SUFRÁGIO, NORMAS E PARADIGMAS
 
A evolução material, formal e circunstancial de um determinado instituto do Direito sempre auxilia na compreensão das circunstâncias e princípios que o transportaram a uma dimensão normativa positivada.
Tem-se neste espaço um resumido traçado da evolução no âmbito da história no que concerne à qualificação do indivíduo para o exercício do sufrágio, com vistas à visualização do quadro evolutivo e melhor compreensão do processo normativo.
Extrai-se dos livros de história geral que a idéia absolutista surgiu a partir do conflito entre igreja católica e o grande produtor rural. O Papa queria manter sua autoridade em todas as dimensões (política, econômica e social) e o latifundiário não queria entregar a gestão de seus bem sucedidos negócios a outrem. Dessa disputa surgiu, então, um novo personagem, o Rei. 
 Este, logo, conquistou e centralizou todos os atributos do poder político. Assim, os indivíduos passaram a se subjugarem a uma autoridade que se autodenominava o próprio Estado.
 Depois de muitos conflitos, injustiças sangrentas, e apavorantes procedimentos num cenário de guilhotinas e atrocidades, finalmente a voz dos inconformados consegue escapar da perseguição e surge o tão conhecido ideário liberal do “Século das Luzes”, clamando pela liberdade dos indivíduos, pela limitação dos poderes monarcas e, principalmente, devolução da soberania ao povo, que passou a ser visto como o legítimo dono.
 O sistema representativo passou a ser o alicerce para efetivação da transferência de soberania. 
 O rei já não podia mais ser visto como um Deus, mas apenas um representante daquele que detinha a soberania, o povo.
 A Seção II, da Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia, de 16 de junho de 1776 assentou que:
 
 “Todo poder reside no povo e, por conseqüência, deriva do povo; os magistrados são seus mandatários e servidores e responsáveis a todo o tempo perante ele" (1).
 

A Declaração de Independência dos Estados Unidos teve inserido também em seu texto que:
 
“[...]Os governos são estabelecidos entre os homens para assegurar estes direitos e os seus justos poderes derivam do consentimento dos governados; quando qualquer forma de governo se torna ofensiva destes fins, é direito do povo altera-la ou aboli-la, e instituir um novo governo, baseando-o nos princípios e organizando os seus poderes pela forma que lhe pareça mais adequada a promover a sua segurança e felicidade”. (2)
 
Vale lembrar ainda que “o toque de universalidade da França Revolucionária de 26 de agosto de 1789”, afirmou que 
 
“o princípio de toda a soberania reside essencialmente na Nação. Nenhuma corporação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que daquela não emane expressamente (art. 3º)”(3).
 

Foi então que surgiram novas circunstâncias e movimentos, cuja dinâmica causou impactos sociais e econômicos, provocando debates e tentativas filosóficas complexas.
Kelsen usou como argumento fundamental para sua grande obra “Teoria Pura do Direito” um momento de confusão histórica de respeito e ideais humanitários causados pela guerra. Uma fase que tornava legítima qualquer tentativa de reorganização do Direito em busca de algum equilíbrio social. Época que a guerra mundial e as suas  conseqüências fizeram verdadeiramente saltar dos eixos, em que as bases da vida social foram profundamente abaladas e, por isso, as oposições dentro dos Estados se aguçaram até ao extremo limite. O ideal de uma ciência objetiva do Direito e do Estado só num período de equilíbrio social pode aspirar a um reconhecimento generalizado (4).
Portanto, extrai-se destes fatos que tudo acontece ao sabor da dinâmica dos paradigmas, e Menelick ao discorrer sobre a “teoria da interpretação desenvolvida de Kelsen a Dworkin”, ressalta que:
 
“A profunda revisão doutrinária que tem conduzido, de modo crescente e de par com as marcantes alterações ocorridas nas duas ou três últimas décadas em todos os âmbitos da vida humana – resultantes da nova estrutura societária pluralista e hipercomplexa das denominadas sociedades pós-industriais, da crítica aos excessos da razão iluminista acolhida pela modernidade no âmago do próprio conceito de ciência, do advento de novas tecnologias e saberes, da exigência de se rever a relação puramente predatória com a natureza, do advento dos direitos da 3ª geração e do fracasso do modelo do Estado Social – à constituição desse novo paradigma, possibilita e exige a recunhagem do próprio estatuto da Ciência ou Teoria Geral do Direito, redefine e amplia suas fronteiras, seus conceitos básicos e seu próprio Direito, sobretudo, do Judiciário em sua relação cotidiana com a efetividade dos ideais constitucionais como implementação, concretização e efetivação da Justiça e da cidadania.” (5)
 
Foulcault também deixou sua contribuição quando observa a evolução que modifica paradigmas:
 
“Como é que se pode razoavelmente comparar o constrangimento da verdade com as partilhas referidas, partilhas que à partida são arbitrárias, ou que, quando muito, se organizam em torno de contingências históricas; que não são apenas modificáveis, mas estão em perpétuo deslocamento; que são sustentadas por todo um sistema de instituições que as impõem e as reconduzem; que, ao fim e ao cabo, não se exercem sem constrangimento, ou pelo menos sem um pouco de violência. É claro que, colocando-nos, no interior de um discurso, ao nível de uma proposição, a partilha entre o verdadeiro e o falso não é nem arbitrária, nem modificável, nem institucional, nem violenta. Mas, numa outra escala, se nos pusermos a questão de saber, no interior dos nossos discursos, qual foi, qual é, constantemente, essa vontade de verdade que atravessou tantos séculos da nossa história, ou, na sua forma muito geral, qual o tipo de partilha que rege a nossa vontade de saber, então talvez vejamos desenhar-se qualquer coisa como um sistema de exclusão (sistema histórico, modificável, institucionalmente  constrangedor)” (6).
 
A dinâmica dos paradigmas caminha a passos cada vez mais acelerados e, na maioria das vezes, o processo legislativo não consegue seguir o mesmo ritmo. Por isso deparamos com surpresas, alardes e revoluções dos mais variados tipos, em forma de passeatas (gays) e invasões (sem terra).

Portanto ainda que a aparência de verdade absoluta de qualquer fato ou circunstância, mesmo que tenha sobrevivido por longo tempo, podem ser dissipadas ao se depararam com verdades antes obscuras, forçando uma nova ordem normativa de melhor aproveitamento e eficácia cujo ideal seria a promulgação sempre aliada à velocidade das mudanças.

 
 
NOTAS
 
(1) JUNIOR NOBRE, Edison Pereira. Da Perda e Suspensão dos Direitos Políticos. In: Revista de informação Legislativa. Ano 35. N. 139. Jul./Set. de 1998. Brasília: Senado Federal. Subsecretaria de Edições Técnicas, pp 203-216.
(2) idem
(3) ibid
(4) KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Prefácio à primeira edição, p. XIV. Material fornecido durante o Curso de Pós-Graduação 2007/2008.
(5) NETTO, Menelick de Carvalho. A interpretação das leis: um problema metajurídico ou uma questão essencial do direito? De Hans Kelsen a Ronald Dworkin. Material fornecido pelo autor durante o Curso de Pós-
Graduação em Direito Eleitoral Constitucional 2007/2008.
(6) FOUCAULT, Michael. A Ordem do Discurso (L’Ordre du discours, Leçon inaugurale ao Collège de France prononcée le 2 décembre 1970, Éditions Gallimard, Paris, 1971.). Tradução de Edmundo Cordeiro com a ajudapara a parte inicial do António Bento. http://www.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/ordem.html, 28/02/2008, 22:32
 


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