O Despertar

O Despertar

“Quem planta violência na infância, colhe vidas adultas seriamente problemáticas”. Este foi o enfoque da introdução do caderno Atualidades, da edição do Jornal O Liberal, da última sexta-feira, 04 de junho de 2010.

Violência na infância, uma realidade vivenciada por todos, que agride, fere, silencia e deixa marcas eternas, comprometendo o desenvolvimento, a integração social do indivíduo. Então, como pensar uma realidade diferente, se o próprio poder público responsável por proporcionar vida com dignidade, cidadania, liberdade, não cumpre seu papel? Como entender uma sociedade dita democrática que deixa seus cidadãos, suas crianças marginalizadas? Como pensar em justiça, se o que vivenciamos são injustiças, descasos, negligências? Como viver com dignidade numa terra sem a maioria dos direitos garantidos?

Rousseau, na obra O Contrato Social, expõe sua noção do que seria este contrato, apresentando-o como um acordo entre indivíduos para se criar uma Sociedade, e só então um Estado. Afirmou ser o Contrato um pacto de associação e não de submissão. Entretanto, o sentido do que seria o contrato social na sociedade do século XXI difere totalmente daquele contrato pensado por Rousseau. O que se apresenta na realidade, é um contrato de desigualdades, em que o Estado disfarçado de democrático deixa de cumprir seu papel de promotor de direitos humanos e de direitos sociais, praticando a violência mais absurda que se possa imaginar, a omissão.

Neste contexto de omissões, a violência que assola o mundo, que mancha o verde e amarelo de sangue - vermelho, torna-se também infante. Sim, falo da violência na infância e, neste conjunto, duas figuras são destacadas; novamente o Estado e a família. Família que a Constituição Federal brasileira diz ser direito do cidadão e dever do Estado protegê-la. Contudo, é nesta mesma família assegurada no texto constitucional que acontece o maior índice de violência. Crianças espancadas, abusadas sexualmente, molestadas, sofrendo todo tipo de violência, da física a psicológica, tendo como principais agressores, os pais, padrastos, tios, avós, mãe, madrastas.

Essa máxima tem se tornado uma realidade cada vez mais frequente. Ainda que o Estatuto da Criança e do Adolescente disponha um conjunto de normas do ordenamento jurídico brasileiro que tem como objetivo a proteção integral da criança e do adolescente, aplicando medidas, e expedindo encaminhamentos, a realidade é o cerceamento da inocência e a formação de adultos problemáticos.

Mas não caberia ao Estado as garantias constitucionais? Decerto que se dispõe na Constituição este enunciado. Contudo, o Estado ético que, segundo Hegel deveria atuar na sociedade, o que promoveria o bem de todos, não é o Estado brasileiro. O que temos é um poder decadente, divido em grupos com interesses próprios.

Então, se o principal promotor das garantias de direitos humanos, de direitos sociais não cumpre seu papel, o que esperar para o futuro?

Parece que com a chegada da globalização tornou-se outro Estado, realmente estamos vivendo um momento de barbáries, mortes assaltos, sequestros, violências de todas as espécies. Mas será que já não era um Estado ausente? Será que a violência é fruto da globalização ou apenas tornou-se clara aos olhos da população?

O fato é que o novo Estado é fruto do capitalismo, ainda que seja dito democrático ou que tente trabalhar uma democracia, que se entende como viciada. Enquanto fruto do capitalismo, visa muito mais as questões econômicas do que as sociais, especialmente porque a indústria, o empresariado, são os que financiam as campanhas eleitorais. Destarte, o compromisso maior é direcionado as políticas econômicas que visem atender aos seus patrocinadores.

Claro que as vidas ceifadas, mutiladas ninguém poderá devolver sã. E como fica essa família? Cobrar de quem? Do Estado? Sabemos por óbvio que a dor é de quem a sente. Nos casos de violência, a dor não é somente do menor, é inconteste a dor de toda a família. Sofrer o “nunca mais” é a coisa mais dolorida que o ser humano pode sentir.

