ESTABILIDADE CONSTITUCIONAL
“A vida é movimento” (Ednar Andrade).
“Não procure a perfeição, ela não existe” (Salvador Dalí).
As normas constitucionais não são verdades eternas, muito embora algumas se revistam de pretensão de validez, como é o caso das cláusulas pétreas. Mas, o certo é que, por ser assim, as normas insertas na Carta Política necessitam ser revistas.
Em face disso, a Constituição, como toda e qualquer obra humana, é mutável não sendo, pois, somente quando da revisão ou de Emendas Constitucionais que ela se modifica. Assim, outros fatores incidem na Grund Norm, modificando-a. Urge, desta forma, antes de adentrar-se ao tema propriamente dito, traçar aqui algumas linhas sobre mutação constitucional.
1. Mutação Constitucional:
Nenhuma obra humana é, como dito alhures, eterna. Diante dessa verdade, necessita-se periodicamente modificar o que já se mostra extemporâneo. Algumas civilizações do passado, como a babilônica, tentaram, em vão, fazer constituições que fossem eternas, chegando, mesmo, ao absurdo de punir quem as tentasse modificar. Tal, também, foi o intento de Licurgo que, depois de uma consulta no oráculo de Delfos ao Deus Apolo, proibiu que os espartanos modificasse as leis por ele elaboradas.
A evolução social e histórica da humanidade impõe mudanças no ordenamento jurídico de qualquer país, chegando a atingir, também, a Constituição. Nesse sentido, Fustel de Coulanges1 adverte que:
“Não está na natureza do direito ser absoluto e imutável. O direito modifica-se e evolui, como qualquer obra humana. Cada sociedade tem seu direito, com ela se formando, se desenvolvendo e se transformando e, enfim com ela seguindo sempre a evolução de suas instituições, de seus costumes e de suas crenças”.
Ou ainda, no dizer de Duguit: “A eterna quimera dos homens é procurar inserir nas constituições a perfeição que eles não têm”2.
Como dito alhures, a realidade social impõe a evolução da Constituição, não significando, entretanto, que a mesma venha a ser formalmente modificada, mas sendo contextualizada à realidade vigente. Nesse passo Konrad Hesse assevera que:
“A dinâmica existente na interpretação construtiva constitui condição fundamental da força normativa da Constituição e, por conseguinte, de sua estabilidade”3.
As normas constitucionais, pois, são mudadas lentamente sem ser necessário o poder de reforma intencional do Estado4. Hsü Dau-Lin5 apresenta quatro tipos de categorias de mutação constitucional, quais sejam: 1) mutação constitucional através da prática que não vulnera a Constituição; 2) mutação constitucional por impossibilidade do exercício de certa atribuição outorgada pela Constituição; 3) mutação constitucional decorrente da prática violadora de preceitos da Lei das Leis; 4) mutação constitucional advinda da interpretação da Constituição.
Cabe, aqui, citarmos Georg Jellinek6, o qual diferenciou mutação constitucional de revisão constitucional. Segundo o mestre alemão:
“Por reforma de la Constitución entendiendo la modificación de los textos constitucionales producida por acciones voluntarias e intencionadas. Y por mutación de la Constitución, entendiendo la modificación que deja indemne su texto sin cambiarlo formalmente que se produce por hechos que no tienen que ir acompañados por la intención, o conciencia, de tal mutación”
É de bom alvitre notarmos que, não obstante haja a necessidade de se revisar a Constituição - quer por uma reforma, como a de 1993, quer por meio de Emendas Constitucionais -, a pletora de reformas da Constituição, por meio de Emendas Constitucionais - e a nossa Constituição, com vinte e um anos de existência, já vai na Emenda de nº 64 -, termina importando em quebra da unidade constitucional, fragmentando-a em sua essência. Assim, a assertiva de Ferdinand Lassale7 de que a Constituição escrita não passa de mera folha de papel que tudo aceita a que não tem força suficiente frente à verdadeira e real Constituição, aquela oriunda dos fatores reais de poder, ganha força.
Note-se que a forma legítima de mudança da Constituição, mesmo a formal, é a que advém da atuação popular. Somente o povo pode modificar e até, se for o caso, extinguir a Constituição, substituindo-a por uma outra. Assim, a vontade popular, dirigida pelo Governo, serve de respaldo a este para que a sociedade atinja os objetivos traçados por esse mesmo povo. A par disso, Emmanuel Joseph Sieyès (Abade Sieyès) adverte que:
“(...) Em toda sociedade livre - e toda sociedade deve ser livre - só há uma forma de acabar com as diferenças, que se produzem com respeito à Constituição. Não é a aos notáveis que se deve recorrer, é à própria nação. Se precisamos de Constituição, devemos fazê-la. Só a nação tem o direito de fazê-la”8.
