DIREITO E JUSTIÇA. 1.2 - Vingança Divina.
Neste período os homens já se encontram num estágio mais avançado de civilização. O poder social é exercido em nome de Deus (Estado Teocrático), bem como a Justiça e a punição do crime.
Relata a Bíblia que Moisés subiu ao alto do monte Sinai e que lá Deus lhe apareceu, e escreveu com a ponta do dedo, de onde saíam chispas de fogo, os Dez Mandamentos (“Decálogo"), que se tornam, a partir de então, a lei penal dos Hebreus.
Licurgo, na Grécia antiga, antes de dar publicidade às suas leis, consultava os Oráculos, que haviam de lhe dar inspiração e aprovar ou desaprovar os textos que lhe eram submetidos.
Já desde os tempos da vingança privada começava a existir a intervenção da autoridade pública na punição do crime.
Assim, por exemplo, a solidariedade do clã não protege o criminoso preso em flagrante, que pode ser executado imediatamente, tanto pelos parentes da vítima, como por assistentes. Vigorava o dever de cooperação e ajuda em favor do agredido. Podia haver luta, em que o agressor saia vitorioso, ou morto.
Ao lado disso, havia um grupo de crimes específicos considerados mais graves, como a traição, a feitiçaria, o sacrilégio, o adultério, a pederastia, aos quais se aplicava a pena de morte pública.
Como o Direito penal estava baseado na ideia de expiação, os que desrespeitavam os mandamentos de Deus e praticavam essas espécies de crimes, considerados violações terríveis, tinham que ser entregues em sacrifício, para aplacar a cólera divina. Daí surgiu a palavra pena, que em suas origens significa expiação, purificação.
Aliás, apesar de alguns escritores entenderem de outra forma, ilustres tratadistas, dentre os quais Proal, acentuam: “A palavra pena, nos antigos autores gregos, tem portanto, primitivamente, uma dupla significação: compensação e expiação. Compensação no sentido da multa que se pagava pelo assassinato de um homem, e, por extensão, tinha um sentido de reparação de um crime, pena expiação. Sou levado a adotar a opinião de Pictet e Pott, que fazem derivar pena da palavra sâncrita punia, cuja raiz é punati (Purificar)”.1
Crime e pecado eram a mesma coisa. O criminoso deveria ser punido, para se aplacar a cólera divina, que ficava irada com a violação às suas Leis, e, em represália, castigava o povo. Como a época era de civilizações eminentemente agrícolas, quando faltava chuva ou surgia qualquer fenômeno oriundo da inclemência da natureza, os lavradores suportavam tremendos prejuízos e costumavam até passar fome. Por isso, desesperados, lançavam a culpa de suas aflições em cima daqueles que, desrespeitando os “mandamentos” teriam provocado o Deus Todo-Poderoso.
Esta foi a fase em que apareceram as penas mais desumanas e cruéis, oriundas do fanatismo e da paixão religiosa.
Apresenta-se de extraordinária importância para a História do mundo, em geral, e para a História do Direito Penal, em particular, este período da “vingança divina”, que se prolonga desde muitos anos antes de Cristo, até a Revolução Francesa, no final do século XVIII, exercendo decisiva influência em todo desenvolvimento de nossa ciência.
Veja-se que Jesus Cristo foi condenado à morte por exigência dos religiosos. Pilatos, romano agnóstico, segundo relata a Bíblia, (Lucas: 23): “Disse então aos príncipes dos sacerdotes e à multidão: “nada encontro de culpável neste homem”. “Mas eles insistiam, dizendo: “Ele amotina o povo, ensinando por toda a Judéia, desde a Galiléia, onde começou, até aqui”. “Ao ouvir isto, Pilatos Perguntou se o homem era Galileu; e ao saber que era da jurisdição de Herodes, enviou-o a este, que também estava em Jerusalém naqueles dias”. Herodes fez-lhe muitas perguntas, mas ele nada respondeu. Os príncipes dos sacerdotes e os escribas que lá estavam acusavam-nO insistentemente. Herodes, com seus oficiais tratou-O com desprezo, e, por troça, mandou cobrir com uma capa magnífica, enviando-O de novo a Pilatos. Nesse dia, Herodes e Pilatos ficaram amigos, pois antes eram inimigos um do outro. Pilatos convocou os príncipes dos sacerdotes, os chefes e o povo, e disse-lhe: “Trouxestes este homem à minha presença como um pervertedor do povo. Interroguei-O diante de vós e não encontrei n’Ele nenhum dos crimes de que o acusais. Herodes, tampouco, visto que no-Lo mandou de novo”.
Como se vê, o romano ateu insistiu várias vezes, querendo evitar a crucificação. Cedeu ante a pressão dos príncipes e sacerdotes, líderes da religião hebraica.
