A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE NO EXCESSO DE FORMALISMO LICITATÓRIO E SUAS CONSEQUÊNCIAS
"Os juristas devem viver com sua época, se não querem que esta viva sem eles.”.
Louis Josserand
A prática dos operadores do direito, tem experimentado no último decênio de vigência da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, que em vários casos, há uma forte tendência à supra valoração do princípio da razoabilidade.
Em inúmeras chances isso ocorre em prejuízo da aplicação de outros princípios de origem constitucional e legal. Estes, por opção do legislador, uma vez positivados na norma, devem animar preferencialmente a atividade administrativa na condução de processos de licitação.
O “caput” do art. 37 da CF/88 enumera os princípios gerais regentes da Administração Pública. São os “princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”.
O Estado tem o dever de licitar a compra, o fornecimento e a contratação de bens, obras ou serviços. Tal obrigação é orientada pelo princípio da licitação pública, ao qual explicitou o Ministro Ilmar Galvão , do STF, quando disse:
A constituição Federal, no art. 37, instituiu princípios destinados à orientação do administrador, na prática dos atos administrativos, de molde a garantir a boa administração que se consubstancia na correta gestão dos negócios públicos e no manejo dos recursos públicos, no interesse coletivo, com o que também assegura aos administrados o seu direito a práticas administrativas honestas e probas. (Cf. José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 561) (sem grifos no original)
Entre eles, figura o princípio da licitação pública, previsto no inciso XXI do suso mencionado artigo, conforme o qual: “ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados medida processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei...”.
Constitui este, corolário do princípio da moralidade pública e do tratamento isonômico dos eventuais contratantes com o Poder Público.
Aliter, frisa-se que a partir deste modelo constitucional, a Lei n. 8.666/93, editada para regulamentar o inciso XXI do art. 37 da Constituição, prevê em seu art. 3º, que a “licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos”.
Pelo exame sistemático dos dispositivos constitucionais e legal acima transcritos, é possível enumerar diversos princípios que o legislador positivou como norte para a atividade administrativa em procedimentos licitatórios.
Insta informar que o princípio da eficiência, inserido no texto constitucional a partir da Emenda nº 19, de 04 de junho de 1998, portanto instituído depois da edição da Lei de Licitações, reforçou a tendência já existente na prática, na doutrina e na jurisprudência, de busca pela qualidade nas contratações públicas. Realçou o entendimento de que o mais vantajoso nem sempre é o mais barato, e que o mais barato pode não ser o melhor ou o mais eficiente.
Enleio aos princípios constitucionais e legais positivados pelo legislador para a regência dos processos de licitação, encontra-se analogicamente o da razoabilidade, na vereda da Lei n° 9.784/99, que trata do processo administrativo, que sendo posterior a Lei de Licitações, inova, trazendo ao contexto o disposto, no seu art. 2º, vejamos:
Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:
[...]
II - atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou competências, salvo autorização em lei;
III - objetividade no atendimento do interesse público, vedada a promoção pessoal de agentes ou autoridades;
[...]
IX - adoção de formas simples, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados;
[...]
XIII - interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação. (sem grifos no original)
Por este diapasão legal, então, percebe-se implicitamente que o princípio da razoabilidade é notado na concepção mais moderna do Direito Administrativo, razão esta que contempla que princípios jurídicos não positivados no diploma especial licitatório pelo legislador, como procedimentais das licitações públicas, também são aplicáveis no processo licitatório, de maneira subsidiária, a fim de dar lugar à aplicabilidade ao princípio da economicidade.
Profícuo, assim, é declarar que o Direito em geral e o Direito Administrativo são riquíssimos em princípios jurídicos de regência. Todos eles construídos sobre sólidos fundamentos filosóficos, e que podem servir de instrução ao aplicador da Lei, no momento de uma decisão sobre matéria de fato que não tenha sido objeto de previsão legal.
Merece, pois, pacificar, contudo, que os princípios não mencionados nos dispositivos aplicáveis às licitações, subsidiariamente podem instruir a atividade administrativa nos certames públicos, principalmente quando se simplifica atos que não prejudicam a concorrência, e se facilita procedimentos em favor da máquina estatal.
O preceptivo e a definição dos princípios regentes da atividade administrativa em matéria de licitação pública já são objeto de farta doutrina. Para uma melhor compreensão destas palavras, porém, é bom que se diga apenas que o princípio da razoabilidade deriva do princípio da proporcionalidade, originário do Direito alemão.