Ciosos da legitimidade popular para modificar a Constituição, o constituinte de 1988 propiciou ao povo brasileiro a possibilidade de modificar o sistema político do Brasil, o qual, como será visto, continuou sendo o mesmo - a República Presidencialista.
2. A Revisão Constitucional:
A revisão constitucional, tratada no artigo em comento, é, como vimos, necessária. Não existe, como nunca existiu e nunca existirá, direito absoluto. Assim, urge a revisão da Constituição.
A revisão constitucional pode ser total ou parcial, se visar revisar toda a Constituição ou parte dela. A revisão contida no texto em análise é parcial. Até porque existem na nossa Constituição certas regras com pretensão de validez, são as denominadas cláusulas pétreas, insertas no §4º do art.60. Assim, não podem ser objeto de revisão constitucional: a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais. Desta forma, a reforma da Constituição que não atentar aos estritos limites estabelecidos padecerá de inconstitucionalidade, ficando sujeita à apreciação do Poder Judiciário, pelo controle de constitucionalidade9.
Note-se, no entanto, que além das cláusulas insertas no art.60, §4º existem outras limitações à reforma da Constituição.
2. Limites ao poder de reforma:
O poder de reformar a Constituição podem ser classificados como: a) formais; b) expressos - cláusulas pétreas ou inabolíveis e c) implícitos.
2.1 Limites formais:
Os limites formais se encontram, na Constituição do Brasil, previstos nos artigos atinentes às emendas constitucionais e à revisão constitucional, ou seja, aos arts.60 da CF/88 e art.3º, do ADCT.
Necessário, assim, primeiramente, que sejam satisfeitos os requisitos ínsitos nestes artigos para que se promovam as mudanças do texto constitucional, posto que se assim não for estar-se-á violando o princípio da legalidade, previsto na própria Constituição, art.5º, II, o que seria um absurdo, posto ser a Constituição, como toda e qualquer norma vinculante, um todo lógico, que não admite contradições entre seus vários dispositivos.
2.2 Limites expressos - cláusulas pétreas ou inabolíveis:
Por limites expressos entende-se aqueles que se encontram explicitados na Carta Política, como cláusulas pétreas, inabolíveis.
São as normas que não admitem reforma, são aquelas que detêm uma supereficácia, ou seja, uma eficácia absoluta10. Assim, conforme o art.60, §4º da nossa Constituição, não se delibera sobre a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos poderes, os direitos e garantias individuais.
Não obstante a clareza do texto constitucional, houve quem, na reforma de 1993, advogasse a tese de que tais cláusulas poderiam ser reformadas, chegando ao cúmulo de se propor a revogação do próprio art.60, §4º da CF/88. Mas, como se sabe, tal intento não vingou. Ademais, a reforma não logrou o sucesso que o governo esperava.
A reforma da Constituição é, assim, um poder-dever que se encontra delimitado normativamente, sendo vinculado a uma finalidade de interesse comum. Uma vez jungido ao direito positivo constitucional, o poder constituinte perde a sua autonomia, imanente ao poder constituinte propriamente dito, passando, assim, a ser derivado e não mais originário.
É um traço comum a todas as Constituições, independente do regime adotado da ideologia seguida ou de fatores espácio-temporais, a demarcação das balizas ao poder de reforma, constitucional, até porque o que está em jogo é o modo de ser do próprio Estado. Podemos citar, á guisa de exemplo as Constituições dos seguintes países: EUA, art. V; Itália, art. 139; Venezuela, art.3º; Porto Rico, art.7º; Brasil; art. 60, §4º, dentre outros.
As cláusulas pétreas, como já dito no comentário ao art.60, §4º, têm uma pretensão de perenidade, necessária ao modo de ser do Estado, não se podendo, pois, garantir a estabilidade das instituições e do próprio Estado sem que certos elementos, que lhes são imanentes, fiquem ao largo das reformas constitucionais.
2.3 Limites implícitos:
Já os limites implícitos são aqueles que não estão previstos no texto constitucional como cláusulas pétreas, mas cuja revogação ou mesmo derrogação poderia atingir o modo de ser do Estado.
