Excludentes de responsabilidade do Estado em face da atuação das forças policiais
1. Considerações iniciais a respeito da responsabilidade do Estado
A responsabilidade civil do Estado possui o seu fundamento legal nas disposições que foram estabelecidas no art. 37, § 6º, da vigente Constituição Federal de 1988. Ao administrado que suportar uma lesão decorrente de um por ato praticado por um servidor, ou mesmo por um integrante das forças policiais, civis ou militares, bastará demonstrar o nexo de causalidade entre o fato e o dano suportado para que possa ser indenizado. Essa responsabilidade é de natureza objetiva e não exige a comprovação de culpa por parte do lesado em razão ato que foi praticado pelo agente que se encontrava a serviço do Estado.
O princípio estabelecido no texto constitucional também alcança os integrantes das Guardas Municipais que atualmente por tolerância tem exercido atividades de polícia ostensiva e preventiva e até mesmo de polícia judiciária. A Guarda Civil por força da CF tem competência para cuidar dos próprios dos municípios, mas querendo ou não seus agentes têm exercido outras funções, e se eventualmente os atos praticados pelos guardas municipais causarem lesões aos particulares, os Municípios após um regular processo poderão ser obrigados a indenizar os danos causados, seja de ordem material, moral ou mesmo estético.
Mas, apesar da natureza da responsabilidade que foi estabelecida pelo vigente texto constitucional, ao ser acionado judicialmente o Estado poderá provar que não foi o responsável pelo evento suportado pelo administrado. No exercício de sua defesa em juízo, o Estado poderá suscitar a ocorrência de uma das causas denominadas de excludentes da responsabilidade, como por exemplo, a culpa exclusiva ou concorrente da vítima, atos de terceiros, atos de multidões, ou mesmo o caso fortuito ou a força maior, que poderão excluir ou até mesmo reduzir a quantia a ser paga ao particular a título de indenização por danos materiais e ou morais.
Se eventualmente, o Estado for acionado judicialmente em razão de atos praticados pelos integrantes das forças policiais, civis ou militares, poderá alegar em sua defesa, contestação, que o ato foi praticado sob o manto da coação administrativa, que autoriza o uso da força para a manutenção ou restabelecimento da ordem pública, tranqüilidade e salubridade pública, e também é uma causa de exclusão da responsabilidade na lição de Otto Mayer.
A condenação do Estado na obrigação de reparar o dano exige que o particular demonstre não a culpa, o nexo de causalidade entre o ato praticado pelo agente e o dano por ele suportado, devendo este dano ser certo, e não apenas eventual, presente e não futuro; finalmente, que, entre a prestação ou desempenho do serviço público, o ato ou omissão do serviço público que ocasionou o dano, e este, se verificou uma relação direta de causalidade, um laço de causa e efeito, isto é, o nexo causal.
A responsabilidade objetiva que foi adotada no texto constitucional para alguns leva a uma responsabilidade integral, ou seja, sendo fato lícito ou ilícito, havendo ou não culpa, o Estado responde pelo dano que foi suportado pelo administrado. A respeito do assunto, José Cretella Júnior observa que, “pela teoria do risco integral, é indiferente que tenha havido culpa ou acidente, interessando apenas saber se há vínculo causal entre o funcionamento do serviço público e o prejuízo sofrido pelo administrado. Se há prejuízo, o dano será reparado, não interessando se se trata de ato de império ou ato de gestão, se houve culpa, acidente ou qualquer outra explicação tendente a irresponsabilizar o Estado”.
Percebe-se que a adoção desta teoria leva a um critério injusto, uma vez que não permite ao Estado a possibilidade de apresentar qualquer defesa face ao pedido formulado pelo administrado. A teoria objetiva na verdade inverteu o ônus da prova, e diante dos pressupostos da responsabilidade objetiva, ao Estado só cabe defender-se provando a inexistência do fato administrativo, a inexistência de dano ou a ausência do nexo causal entre o fato e o dano”.
A respeito da inversão do ônus da prova nas ações de responsabilidade do Estado, o extinto Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul decidiu que, “Responsabilidade Civil do Estado - Teoria do Risco Administrativo- Inversão do Ônus da Prova. A teoria do risco administrativo inverte o ônus da prova, e o Estado apenas exclui ou atenua a sua obrigação, se demonstrar a culpa exclusiva ou concorrente da vítima. TA - RS - Ap. n.o 184068856 – 3a. C. Civ. - Ac. de 13.2.85 - apud ADCOAS 105541”.
Os Tribunais em regra vêm acolhendo a teoria do risco administrativo, que permite ao Estado demonstrar a existência de uma das excludentes da responsabilidade. O Supremo Tribunal Federal decidiu que, “Responsabilidade Civil do Estado- Culpa Exclusiva da Vítima - Essa Corte tem admitido que a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica de direito público seja reduzida ou excluída conforme haja culpa concorrente do particular ou tenha sido este o exclusivo culpado - Agravo no 722-3, e RE no.113.587. No caso, existiu culpa exclusiva da vítima, inexistente a responsabilidade civil da pessoa jurídica de direito público, pois foi a vítima que deu causa ao infortúnio, o que afasta, sem dúvida, o nexo de causalidade entre a ação e a omissão e o dano, no tocante ao recorrido. Recurso extraordinário não conhecido. STF - RE n.º 120.924-1 - 1ª Turma - Rel. Min. Moreira Alves - DJU 27.8.93”.