É senso comum as sequelas dos abusos cometidos antes da maioridade que deixam profundas marcas na criança, estas irão crescer e, muitas se tornarão adultos estressados, hiperativos, traumatizados, agressivos, apresentando baixo rendimento na escola, no trabalho, vivendo no isolamento, apresentando dificuldades para se integrar, podendo chegar a criminalidade e ao suicídio.

Muito sabiamente, Rousseau afirmou ser o homem naturalmente bom, sendo a sociabilização a culpada pela "degeneração" do mesmo, ou seja, o fato da violência sofrida por uma criança desencadeia a formação de um adulto com forte vertente para a marginalidade. Caberia tanto ao poder público, quanto a família asseguar que a criança tivesse uma infância saudável, com segurança, educação, laser, protegendo-a integralmente, propiciando seu pleno desenvolvimento.

Infelizmente a realidade vivida se mostra outra, a família não consegue promover o bem dos filhos, por não dispor, em sua maioria de estrutura familiar, econômica e social. A ausência do Estado na manutenção e proteção da família contribui para sua fragmentação.

Cabe aqui o sentido de legitimidade do Estado. Por quanto percebemos, o poder público tem se omitido em muitas questões, tem deixado de cumprir com seu papel de promotor do bem comum. Nesta concepção de Estado omisso, Rousseau ao falar de sua legitimidade, atribuiu o conceito de legitimidade ao Estado que produzisse indivíduos saudáveis tanto quanto propiciassem sua segurança a propriedade. Qual seria então o significado de indivíduos saudáveis, atribuido por Rousseau?

Saudável seriam todos os indivíduos que tivessem seus direitos resguardados, que tivessem a possibilidade de crescer com diginidade, segurança, tendo acesso a educação de qualidade, ao lazer, ao esporte, a formação continuada. Que tivessem uma família estruturada, com os pais tendo direito ao emprego com salários dígnos, que lhes possibilitassem viver com serenidade, podendo criar seus filhos com segurança.

Estado Democrático de Direitos não é aquele que cria normas de conduta visando a ordem social, mas aquele que promove políticas de inclusão dos excluidos, que faz dos indivíduos verdadeiros cidadãos quando promove meios para que estes se desenvolvam enquanto seres sociais, que protege a infância, que promove a justiça, o bem comum, que trabalha pelo povo, pois dele emana.

Como podemos falar em “ terra de direitos” ou “ país de todos” se o que vivenciamos é a exclusão? Onde encontrar o direito? Em que país somos considerados um todo? O que se pretende, uma sociedade cujos princípios são efetivamente praticados e estendidos a todos, ou uma sociedade em que se mascara com falácias uma igualdade permeada de preconceitos e exclusões, onde respeitar, cuidar, considerar e conviver são hoje só e somente verbos?

Como entender o atraso do legislador, a ausência do Legislativo no Brasil que é algo terrível. Como pensar num Direito constitucionalizado quando percebemos a grande desigualdade que a própria lei pratica, quando deixa a margem o homossexual, o miserável, quando não atende aos anseios sociais de vida digna. Dignidade que não significa riquezas, mas poder ter um lar, uma família, um emprego, educação, saúde.

A Constituição brasileira traz a idéia de Direitos Humanos Fundamentais, baseados em princípios que visam atender a todos os indivíduos enquanto sujeitos de direitos e deveres na sociedade brasileira. Elevando como garantia individual e imprescindível, a dignidade da pessoa humana, a integridade psicofísica, a liberdade, a imagem, a intimidade, a honra, a vida, esta última a mais imprescindível. Mas para que estes princípios sejam práticas patentes, para que possamos viver plenamente o real significado de igualdade e de dignidade da pessoa humana, com respeito mútuo e solidário, ainda temos um longo caminho a seguir.

Estamos vivendo em nossa cidade um estado de sítio. Estamos sitiados, encurralados pela violência, em um Estado sem Governo. As instituições governamentais não respeitam os direitos, não reconhecem o significado de humanidade. Rousseau discursou sobre o papel das instituições, afirmando serem estas sem valor quando colocam o homem em contradição consigo mesmo. Contradição vivenciada hoje, permeada de dúvidas.