No entanto, há quem entenda que o que não esteja no texto constitucional como cláusula pétrea poderá ser modificado. Nesse sentido estão, dentre outros, Jorge Miranda e Manoel Gonçalves Ferreira Filho.
Ocorre que a diversidade de princípios insertos na Carta Política é bem maior do que o rol do art.60, §4º. Isto porque o constituinte não tem como colocar de uma forma fechada todos os princípios em um único artigo, até porque, conforme a redação do art.5º, §2º o Brasil poderá adotar outros princípios, por meio da adoção de tratados internacionais que instituam outros que não estejam inseridos na Lex Legum.
Durante a vigência da Carta de 1946, sobre a possibilidade da instituição do parlamentarismo, João Mangabeira11 discorreu sobre o assunto asseverando que:
“....numa Constituição há princípios expressos, princípios inerentes, princípios implícitos, princípios resultantes, princípios fundamentais e princípios circunstanciais. Todos eles pertencem tanto à Constituição quanto os explícitos. Porque a Constituição proíbe expressamente apenas os projetos tendentes a abolir a Federação e a República, somente a insânia poderia concluir que tudo o mais é permitido.”
O conteúdo dos limites implícitos é de natureza incerta368, porquanto, por não serem taxativos, necessitam da atuação do intérprete para lhes descobrir. Mas, seja como for a estrutura estatal não está, pois, rigidamente emoldurada em uma supernorma. Em assim sendo Paolo Biscaretti di Ruffia12 entende pela:
“... plena possibilidade que todo Estado possa modificar, também substancialmente, (...) a própria Constituição, se bem que movendo-se sempre no âmbito do direito vigente (...), inclusive na hipótese extrema de modificar assim a sua forma de Estado”
Note-se, ainda, que a alegação de que os limites implícitos não devem ser conhecidos quando da reforma constitucional, serviu de base para que, em determinados momentos da História de alguns países, fosse perpetrada fraude contra a Constituição sem ser preciso violar-lhe seu texto escrito. Nesse sentido Xifras Heras13 diz que o “desconhecimento” dos limites implícitos:
“origina a chamada fraude da Constituição, que, sem violar seu texto escrito, produz uma radical modificação em seu conteúdo essencial. Isto ocorreu na Itália, Alemanha e França, onde sem quebra da letra dos textos de 1848, 1919 e 1875, respectivamente, as revoluções fascista, nacional-socialista e nacionalista tergiversaram radicalmente o espírito liberal e parlamentar daqueles”
Desta forma, o poder constituinte, quando chamado a promover a reforma constitucional, deve sempre observar os limites acima dispostos sob pena de comprometer o sentido da própria Constituição e o modo de ser do Estado.
4 Conclusão:
A imutabilidade das constituições é uma quimera que nunca foi alcançada e nunca será, pois a mutabilidade de diversos fatores (econômicos, jurídicos, políticos, sociais e culturais) impõem mudanças, sem as quais os textos constitucionais transformar-se-iam em verdadeiros “fósseis” legislativos em descompasso com a sociedade que rege.
Notas de rodapé:
Fustel de Coulanges. A Cidade Antiga. Trad. Port. (Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca). Rio de Janeiro: Ediouro, 1989. Pág. 211. Cabe, ainda, citar-se Carré de Malberg. Teoria General de Estado. México: Fondo de Cultura Económica, 1948. Pág. 76, para quem: “Seguramente esta Constitución generadora del Estado podrá, en el transcurso del tiempo, variar notablemente, sin que la personalidad de la comunidad estatizada se encuentre por ello modificada en modo alguno”. Ademais, é necessária a revisão constitucional, posto que visa adequar ao espírito da época as instituições. Não se pode, pois, permitir a estagnação de tais institutos no tempo, no sentido de que eles se transmudem em verdadeiros “fósseis” da legislação, sem adequá-los à época vigente. A par disso, cabe, ainda, aqui citar Robert Senelle, que assim se expressou acerca da revisão constitucional: “Algunos lamentan que las instituciones no sean inmutables y se asombrarán de su envejecimiento. En una época como la nuestra, donde la evolución se prosigue a un ritmo rápido, no puede desearse el mantenimiento sistemático de instituciones en su mayor parte contemporáneas del siglo XX.” (Robert Senelle. La Revisión da la Constitución Belga y las realidades contemporáneas. Bruxelas: Notícias da Bélgica. Nº 57, 1965. Pág. 2). No mesmo sentido Jean Carbonier aduz que: “O Direito é muito humano para pretender o absoluto da linha reta” (In: Flexible Droit. Paris: LGDJ, 1971. Pág. 2).
