CASO CARLI FILHO: DOLO EVENTUAL OU CULPA CONSCIENTE?

OS FATOS

Por volta das 01h00 da madrugada do dia 07 de maio de 2009, o então Deputado Estadual Fernando Ribas Carli Filho, segundo a perícia do Instituto de Criminalística, dirigindo a uma velocidade de aproximadamente 167 Km/h, colidiu seu veiculo Passat na traseira de um Honda Fit, que poucos segundos antes adentrara na avenida que Carli Filho trafegava, ainda segundo informações prestadas pela polícia civil, o ex-deputado tinha 7,8* decigramas de álcool por litro de sangue no momento do acidente que vitimou Gilmar Rafael Yared, de 26 anos, e Carlos Murilo de Almeida, de 20 anos. Carli Filho ainda tinha sua carteira de habilitação suspensa por ter ultrapassado o limite de pontos permitidos.

*Nos E.U.A., Canadá e Reino Unido a tolerância é de 8,0 decigramas de álcool por litro de sange, 7,8 decimagramas de álcool por litro de sange equivalem a ingestão de 3,5 a 4 taças de vinho.

O DOLO

Segundo nos ensina o mestre Amadeu de Almeida Weinmann, “o dolo é vontade, desejo de realizar livre e conscientemente uma determinada ação”, ou ainda na lição de Zaffaroni e Pierangeli "o dolo é o elemento nuclear do tipo subjetivo e, freqüentemente, o único componente do tipo subjetivo (nos casos em que o tipo não requer outros)".

No nosso ordenamento jurídico o dolo está disposto no Código Penal Brasileiro, na primeira parte do Art. 18, inciso I: “Diz-se o crime: I – doloso quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”.

A CULPA

No mesmo Art. 18 em seu inciso II, está disposta a modalidade culposo do crime, a saber: II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.

Eugenio Raul Zaffaroni coloca a culpa, no direito penal, dentro da transgressão de um dever de cuidado na busca de uma finalidade, ocasionado por negligência, imprudência ou imperícia:

"O tipo culposo não individualiza a conduta pela finalidade e sim porque na forma em que se obtém essa finalidade viola-se um dever de cuidado, ou seja, como diz a própria lei penal, a pessoa, por sua conduta, dá causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia."

Isso posto, podemos definir a imprudência, a negligência e a imperícia nas palavras de Cezar Roberto Bittencourt como sendo:

“Imprudência é a prática de uma conduta arriscada ou perigosa”.

“Negligência é a displicência no agir, a falta de precaução, a indiferença do agente, que, podendo adotar as cautelas necessárias, não o faz”.

“Imperícia é a falta de capacidade, despreparo ou insuficiência de conhecimento técnico para o exercício de arte, profissão ou ofício”.

O DOLO EVENTUAL

Haverá dolo eventual, ainda segundo Bittencourt, quando o agente não quiser diretamente a realização do tipo, mas a aceitar como possível ou até provável, assumindo o risco da produção do resultado.

No dolo eventual o agente prevê o resultado como provável, ou, ao menos, como possível, mas, apesar de prevê-lo, age aceitando o risco de produzi-lo, Fernando Capez lembrando Nelson Hungria diz que :

“Assumir o risco é alguma coisa mais que ter consciência de correr o risco: é consentir previamente no resultado, caso este venha efetivamente a ocorrer” e ainda que simplifica o dolo eventual com a celebre frase: "Seja como for, dê no que der, em qualquer caso não deixo de agir"

A CULPA CONSCIENTE

A doutrina com poucas divergências conceitua a culpa consciente como sendo aquela conduta em que resultado é previsível, porém não é o desejado pelo autor ou agente prevê o resultado, mas acredita, sinceramente, que não ocorrerá, Fernando Capez leciona que:

“A culpa consciente difere do dolo eventual, porque neste o agente prevê o resultado, mas não se importa que ele ocorra (‘se eu continuar dirigindo assim, posso vir a matar alguém, mas não importa; se acontecer, tudo bem, eu vou prosseguir’). Na culpa consciente, embora prevendo o que possa vir a acontecer, o agente repudia essa possibilidade (‘se eu continuar dirigindo assim, posso vir a matar alguém, mas estou certo de que isso, embora possível não ocorrerá’). O traço distintivo entre ambos, portanto, é que no dolo eventual o agente diz: ‘não importa’, enquanto na culpa consciente supõe: ‘é possível, mas não vai acontecer de forma alguma’ ”.

