Ponderações didáticas sobre a coisa julgada.
Gisele Leite
Denise Heuseler
A coisa julgada (res iudicata) era no direito romano a expressão de exigência de certeza e segurança no gozo de bens da vida, era então denominada res in iudicium deducta, depois de iudicata.
Não pensavam os romanos em atribuir plena veracidade só porque fora afirmado pelo juiz. A célebre frase res iudicata pro veritate accipitur significava apenas o pronunciamento do juiz que reconhece ou nega um bem da vida, recebendo ou rejeitando a demanda, não efetivamente como verdade no lugar da verdade.
Assentava-se a coisa julgada sobretudo em pressuposto prático a fim de garantir ao vencedor da demanda o bem da vida reconhecido pela sentença. Já no direito medieval a coisa julgada não atendia a exigência de certeza e segurança, postando-se como presunção de verdade, popularizando o aforismo: “res iudicata facit de albo nigrum, de quadratum rotundum”, ou seja, a coisa julgada faz do branco, o negro e do quadrado, o redondo.
A coisa julgada refere-se à imutabilidade da sentença proferida em determinado processo, originando-se do fato de não ter sido atacada em momento próprio ou de não mais se prever recurso qualquer para impugná-la, em vista do esgotamento das espécies recursais possíveis (apelação, recurso especial, recurso extraordinário, e, etc) justificando-se pela preocupação com os primados da segurança jurídica.
“REsp 1066198 (ACÓRDÃO)
Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA
DJe 14/12/2009 Decisão: 19/11/2009
Ementa
ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL. REAJUSTE DE 28,86%. EXECUÇÃO. COMPENSAÇÃO. VALORES NÃO PREVISTOS NO TÍTULO EXECUTIVO JUDICIAL. VIOLAÇÃO À COISA JULGADA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
1. O Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal têm entendido que, sendo determinada, na sentença exeqüenda, a compensação do reajuste de 28,86% somente com os valores pagos a título dos reposicionamentos, previstos nas Leis 8.622/93 e 8.627/93, não pode o acórdão recorrido deduzir outros, em respeito à coisa julgada.
2. Recurso especial conhecido e provido.”
É instituto ligado ao fim do processo e à imutabilidade daquilo que tenha sido decidido, e visa gerar segurança que é um valor a ser defendido pelo direito. O homem está sempre à procura de segurança e o direito é um instrumento que se presta, ao saciar humano.
A doutrina tradicional enxerga na coisa julgada um dos efeitos da sentença até que Liebman revolucionou ao alterar a noção desse conceito e ao alegar que os efeitos da sentença eram tradicionalmente reconhecidos pela moderna doutrina (como sendo declaratórios, condenatórios e constitutivos) e a coisa julgada era apenas uma qualidade especial desses efeitos.
A justificação da coisa julgada é disputada por várias correntes doutrinárias, como:
a) doutrina da presunção da verdade que foi apontada por Chiovenda como sendo uma justificativa política mas não jurídica;
b) doutrina da ficção da verdade (Savigny) aliás Büllow registrou que os conceitos de ficção e verdade são antagônico;
c) doutrina da força legal ou substancial da sentença – tal força produtora da certeza jurídica é inerente à sentença por sua natureza constitutiva;
d) doutrina da eficácia da declaração cujo fundamento reside na distinção entre sentenças declaratórias, constitutivas e condenatórias, restringindo a autoridade da coisa julgada só à declaração constante da sentença em referência ao direito questionado.
e) doutrina da vontade do Estado cujo fundamento repousa na observação dos elementos um lógico e outro volitivo, e, nesse último reside a força obrigatória da decisão.
O juiz age como porta-voz (Le boche de La loi) do Estado para a solução do litígio existente entre as partes. Seu maior defensor foi Chiovenda apesar de sua origem alemã.
f) doutrina da extinção da obrigação jurisdicional do Estado (Ugo Rocco);
g) doutrina da sentença como ‘lex specialis” que defende ser a sentença criadora de norma jurídica concreta , sendo a coisa julgada a qualidade toda norma jurídica, de ser imutável, salvo a possibilidade de mudanças geradas pelo direito objetivo.
h) doutrina de Carnelutti que resulta em reconhecer a autoridade da coisa julgada por ser expressão da vontade do Estado: lex speciallis.