O princípio da razoabilidade recomenda, em linhas gerais, uma certa ponderação dos valores jurídicos tutelados pela norma aplicável à situação de fato. Como diz de Marçal Justen Filho, o princípio da proporcionalidade, prestigia a “instrumentalidade das normas jurídicas em relação aos fins a que se orientam” e “exclui interpretações que tornem inútil a(s) finalidade(s) buscada(s) pela norma”. (JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 9a Ed., São Paulo: Dialética, 2002, p. 66- 67).
A razoabilidade é comumente invocado para deixar de inabilitar ou de desclassificar concorrentes em certames licitatórios, ainda quando presentes motivos reais e suficientes para as suas exclusões das licitações. Na maior parte das vezes, o princípio da razoabilidade fundamenta decisões de caráter subjetivo mais que espraia finalidade contundente a gestão efetiva.
Na circunstância da vida, o fundamento de decisões no princípio da razoabilidade vem, habitualmente, associado à rejeição ao excesso de formalismo, quando do julgamento de documentos de habilitação ou de propostas técnicas ou comerciais apresentadas por licitantes. Daí porque esta explanação conjuga a abordagem do tema tanto no aspecto do princípio da razoabilidade, quanto no da rejeição ao rigorismo formal, quando da apreciação de documentos e propostas em licitações públicas.
O excesso de formalismo, com efeito, não deve permear as ações dos agentes públicos na execução das licitações. A doutrina e a jurisprudência repudiam o rigorismo formal e homenageiam as decisões administrativas que, a bem dos demais princípios regentes da Administração Pública, afastam a inabilitação e a desclassificação de concorrentes por fatos irrelevantes, que não afetam a objetividade e a efetividade de suas propostas perante o Poder Público e nem os põem em posição vantajosa em relação aos demais participantes.
As temáticas do excesso de formalismo, da irrelevância das falhas e da aplicação da razoabilidade em licitações públicas, foram objeto de decisão unânime no âmbito do Supremo Tribunal Federal:
RMS 23714 / DF - DISTRITO FEDERAL
RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA
Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE
Julgamento: 05/09/2000 Órgão Julgador: Primeira Turma
Publicação
DJ 13-10-2000 PP-00021 EMENT VOL-02008-02 PP-00226
Parte(s)
RECTE. : UNISYS BRASIL LTDA
ADVDOS. : SÉRGIO CARVALHO E OUTROS
RECDO. : TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL
LIT.PAS. : PROCOMP INDÚSTRIA ELETRÔNICA LTDA
ADVDA. : LÚCIA REGINA TUCCI
ADVDOS. : LUIZ CUSTÓDIO DE LIMA BARBOSA E OUTROS
Ementa
EMENTA: Licitação: irregularidade formal na proposta vencedora que,
por sua irrelevância, não gera nulidade.
Indexação
AD0634 , LICITAÇÃO PÚBLICA, EDITAL, VIOLAÇÃO, ALEGAÇÃO, DESCABIMENTO,
NULIDADE, INEXISTÊNCIA, TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL,
CONCORRÊNCIA, URNAS ELETRÔNICOS, COMPONENTES, PREÇOS
UNITÁRIOS, ENUMERAÇÃO, INSTRUMENTO EDITALÍCIO, EXIGÊNCIA,
PARTE VENCEDORA, DESCUMPRIMENTO, MERA IRREGULARIDADE FORMAL,
OCORRÊNCIA
Legislação
LEG-FED CF ANO-1988
ART-00037 INC-00021
CF-1988 CONSTITUIÇÃO FEDERAL
LEG-FED LEI-008666 ANO-1993
ART-00003 ART-00007 PAR-00002 INC-00003
ART-00047 ART-00065 PAR-00003
LEG-FED LEI-009893 ANO-1999
Observação
Votação: unânime.
Resultado: desprovido.
Acórdão citado: ADIMC-651; RTJ-143/502.
N.PP.:(16). Análise:(LNT). Revisão:(RCO/AAF).
Inclusão: 16/02/01, (MLR).
Alteração: 13/09/04, (NT).
Doutrina
OBRA: TRATADO DE DIREITO ADMINISTRATIVO , VOL-3
AUTOR: JOSÉ CRETELLA JÚNIOR
EDIÇÃO: 1967 PÁGINA: 108
OBRA: DIR. CONSTITUCIONAL POSITIVO
AUTOR: JOSÉ AFONSO DA SILVA
PÁGINA: 561
fim do documento
Pelo transcrito é facilmente perceptível a orientação do entendimento do STF pelo princípio da razoabilidade, na questão em debate.