É necessário cobrar energicamente das autoridades constituídas um ‘basta’ para esse caos instalado. A segurança não se faz só com uma frota de veículos ou motos novas, também com profissionais treinados e bem qualificados, e remunerados, com políticas educacionais e de emprego e desenvolvimento que erradiquem a pobreza, principal vetor da violência. A sociedade não se faz com cidadãos marcados pela violência, com crianças violentadas, excluídas, silenciadas. Pois se não houver política pública para os problemas que vem se acumulando, o Pará notoriamente não sairá da mídia nacional e quiçá da mídia internacional. Parece que tudo isso já tinha sido profetizado.

Neste contexto de contradições, qual a direção do Direito e da Filosofia? Como promover um Direito ambicioso das questões sociais e uma Filosofia crítica, porém criadora?

Por ser fruto da sociedade, o Direito carrega o peso da ação humana. Entretanto, tenta aos poucos, se desvencilhar da visão etnocêntrica, estreita e egoísta que o acompanhou e, ainda persiste no século XXI. As leis e atos normativos devem ser criados de maneira igualitária, sem diferenciações em razão de classe social, religião, convicções políticas ou filosóficas e de sexo. Pois, se o legislador ao criar leis e o Judiciário ao aplicá-las, de forma não razoável ou arbitrária concede tratamento específico a pessoas diversas, fazendo distinção entre elas, a lei neste caso, estará produzindo a desigualdade. E, principalmente deve garantir a segurança, o desenvolvimento saudável da sociedade desde a infância. Este desenvolvimento tem suas raízes em duas sementes: educação de qualidade e políticas públicas de inclusão de todos. Não faço referência às políticas paliativas representadas pelas “bolsas” das mais diversas nomenclaturas, mas políticas sérias de desenvolvimento.

Talvez sonhemos como Hegel o sonho pleno das luzes, num mundo de conhecimentos, de busca dos interesses universais, abandonando a individualidade e pensando no todo. Um mundo em que o Direito seja efetivo, eficaz, que seja um direito humano de fato. O conhecimento torna o homem crítico, dinâmico, construtor de um mundo em que as indagações sejam respondidas, que não fiquem na teoria das perguntas, mas na concretude dos atos. Onde a educação pensada por Mill, na qual propunha a extensão da educação a todos, sem distinção de qualquer espécie, exista de fato.

Que se possa pensar e construir uma sociedade em que a filosofia não seja vista como insignificante, pois são dos filósofos os grandes questionamentos que desencadearam mudanças na sociedade. É a argumentação que nos leva a novos horizontes. Argumentação que tem proporcionado ao Judiciário criar jurisprudências que beneficiem os excluidos.

Que o Direito seja justo para todos pois, só haverá justiça de fato, quando efetivamente for reconhecido que a sociedade é formada de uma diversidade, que deverá ser respeitada a partir da individualidade de cada agente social. Para que o Brasil não permaneça neste constante excesso de falta de humanidade, na persistente abundância de inexistência de solidariedade e respeito e no exagero contínuo de escassez de direitos a todos os que permanecem marginalizados neste Estado Democrático de Direitos ainda limitados para alguns.

E, conforme o grande filósofo Sócrates, transforme as pedras que você tropeça nas pedras de sua escada. Pois é com os erros do passado que podemos construir um futuro com dignidade, os erros que foram e ainda são as pedras na nossa sociedade, que possam ser corrigidos e sirvam de escadas para alcançarmos a sociedade que tantos sonharam, que muitos sonham e outros tantos constroem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BITTAR, Eduardo C. B. ALMEIDA, Guilherme Assis de Curso de Filosofia do Direito. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2007.

MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito: dos gregos ao pós-modernismo. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 183-211.

NADER, Paulo. Justiça e Equidade. In:______. Introdução ao estudo do Direito. 17. ed. São Paulo: Forense, 1999. Cap. XI, p. 123-134.

REALE. Miguel. Introdução a Filosofia. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 03.

Anne Monteiro é Escritora e Acadêmica em Direito Pela Universidade da Amazônia/PA.

Anne Monteiro
Enviado por Anne Monteiro em 16/06/2010
Reeditado em 16/06/2010
Código do texto: T2323594
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.