A sentença é imperativa pois provém do Estado e, é imperativa pois provém do Estado e, é imperativa pois encerra o comando ínsito na coisa julgada. Mesmo que seja mutável (sujeita a recurso) esta não perde sua imperatividade, ou seja, sua eficácia como comando jurídico direcionado às partes.
Para se delimitar os limites subjetivos da coisa julgada cuida de delimitar a relação de pessoas que serão atingidas pela sentença que passa em julgado. Assim é que afeta às partes da causa e não em relação em terceiros.
O terceiro pode ser alcançado pelos efeitos naturais da sentença mas não pela imutabilidade da coisa julgada. A regra constante no art. 472 do CPC é excepcionada nas ações coletivas apoiadas na alegada existência de direito difuso, de interesse coletivo e de direitos individuais homogêneos, desde que seja em benefícios dos terceiros.
O maior problema reside em saber se os motivos da sentença transitam ou não.
Há diversas opiniões a respeito:
a) para uns, a coisa julgada absolutamente não atinge a motivação;
b) para outros, atinge a motivação quando o dispositivo for confuso e seu esclarecimento depender dela.
c) para outros, a coisa julgada abrange também os motivos, quando inseridos na decisão;
d) outros entendem que os motivos são sempre abrangidos pela coisa julgada, por serem ou estarem na “alma da sentença”.
A coisa julgada tem função de salvaguardar o resultado prático alcançado com a decisão da lide, garantindo plena efetividade e incolumidade da resolução contida na sentença. A decisão encontra-se enumerada no dispositivo da sentença e representa o concreto provimento pronunciado pelo juiz (onde se encontram a causa petendi e o petitum).
Em seu gênero a coisa julgada pode ser formal ou material. Na prima espécie, não mais de admite a discussão dos elementos da demanda no âmbito do processo encerrado, admitindo-se, contudo a reapreciação nos autos de outra ação judicial (efeito endoprocessual).
A sentença que extingue o processo sem resolução do mérito produz a coisa julgada formal e, por vezes a natureza da ação, pode sempre redundar em coisa julgada formal é o caso da ação de alimentos com base no art.15 da Lei 5.478/68 (aonde se admite expressamente que a decisão possa ser revista, em face da situação financeira dos interessados).
A coisa julgada material o conteúdo decisório da sentença não pode mais ser discutido e nem mais atacado por qualquer recurso, robustecendo-se com efeitos endo e extraprocessuais (a imutabilidade e indiscutibilidade).
A possibilidade de a sentença ser revisada por meio de ação rescisória não compromete a característica de imutabilidade da coisa julgada, pois o que se discute no bojo da rescisória não é o fundamento jurídico da demanda anterior, mas a presença de vícios de ilegalidade do decisum atacado, diferenciando-se os elementos da ação.
Segundo o direito objetivo pátrio tentou-se a coisa julgada em duas oportunidades: a art. 6º, terceiro parágrafo da Lei de Introdução do Código Civil – “Chama-se de coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba mais recurso.” É bom saber que o termo “caso julgado é mencionado pelo direito português.
E, ainda no art. 467 do CPC que essencialmente aponta a eficácia de ser imutável e indiscutível da sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.
Pecam pela técnica tais conceitos. E é bom frisar existir diferença entre “trânsito em julgado” e “coisa julgada”. O processo em sua eterna dinâmica na busca do ato magno da sentença, seja este de qual natureza for, em determinado momento será finalmente decidido através da sentença.
Esta sentença que pode decidir ou não o mérito da causa, num primeiro momento poderá ser objeto de recursos. Significando que a sentença proferida não mais poderá ser modificada, seja porque esgotados todos os recursos cabíveis, seja porque não foram utilizados os recursos cabíveis, seja porque a hipótese não era de recurso necessário.
O momento em que tal impossibilidade de modificação do julgado pela sentença é exatamente denominado de “trânsito em julgado”.