2 Duguit apud Paulo Bonavides e Paes de Andrade. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB Editora, 2002. Pág. 816.
3 Konrad Hesse. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, 1991. Pág. 23. Tal dinâmica social advém, conforme Fritjof Capra. Ponto de Mutação. São Paulo: Ed. Cultrix, 1982, das transformações do mundo e da mudança de consciência humana. Note-se, ainda, que a necessidade de reforma da Constituição deriva da sua supremacia, posto que se permanecesse imóvel perderia a sua autoridade. Ademais, a reforma constitucional confere estabilidade à Constituição. Neste sentido veja-se: Pimenta Bueno (apud João Barbalho Uchôa Cavalcanti. Constituição Federal Brasileira: comentários por João Barbalho U. C. Apresentação do Senador Mauro Benevides. Introdução de Walter Costa Porto. Edição Fac-similar. Brasília: Senado Federal, Secretaria de Documentação e Informação, 1992. Pág. 364) e Gustavo Just da Costa e Silva. Os limites da reforma constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. Págs. 49 a 84, que dedicou um capítulo inteiro ao assunto.
4 Nesse sentido: Hsü Dau-Lin. Die Verfassungswandlung. Berlin, 1932. Pág. 29. Sobre a possibilidade de mutação constitucional por meio da interpretação e dos costumes veja-se Hector Fix Zamudio. Algunas reflexiones sobre la interpretación constitucional en el ordenamiento mexicano. Instituto de Investigaciones Jurídicas, In: La Interpretación Constitucional. México: UNAM, 1975. Pág. 14.
5 Idem. Ibidem. Págs. 21 e seguintes.
6 Georg Jellinek. Reforma y Mutación de la Constitución. Trad. Esp. (Christian Förster). Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991. Pág. 7.
7 Ferdinand Lassale. A essência da Constituição. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998. Pág. 51. Acerca do perigo que representa para a Constituição a constante modificação da mesma, veja o ensinamento de Rodolfo Saborío Valverde. Los límites a las reformas de la Constitución y la jurisprudencia de la Sala Constitucional. In: www.nexos.co.cr/cedespu/revelec/art-rsv1.htm, quando, comentando a reforma da Constituição do seu país (Costa Rica) assim falou que a Constituição é: “(...) um instrumento normativo que reflete o consenso social em um determinado momento, a Constituição tende a ter uma vocação à estabilidade. As regras básicas das relações sociais não podem ser alteradas freqüentemente já que isto não favorece a segurança e a confiança que os indivíduos devem ter sobre seu sistema pactuado de convivência”. Desta forma, as regras constitucionais, principalmente, devem transmitir segurança às pessoas. Nesse sentido Thomas Hobbes (In: O Cidadão. São Paulo: Martins Fontes, 1992. Págs. 117-121) já havia dito que: “A segurança do povo é a suprema lei” e “por segurança se deve entender não a mera preservação da vida em qualquer condição que seja, mas com vistas à sua felicidade civil. A segurança é o fim pelo qual nos submetemos uns aos outros, e por isso, na falta dela, supõe-se que ninguém se tenha submetido a coisa alguma, nem haja renunciado a seu direito sobre todas as coisas antes que se tomem precauções quanto à sua segurança”. Note-se, no entanto, que as mudanças procedidas na Constituição, muitas vezes, refletem os interesses, os sentimentos e os conflitos reais da força, o que nem sempre representa o sentimento social, mas o sentimento de uma parcela da sociedade que detém o poder. Nesse sentido Boris Mirkine Guétzevitch. Evolução Constitucional Européia - Ensaio Sintético. Lisboa: J. Konfino Editor, 1956. Pág. 19, assevera que: “Eis porque a análise da Constituição dá uma idéia falsa da realidade; as regras são constantemente falseadas pela prática ou quebradas pelas crises e revoluções”. Daí o caráter político que tem a Constituição e a pretensão que a mesma tem em legitimar a ordem política vigente. Neste sentido Manuel Aragon. Sobre las nociones de Supremacía y Supralegalidad Constitucional. Revista de Estudios Políticos. Nº 50. Madri: Nueva Época, marzo-abril, 1986. Pág. 11, aduz que: “o estabelecimento de uma Constituição não é senão a conseqüência de uma forma mui concreta de entender a ordem política e supõe, por ela, um intento de racionalizá-la, isto é, de organizar um tipo de Estado congruente com essa ordem que se considera modelo ou, ao menos, preferível. (...) A reflexão sobre o conceito de Constituição, reflexão eminentemente jurídica, não pode olvidar a transcendência política do mesmo, é dizer, a pretensão de legitimação que a Constituição encarna”. Assim, no estudo da revisão constitucional não se pode olvidar o caráter político da Constituição, caráter este que é, na maioria das vezes, determinante na mudança formal da Constituição.