Ainda acerca da culpa consciente Nelson Hungria citando Paul Logoz, em seu livro Commentaire du Code Penal Swisse, que com muita propriedade afirma acerca da culpa consciente:

"Nesse caso, com efeito, o valor negativo do resultado possível era, para o agente, mais forte que o valor positivo que atribuía à prática da ação estivesse persuadido de que o resultado sobreviria realmente, teria, sem dúvida, desistido de agir. Não estava, porém, persuadido disso. Calculou mal. Confiou em que o resultado não se produziria, de modo que a eventualidade, inicialmente prevista, não pôde influir plenamente no seu espírito. Em conclusão: não agiu por egoísmo, mas por leviandade; não refletiu suficientemente"

Portanto notamos que é muito tênue a linha que separa o dolo eventual da culpa consciente, pois se teoricamente é fácil explicitar as diferenças, no caso concreto temos que adentrar no elemento subjetivo que informou a conduta do agente, o que se poderia colher através das circunstâncias do fato e assim tentar determinar qual entre estes dois institutos do direito penal estamos diante, ainda assim, ficamos a mercê de um problema insolúvel, que é não ter como penetrar nas profundezas abissais do elemento psicológico do agente.

VOLTANDO AO FATO

Diante do que foi exposto acima, percebemos que o ex-deputado cometeu dolosamente várias infrações previstas no código de trânsito brasileiro, que é dirigir em alta velocidade; com a carteira de habilitação cassada e ainda conduzir veículo após ter ingerido alcoólicas, mas não agiu com dolo eventual no tocante ao fatídico acidente.

Para chegarmos a tal conclusão, temos que admitir que Carli Filho embora pudesse prever as consequências do conjunto de condutas que realizava, ele não admitia e nem acreditava no resultado final, haja vista que ele mesmo poderia falecer no acidente, o próprio fato de Carli Filho ter sua licença de habilitação cassada por excesso de velocidade vem corroborar isso. Em seu íntimo ele descartava por completo a hipótese de um acidente, a menos que ele fosse um suicida em potencial, o que não se enquadra no caso em tela.

E ainda, na dúvida de que se ele admitiu ou não o resultado, temos que optar pelo instituto da culpa consciente e fazer valer a máxima do direito penal, in dubio pro reo.

Nas palavras de Alexandre Wunderlich:

"Portanto, totalmente equivocada e divorciada dos novos paradigmas do Direito Penal moderno a tentativa de se levar os crimes de trânsito ao plenário do Júri e, com isso, aplicar a reprimenda mais gravosa. Não podemos permitir que seja dada demasiada elasticidade à ficção jurídica dolus eventualis, nem que tripudiem sobre a teoria geral do delito, para suprir uma legislação inadequada ou para atender os "ditos" reclamos sociais"

FINALIZANDO

Relembrando as sábias lições do mestre André Peixoto de Souza, "a justiça neste caso, seria trazer de volta as vidas das vítimas tão precocemente ceifadas pelo acidente", entretanto isso não é possível, e se não é possível que haja um julgamento justo, um julgamento que não pode carregar a mácula de ser influenciado pela mídia. Não podemos usar os instrumentos jurídico-legais, que temos a disposição, no caso o Direito Penal, como forma de vingança, ou como forma de consertar todos os males e desmazelos políticos de nossa sociedade, por mais que sejamos impelidos a fazer isso.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal - Parte Geral, 3. ed, São Paulo: Saraiva 2007

CAPEZ, FERNANDO. Direito Penal – Parte Geral, 4. ed. São Paulo: Editora MPM, 1997.

HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Editora Revista Forense, 1949.

JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal – Parte Geral. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

PEPEU, Sérgio Ricardo Freire. O dolo eventual e a culpa consciente em crimes de trânsito. Jus Navigandi, Teresina, ano 3, n. 35, out. 1999. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1731>. Acesso em: 23 ago. 2009. .

WEINMANN, Amadeu de Almeida; Princípios de Direito Penal. Rio de Janeiro, Editora Rio 2004.

WUNDERLICH, Alexandre. O dolo eventual nos homicídios de trânsito: uma tentativa frustrada. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 43, jul. 2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1732>.

Acesso em: 24 ago. 2009.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. 7. ed. São Paulo: RT, 2007.