E, ainda, a doutrina mais autorizada assenta que o princípio da proporcionalidade e o princípio da razoabilidade dele derivado instruem o exercício do poder discricionário do agente público. A discricionariedade, porém, em termos de licitação pública, não é absoluta e está pautada pelos limites que a própria Lei de Licitações impôs ao seu exercício. Em diversos pontos a Lei n. 8.666/93 faculta ao agente público agir de uma maneira ou de outra; permite impor aos licitantes e à própria Administração requisitos mais ou menos rigorosos; faculta também a formulação de exigências variáveis de acordo com a complexidade e a relevância do objeto licitado, sempre respeitada a espinha dorsal da Lei.
O exercício dessas opções deve se dar na fase interna da licitação, quando a Administração definirá, de acordo com suas necessidades e com o interesse público subjacente, o objeto a ser licitado, sua especificação, quantidade, qualidade, prazo de execução ou de fornecimento, etc. Definirá também quais exigências serão opostas aos pretensos concorrentes, para que assim se minimizem os riscos de contratar com licitantes incapazes de concretizar o objeto, e se assegure a seleção da proposta mais vantajosa para a Administração dentre aquelas formuladas por concorrentes aptos a contratar com o Poder Público o objeto licitado.
Nesse momento, a atividade do administrador deve ser instruída pelos princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da rejeição ao excesso de formalismo, além de outros igualmente relevantes; tudo dentro da pauta da Lei, mas sempre objetivo de ampliar ao máximo o espectro de concorrentes capazes de contratar com a Administração.
O Tribunal da Cidadania, STJ, segue esta linha, vejamos:
MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO. PROPOSTA TÉCNICA. INABILITAÇÃO. ARGÜIÇÃO DE FALTA DE ASSINATURA NO LOCAL PREDETERMINADO. ATO ILEGAL. EXCESSO DE FORMALISMO. PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE.
1. A interpretação dos termos do Edital não pode conduzir a atos que acabem por malferir a própria finalidade do procedimento licitatório, restringindo o número de concorrentes e prejudicando a escolha da melhor proposta.
2. O ato coator foi desproporcional e desarrazoado, mormente tendo em conta que não houve falta de assinatura, pura e simples, mas assinaturas e rubricas fora do local preestabelecido, o que não é suficiente para invalidar a proposta, evidenciando claro excesso de formalismo. Precedentes.
3. Segurança concedida.
(MS 5.869/DF, Rel. Ministra LAURITA VAZ, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 11.09.2002, DJ 07.10.2002 p. 163) (grifos nossos)
ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO. HABILITAÇÃO. EXIGÊNCIA EXCESSIVA.
1. É excessiva a exigência feita pela administração pública de que, em procedimento licitatório, o balanço da empresa seja assinado pelo sócio-dirigente, quando a sua existência, validade e eficácia não foram desconstituídas, haja vista estar autenticado pelo contador e rubricado pelo referido sócio.
[...]
3. O procedimento licitatório há de ser o mais abrangente possível, a fim de possibilitar o maior número possível de concorrentes, tudo a possibilitar a escolha da proposta mais vantajosa.
4. Não deve ser afastado candidato do certame licitatório, por meros detalhes formais. No particular, o ato administrativo deve ser vinculado ao princípio da razoabilidade, afastando-se de produzir efeitos sem caráter substancial.
5. Segurança concedida.
(MS 5631/DF, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 13.05.1998, DJ 17.08.1998 p. 7) (grifos nossos)
Bem instruída, estão assim, as bases da já sólida jurisprudência pátria, porquê pelo qual não se deve apenar servidores que de tudo fazem para prevalecer a finalidade da licitação, qual seja, a concorrência e a isonomia, fundamentada na perspectiva de ação do poder público, que muito das vezes fica entrevado por falta de ser alavancado em procedimentos demorados, pelo princípio da simplicidade, para alcançar-se a efetividade tão esperada e prestigiada quando os resultados do interesse coletivo são atendidos. E, que só podem ser feitos pelo caminho da discricionariedade de agentes intrépidos e sagazes, que por um enfoque distorcido acabam sendo vítimas de ações de improbidade infundadas.
Rogério Wanderley Guasti, Advogado do Siqueira Castro – Advogados, Mestre em Direito e Economia pela UGF/Rio, MBA em Direito Tributário pela FGV/Rio, Professor da Faculdade Nacional.