8 Emmanuel Joseph Sieyès. A Constituinte Burguesa - que é o terceiro Estado?. 3ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 1997. Pág. 91. Também comunga deste entendimento Raymond Carrè de Malberg. Op. cit. Págs. 1161 e 1163. Note-se que o povo não é somente o agregado de pessoas que compõem a sociedade e que, de quando em quando, vota para eleger os seus representantes e que a mudança da Constituição não se efetiva só por meios formais. A mudança da Constituição se efetiva, também, por meio da práxis quotidiana, a qual se realiza por formas mais refinadas de mediação do processo político público e pluralista, notadamente pela via do exercício dos direitos fundamentais. Em assim sendo os direitos fundamentais e os direitos de cidadão devem ser entendidos unitariamente, sendo este o entendimento adotado por Peter Häberle no seu livro La libertad fundamental en el Estado Constitucional. San Miguel: Pontifícia Universidad del Perú, 1997. Pág. 71 e seguintes. Segundo Peter Häberle (In: Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Trad. Port. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Antônio Sérgio Fabris Editor, 1997, Pág. 42), o cidadão teria um status activus processualis, o qual o torna, mesmo por mero ato de defesa dos direitos fundamentais, um intérprete da Constituição. Em face disso Häberle diz que: “‘Povo’ não é apenas um referencial quantitativo que se manifesta no dia da eleição e que, enquanto tal, confere legitimidade democrática ao processo de decisão. Povo é também um elemento pluralista para a interpretação que se faz presente de forma legitimadora no processo constitucional. [...] A democracia do cidadão está muito próxima da idéia que concebe a democracia a partir dos direitos fundamentais e não a partir da concepção segundo a qual o Povo soberano limita-se apenas a assumir o lugar do monarca. [...] Liberdade fundamental (pluralismo) e não ‘o Povo’ converte-se em ponto de referência para a Constituição democrática. Essa capitis diminutio da concepção monárquica exacerbada de povo situa-se sob o signo da liberdade do cidadão e do pluralismo” (Idem. Op. cit. Pág. 37-39). Existe, desta forma, segundo Häberle, uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição, da qual tomam parte os intérpretes oficiais da Constituição e o cidadão comum que, só pelo fato de vivenciar a norma constitucional, detém, também, a função de intérprete; não podendo, desta forma, ser olvidada, tal sociedade, do processo de mutação constitucional. Mais uma vez lembremos o mestre alemão: “Uma Constituição que estrutura não apenas o Estado em sentido estrito, mas também a própria esfera pública, dispondo sobre a organização da própria sociedade e, diretamente, sobre setores da vida privada, não pode tratar as forças sociais e privadas como meros objetos. Ela deve integrá-las ativamente enquanto sujeitos. [...] Limitar a hermenêutica constitucional aos intérpretes ‘corporativos’ ou autorizados jurídica ou funcionalmente pelo Estado significaria um empobrecimento ou um autoengodo” (Idem. Op. cit. Págs. 33 e 34).
9 Nesse sentido: Ruy Barbosa. Os atos inconstitucionais do Congresso e do Executivo. In: Trabalhos Jurídicos. Rio de Janeiro: Casa de Ruy Barbosa, 1962.
10 Sobre o absolutismos das cláusulas pétreas veja-se Léon Duguit. Traité de Droit Constitutionnel. Tomo II. 1930. Pág. 835.
11 João Mangabeira. Idéias políticas. Vol. 3. Brasília: Senado Federal/Fundação Casa de Rui Barbosa – MEC, 1980. Sobre os limites à reforma constitucional veja-se: William Marbury. The limitation upon the amending power. In: Harvard Law Review, 1919-1920. Pág.223 e seguintes.
12 Idem. Ibidem. Págs. 228-229.
13 Jorge Xifras Heras. Curso de Derecho Constitucional. 2ª ed. Tomo I. Barcelona: Bosch, 1957. Pág. 143.
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