Assim com o trânsito em julgado a decisão judicial se torna imutável e indiscutível. Já o termo coisa julgada designa essa nova situação jurídica caracterizada pela imutabilidade e indiscutibilidade da sentença, que de instável passa a partir do trânsito em julgado a ser estável.
A coisa julgada formal se traduz na imutabilidade e indiscutibilidade da sentença dentro do processo no qual foi prolatada. Qualquer que seja a sentença e o seu conteúdo, em determinado momento do processo ela já não pode mais ser alterada; Isso dentro do próprio processo em que foi proferida recebendo a designação de coisa julgada formal, sendo preclusão máxima da decisão judicial.
A coisa julgada material ocorre nos casos de sentença de mérito (definitiva) aonde a relação jurídica de direito material é decidida pelo juízo, o que implica a produção de efeitos externos ao processo, uma vez que a sentença irá produzir efeitos declaratórios, constitutivos, condenatórios e, para quem adota esta posição efeitos mandamentais e executivos lato sensu.
Diante disso, cumpre frisar que a corrente doutrinária dominante no ordenamento pátrio, a coisa julgada material seria a imutabilidade e a indiscutibilidade dos efeitos da sentença. O que somente poderia ocorrer nos casos de sentenças que solucionam o mérito da causa (ou seja, as sentenças definitivas).
Assim a sentença terminativa será imutável e indiscutível, mas como o juiz não julgou a relação jurídica de direito material, será possível a parte propor novamente a mesma demanda, desde que corrija a falha que deu ensejo à extinção do processo sem resolução do mérito (art. 268 do CPC).
Diversas teorias disputam decifrar a natureza jurídica da coisa julgada. A primeira corrente defendida por Chiovenda que foi adotada no Brasil por Celso Neves, as sentenças de mérito produziram, além dos efeitos declaratórios, constitutivos ou condenatórios, um quarto efeito, que seria a imutabilidade e indiscutibilidade do que fora decidido, o qual só seria eficaz quando o trânsito em julgado daquela decisão judicial. Segundo o doutrinador, a coisa julgada também era efeito do trânsito em julgado da sentença definitiva.
A segunda corrente é defendida por Liebman e adotada pela majoritária doutrina pátria (defendida também por Vicente Greco Filho, Dinamarco, Humberto Theodoro Jr.) que sustentam que a coisa julgada é qualidade que incide sobre a sentença e sobre os efeitos por esta produzidos.
Na verdade, a coisa julgada está fora da sentença, não sendo o efeito dessa. Mas na verdade a decisão incide sobre esses efeitos materiais condenatórios, constitutivos ou declaratórios, como sendo uma qualidade desses efeitos.
Quando nos referimos a autoridade da coisa julgada estamos nos referindo à coisa julgada material. Sintetizando, para a majoritária corrente doutrinária nacional a coisa julgada: a formal é a qualidade incidente sobre a sentença, tornando-a imutável e indiscutível.
E que a coisa julgada material é a qualidade incidente sobre os efeitos materiais da sentença de mérito (definitiva).
Já a terceira corrente com base nos ensinamentos de Luiz Machado Guimarães, José Carlos Barbosa Moreira e de Alexandre F. Câmara que sustentam que a coisa julgada é uma situação jurídica nova, que se caracteriza pela imutabilidade e indiscutibilidade da sentença e do seu conteúdo.
Na verdade, por tal corrente doutrinária o que se torna imutável é o conteúdo da sentença, ou seja, à aplicação da lei àquele caso concreto que lhe foi levado para julgamento.
Lembremos ainda que a coisa julgada é pressuposto processual negativo conforme o art. 267, inciso V do CPC, e é claro que nos referimos à coisa julgada material. Constitui impedimento processual negativo, o que acarreta a extinção do processo sem resolução do mérito.
Segundo o CPC as demandas são idênticas que possuem as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido, é o que expressa o art. 301, segundo parágrafo do CPC que se refere à teoria do tria eadem que aduz: “ a demanda é idêntica à outra quando tem as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido”
A teoria é também chamada de três identidades ou três elementos: que é a principal teoria para se identificar a coisa julgada. Mas poderá ser utilizada a teoria da identidade da relação jurídica que pode ser utilizada em face da insuficiência da teoria da tríplice identidade.
