho, traga seu filho à luz, que cada choro de uma criança que nasce é a esperança de um mundo novo, mais fraterno, mais puro, algum dia cristão.

Expeça-se incontinenti o alvará de soltura.

*João Baptista Herkenhoff, 74 anos, Juiz aposentado, Professor da Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha - ES, palestrante e escritor. Autor do livro Mulheres no banco dos réus - o universo feminino sob o olhar de um juiz. Editora Forense, Rio de Janeiro.

E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br

Homepage: www.jbherkenhoff.com.br