Quinze séculos depois do suplício de Cristo, Joana d’Arc morreu na fogueira, condenada que foi pelo Bispo Pierre Couchon, Juiz do Tribunal que a sentenciou, e figura destacada da Igreja Católica, que hoje a tem como Santa.
Suplícios, torturas, sofrimentos indescritíveis, penas por crimes os mais absurdos. A feitiçaria, a bruxaria, demonomania, a magia branca e a magia negra eram crimes reprimidos com a máxima violência e severidade: mutilações, esquartejamentos e mortes atrozes, não apenas na pessoa do criminoso, mas em todos os seus familiares – ascendentes e descendentes.
Não se obedecia a critério de espécie alguma nem existia o mínimo resquício de Justiça. Os nobres, os aristocráticos, os príncipes e poderosos, situavam-se acima da lei e da Justiça. Enquanto isso, os plebeus aguentavam todo o peso da inclemência de julgamentos secretos e sumários, em que não se lhes dava o mínimo direito de defesa. Muitos fatos passavam a constituir crime no dia do julgamento, em virtude de interpretações absurdas, da cegueira dos Tribunais, e não eram crime no dia em que tinham sido praticados.
A “noite negra da Idade Média”, o “terror do Santo Ofício”, o arbítrio dado aos Juizes para aplicarem penas sem obedecerem a critérios, tudo isso abriu caminho para as grandes transformações que se seguiram.
O código de Manu, da Índia, é um exemplo de legislação do período da vingança divina.
Assim também o Decálogo, de Moisés. O Direito Penal dos hebreus caracterizou-se por ser um Direito eminentemente religioso. Exemplos de suas disposições acham-se especialmente nos livros da Bíblia: “Números” e “Deuteronômio”.
Durante o Império Romano e dos Francos, a Igreja permaneceu sob o domínio do Estado. A partir do século II depois de Cristo iniciou-se a luta do Papado para obtenção do Supremo Poder Eclesiástico e mundial, entendendo que, como representante de Deus na terra, cabia-lhe ditar as Leis aos Estados. Essa interferência começou timidamente, até dominar totalmente. Esse domínio só veio a decair no Iluminismo, em pleno século XVIII.
A autoridade religiosa não se limitava a punir espiritualmente. Ela se utilizava da violência e das penas físicas para manter a disciplina da Igreja. A pessoa excomungada tinha todos os seus bens confiscados; era marcada na carne e no rosto, para se caracterizar sua ignomínia; devia ser evitada como se evitava um leproso; sua casa era assinalada para que ninguém nem passasse na porta; atiravam-se pedras nela e em seus familiares. Para que o excomungado ficasse mais odiado, punia-se também a localidade onde ele residia: ficavam proibidos cultos ali, sacramentos, batismos, comunhões, casamentos; suprimia-se, ainda, a sepultura eclesiástica. Com isso o pânico apoderava-se do público e erguia-se uma indignação geral contra o infeliz. Ai do príncipe, rei ou senhor Feudal que, excomungado, não se apressasse em pedir absolvição e em se humilhar perante a Igreja, submetendo-se às suas penitências.
O Direito Canônico, emanado da Igreja católica, influiu diretamente em toda a legislação penal da Idade Média. Pode-se dizer que todo o Direito Penal da Idade Média foi um produto da reunião dos Direitos romano, canônico e locais. Locais eram os direitos costumeiros, ou Direito comum, que predominava dentre os germânicos, francos, etc., durante a Idade Média. Fala-se que houve a Recepção, quando se deu recebimento elos povos germânicos, (que só conheciam o Direito comum) do Direito Romano, fazendo-se a fusão que propiciou a notável evolução científica.
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1. Proal, Le Crime et la Peine. Felix alan Editeur.
Fonte bibliográfica citada no texto anterior acrescida de:
Mommsem, Theodoro. - Direio Penal Romano. Ed. Temis.
Siqueira, Galdina. Tratado de Direito Penal. Ed. José Konfino. 1950.
Biblia de Jerusalém.
OS TRÊS OLHARES DE CRISTO
-Amici, ad qui venisti?
Mt 26, 50
Com piedade olhaste o jovem rico,
Clemência ao traidor Judas, tiveste.
Amigo – perguntaste – a que vieste?
Sabendo que o beijo fez-se risco.
Juntaste tuas ovelhas num aprisco
Buscando, enfim, salvá-las de uma peste.
Jesus, os três olhares que lhes deste
Tirou-lhes das retinas muito cisco.
Misericordioso, olhaste a Pedro
Tal como assim o viste na canoa
Pedro e Jesus marcaram aquela cena...
Pudesse eu gravar no Puro Cedro:
O homem discrimina, exclui, condena.
Cristo tem piedade, acolhe e perdoa!