Portanto mesmo que haja elementos distintos da ação, mas a segunda demanda versar sobre a mesma relação jurídica, poderemos identificar a coisa julgada.
Coisa julgada inconstitucional é tema interessante que propõe a relativização da coisa julgada que é tese defendida por boa parte da doutrina nacional. Há portanto duas formas de relativização: a) coisa julgada inconstitucional; b) coisa julgada injusta inconstitucional.
A primeira pretende afastar a coisa julgada de sentenças de mérito que tenham fundamento norma declarada inconstitucional pelo STF.
Já na segunda pretende-se afastar a imutabilidade que se aplicaria as sentenças que produzam extremas injustiças em evidente afronta aos valores constitucionais essenciais e ao Estado Democrático de Direito.
Trata se de formas atípicas de relativização de coisa julgada não sendo espécie de rescisória. O art. 741, parágrafo único e o art. 475-L do CPC trazem previsão de matérias que podem ser alegadas em defesa típica do executado (embargos e impugnação) que visam afastar a imutabilidade da coisa julgada material.
Versam sobre a inexigibilidade do título judicial baseado em leis ou atos normativos declarados inconstitucionais pelo STF. Pode haver a declaração de inconstitucionalidade por três diferentes maneiras:
a) redução do texto, quando a lei inconstitucional desaparece do ordenamento jurídico;
b) aplicação da norma à situação considerada inconstitucional quando esta será válida pelas situações e inválidas para outras;
c) interpretação conforme a Constituição quando havendo mais de uma interpretação, quando havendo mais de uma interpretação possível, somente uma delas for considerada constitucional.
O tema não é pacífico considerando parcela da doutrina que os dispositivos legais são constitucionais, ainda que indesejáveis.
Sendo tarefa das normas infraconstitucionais o estabelecimento de quando e como haverá coisa julgada, também serão essas espécies de normas que determinarão as hipóteses excepcionais de seu desaparecimento, indicando as razões e a forma procedimental para que isso ocorra no caso concreto.
A coisa julgada injusta inconstitucional é criação doutrinária-jurisprudencial sendo possível a subsidiária aplicação do art. 475-L, primeiro parágrafo e art. 741, parágrafo único do CPC.
É tese que angaria adeptos críticos fervorosos, existindo também uma corrente intermediária que apesar de aceitar a relativização desde que haja tratamento legislativo específico, a fim de evitar abusos injustificados.
Dinamarco cita como exemplo, a situação em que o Estado de São Paulo foi condenado a pagar a indenização decorrente de uma desapropriação para um suposto proprietário do imóvel que, na verdade, era de propriedade do próprio Estado. Dessa forma, não seria razoável impedir ao Judiciário nova análise do processo com base no princípio da segurança jurídica.
Considerando que nenhum direito, por mais fundamental que seja, é elevado à condição de absoluto, deveria, em situações como esta, ser afastada a segurança jurídica. Não obstante seja uma garantia constitucional, não pode, a coisa julgada ser considerada direito absoluto de modo a impedir a desconstituição de julgados como este, em que é manifesta a inconstitucionalidade de seu conteúdo.
Nesse caso a sentença de mérito transitada em julgado causa extrema injustiça com clara violação de preceitos e valores constitucionais fundamentais.
Reconhecendo a coisa julgada material tutela a segurança jurídica mas se propõe a ponderação entre a mantença da segurança jurídica e a mantença da ofensa ao direito fundamental garantido pela CF.
Diante do juízo de proporcionalidade sopesando os valores constitucionais em conflito, seria legítimo o afastamento da coisa julgada quando se mostrar mais benéfico no caso concreto e válido à proteção de valores constitucionais mais relevantes que a coisa julgada material.
Referências
DONIZETTI, Elpídio. Curso de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro, Editora Lumen Juris, 2008.
CARREIRA Alvim, J. E. Teoria Geral do Processo. Revista, ampliada e atualizada. GrupoGen Editora Forense, 2009.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil, GrupoGen, Editora Método, 2009.