- Hermílio -
Neste período os homens já se encontram num estágio mais avançado de civilização. O poder social é exercido em nome de Deus (Estado Teocrático), bem como a Justiça e a punição do crime.
Relata a Bíblia que Moisés subiu ao alto do monte Sinai e que lá Deus lhe apareceu, e escreveu com a ponta do dedo, de onde saíam chispas de fogo, os Dez Mandamentos (“Decálogo"), que se tornam, a partir de então, a lei penal dos Hebreus.
Licurgo, na Grécia antiga, antes de dar publicidade às suas leis, consultava os Oráculos, que haviam de lhe dar inspiração e aprovar ou desaprovar os textos que lhe eram submetidos.
Já desde os tempos da vingança privada começava a existir a intervenção da autoridade pública na punição do crime.
Assim, por exemplo, a solidariedade do clã não protege o criminoso preso em flagrante, que pode ser executado imediatamente, tanto pelos parentes da vítima, como por assistentes. Vigorava o dever de cooperação e ajuda em favor do agredido. Podia haver luta, em que o agressor saia vitorioso, ou morto.
Ao lado disso, havia um grupo de crimes específicos considerados mais graves, como a traição, a feitiçaria, o sacrilégio, o adultério, a pederastia, aos quais se aplicava a pena de morte pública.
Como o Direito penal estava baseado na ideia de expiação, os que desrespeitavam os mandamentos de Deus e praticavam essas espécies de crimes, considerados violações terríveis, tinham que ser entregues em sacrifício, para aplacar a cólera divina. Daí surgiu a palavra pena, que em suas origens significa expiação, purificação.
Aliás, apesar de alguns escritores entenderem de outra forma, ilustres tratadistas, dentre os quais Proal, acentuam: “A palavra pena, nos antigos autores gregos, tem portanto, primitivamente, uma dupla significação: compensação e expiação. Compensação no sentido da multa que se pagava pelo assassinato de um homem, e, por extensão, tinha um sentido de reparação de um crime, pena expiação. Sou levado a adotar a opinião de Pictet e Pott, que fazem derivar pena da palavra sâncrita punia, cuja raiz é punati (Purificar)”.1
Crime e pecado eram a mesma coisa. O criminoso deveria ser punido, para se aplacar a cólera divina, que ficava irada com a violação às suas Leis, e, em represália, castigava o povo. Como a época era de civilizações eminentemente agrícolas, quando faltava chuva ou surgia qualquer fenômeno oriundo da inclemência da natureza, os lavradores suportavam tremendos prejuízos e costumavam até passar fome. Por isso, desesperados, lançavam a culpa de suas aflições em cima daqueles que, desrespeitando os “mandamentos” teriam provocado o Deus Todo-Poderoso.
Esta foi a fase em que apareceram as penas mais desumanas e cruéis, oriundas do fanatismo e da paixão religiosa.
Apresenta-se de extraordinária importância para a História do mundo, em geral, e para a História do Direito Penal, em particular, este período da “vingança divina”, que se prolonga desde muitos anos antes de Cristo, até a Revolução Francesa, no final do século XVIII, exercendo decisiva influência em todo desenvolvimento de nossa ciência.
Veja-se que Jesus Cristo foi condenado à morte por exigência dos religiosos. Pilatos, romano agnóstico, segundo relata a Bíblia, (Lucas: 23): “Disse então aos príncipes dos sacerdotes e à multidão: “nada encontro de culpável neste homem”. “Mas eles insistiam, dizendo: “Ele amotina o povo, ensinando por toda a Judéia, desde a Galiléia, onde começou, até aqui”. “Ao ouvir isto, Pilatos Perguntou se o homem era Galileu; e ao saber que era da jurisdição de Herodes, enviou-o a este, que também estava em Jerusalém naqueles dias”. Herodes fez-lhe muitas perguntas, mas ele nada respondeu. Os príncipes dos sacerdotes e os escribas que lá estavam acusavam-nO insistentemente. Herodes, com seus oficiais tratou-O com desprezo, e, por troça, mandou cobrir com uma capa magnífica, enviando-O de novo a Pilatos. Nesse dia, Herodes e Pilatos ficaram amigos, pois antes eram inimigos um do outro. Pilatos convocou os príncipes dos sacerdotes, os chefes e o povo, e disse-lhe: “Trouxestes este homem à minha presença como um pervertedor do povo. Interroguei-O diante de vós e não encontrei n’Ele nenhum dos crimes de que o acusais. Herodes, tampouco, visto que no-Lo mandou de novo”.
Como se vê, o romano ateu insistiu várias vezes, querendo evitar a crucificação. Cedeu ante a pressão dos príncipes e sacerdotes, líderes da religião hebraica.
Quinze séculos depois do suplício de Cristo, Joana d’Arc morreu na fogueira, condenada que foi pelo Bispo Pierre Couchon, Juiz do Tribunal que a sentenciou, e figura destacada da Igreja Católica, que hoje a tem como Santa.
Suplícios, torturas, sofrimentos indescritíveis, penas por crimes os mais absurdos. A feitiçaria, a bruxaria, demonomania, a magia branca e a magia negra eram crimes reprimidos com a máxima violência e severidade: mutilações, esquartejamentos e mortes atrozes, não apenas na pessoa do criminoso, mas em todos os seus familiares – ascendentes e descendentes.
Não se obedecia a critério de espécie alguma nem existia o mínimo resquício de Justiça. Os nobres, os aristocráticos, os príncipes e poderosos, situavam-se acima da lei e da Justiça. Enquanto isso, os plebeus aguentavam todo o peso da inclemência de julgamentos secretos e sumários, em que não se lhes dava o mínimo direito de defesa. Muitos fatos passavam a constituir crime no dia do julgamento, em virtude de interpretações absurdas, da cegueira dos Tribunais, e não eram crime no dia em que tinham sido praticados.
A “noite negra da Idade Média”, o “terror do Santo Ofício”, o arbítrio dado aos Juizes para aplicarem penas sem obedecerem a critérios, tudo isso abriu caminho para as grandes transformações que se seguiram.
O código de Manu, da Índia, é um exemplo de legislação do período da vingança divina.
Assim também o Decálogo, de Moisés. O Direito Penal dos hebreus caracterizou-se por ser um Direito eminentemente religioso. Exemplos de suas disposições acham-se especialmente nos livros da Bíblia: “Números” e “Deuteronômio”.
Durante o Império Romano e dos Francos, a Igreja permaneceu sob o domínio do Estado. A partir do século II depois de Cristo iniciou-se a luta do Papado para obtenção do Supremo Poder Eclesiástico e mundial, entendendo que, como representante de Deus na terra, cabia-lhe ditar as Leis aos Estados. Essa interferência começou timidamente, até dominar totalmente. Esse domínio só veio a decair no Iluminismo, em pleno século XVIII.
A autoridade religiosa não se limitava a punir espiritualmente. Ela se utilizava da violência e das penas físicas para manter a disciplina da Igreja. A pessoa excomungada tinha todos os seus bens confiscados; era marcada na carne e no rosto, para se caracterizar sua ignomínia; devia ser evitada como se evitava um leproso; sua casa era assinalada para que ninguém nem passasse na porta; atiravam-se pedras nela e em seus familiares. Para que o excomungado ficasse mais odiado, punia-se também a localidade onde ele residia: ficavam proibidos cultos ali, sacramentos, batismos, comunhões, casamentos; suprimia-se, ainda, a sepultura eclesiástica. Com isso o pânico apoderava-se do público e erguia-se uma indignação geral contra o infeliz. Ai do príncipe, rei ou senhor Feudal que, excomungado, não se apressasse em pedir absolvição e em se humilhar perante a Igreja, submetendo-se às suas penitências.
O Direito Canônico, emanado da Igreja católica, influiu diretamente em toda a legislação penal da Idade Média. Pode-se dizer que todo o Direito Penal da Idade Média foi um produto da reunião dos Direitos romano, canônico e locais. Locais eram os direitos costumeiros, ou Direito comum, que predominava dentre os germânicos, francos, etc., durante a Idade Média. Fala-se que houve a Recepção, quando se deu recebimento elos povos germânicos, (que só conheciam o Direito comum) do Direito Romano, fazendo-se a fusão que propiciou a notável evolução científica.
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1. Proal, Le Crime et la Peine. Felix alan Editeur.
Fonte bibliográfica citada no texto anterior acrescida de:
Mommsem, Theodoro. - Direio Penal Romano. Ed. Temis.
Siqueira, Galdina. Tratado de Direito Penal. Ed. José Konfino. 1950.
Biblia de Jerusalém.
OS TRÊS OLHARES DE CRISTO
-Amici, ad qui venisti?
Mt 26, 50
Com piedade olhaste o jovem rico,
Clemência ao traidor Judas, tiveste.
Amigo – perguntaste – a que vieste?
Sabendo que o beijo fez-se risco.
Juntaste tuas ovelhas num aprisco
Buscando, enfim, salvá-las de uma peste.
Jesus, os três olhares que lhes deste
Tirou-lhes das retinas muito cisco.
Misericordioso, olhaste a Pedro
Tal como assim o viste na canoa
Pedro e Jesus marcaram aquela cena...
Pudesse eu gravar no Puro Cedro:
O homem discrimina, exclui, condena.
Cristo tem piedade, acolhe e perdoa!
- Hermílio -