Portanto, pode-se afirmar que a responsabilidade do Estado por força da vigente Constituição Federal de 1988 é de natureza objetiva, devendo o particular interessado provar o nexo de causalidade entre o fato ocorrido e o dano por ele suportado. Ao Estado é assegurado o direito em decorrência da inversão do ônus da prova de demonstrar que não foi o responsável pelo evento. As excludentes de responsabilidade afastam ou até mesmo diminuem os valores devidos ao administrado a título de indenização por dano moral ou mesmo material.
2. Culpa exclusiva ou concorrente da vítima
O Estado ao ser acionado em juízo poderá demonstrar que o responsável pelo evento não foi o servidor civil ou mesmo os agentes que integram as forças policiais, civis ou militares, mas o próprio administrado que agiu de forma exclusiva ou concorrente para a ocorrência do dano. Ao demonstrar a culpa da vítima, o Estado poderá excluir ou até diminuir a sua responsabilidade, o que terá reflexo nos valores que devem ser pagos a título de indenização.
A respeito do assunto, a possibilidade de exclusão de responsabilidade do Estado por culpa exclusiva ou concorrente da vítima Yussef Said Cahali destaca um acórdão que foi proferido pelo Supremo Tribunal Federal, que teve como relator o Ministro Francisco Rezek, segundo o qual, “Embora tenha a Constituição admitido a responsabilidade objetiva, aceitando mesmo a teoria do risco administrativo, fê-lo com temperamentos, para prevenir os excessos e a própria injustiça. Não obrigou, é certo, à vítima e aos seus beneficiários, em caso de morte, a prova da culpa ou do dolo do funcionário para alcançar a indenização. Não privou todavia, o Estado a propósito de eximir-se da reparação, alegando que o dano defluíra do comportamento doloso ou culposo da vítima. STF, 2a. Turma, julgado em 5.12.89. Rel. Francisco Rezek, RTJ 131/417 e RDA 179/180”.
Na realidade, o Estado não pode e não deve ser omisso no exercício de suas funções, como ocorre, por exemplo, no caso das atividades de segurança pública, mas também não seria justo que tivesse que responder pelo uso
legítimo da força, quando esta é utilizada para a manutenção ou mesmo para o restabelecimento da ordem pública por fatos que foram ocasionados pelo próprio administrado.
A teoria do risco administrativo não chega ao extremo da teoria do risco integral. Por da teoria do risco administrativo, que se mostra mais razoável e em conformidade com o Estado de Direito, a Administração não deve indenizar sempre e em qualquer caso o dano suportado pelo particular. Significa apenas e tão somente que a vítima fica dispensada da prova da culpa da Administração, mas esta poderá demonstrar a culpa total ou parcial do lesado no evento danoso, caso em que a Fazenda Pública se eximirá integral ou parcialmente da indenização.
Desta forma, a participação da vítima na ocorrência do evento poderá excluir ou mesmo diminuir o valor devido pelo Estado, o que impede a ocorrência do abuso na aplicação da responsabilidade objetiva. Assim, a adoção da teoria do risco administrativo não exclui a possibilidade do Estado demonstrar que seus agentes não são responsáveis pelo dano suportado pelo particular.
3. Atos praticados por terceiros
O Estado deve responder pelos atos que foram praticados por seus agentes, no exercício de suas funções constitucionais e infraconstitucionais, e que venham a causar danos à incolumidade das pessoas e do patrimônio. Os atos que foram praticados por terceiros e que não integram os corpos policiais, ou mesmo os quadros da administração pública, direta ou indireta, ou que não sejam prestadores de serviços públicos, não são de responsabilidade do Estado e as indenizações não devem ser suportadas pelos cofres públicos.
Por certo não há que se admitir sempre a obrigação de indenizar do Estado. Com efeito, o dever de recompor os prejuízos só lhe cabe em razão de comportamentos danosos de seus agentes e, ainda assim, quando a vítima não concorreu para o dano. De sorte que nem se cogita da responsabilização do Estado por dano decorrente de ato de terceiro (RDA, 133:199) ou de fato da natureza (vendaval, inundação). Isso é mais que óbvio. Em suma, diz-se que não cabe responsabilidade do Estado quando não se lhe pode atribuir o ato danoso.
Ao sofrer um dano que tenha sido praticado por um terceiro, o administrado não poderá se socorrer da teoria da responsabilidade objetiva para buscar a recomposição da lesão suportada. Deverá acionar o responsável pelo ilícito e comprovar a sua culpa na forma das disposições que se encontram estabelecidas no vigente Código Civil de 2002.
As causas excludentes de responsabilidade permitem que o Estado tenha a possibilidade de demonstrar se o fato que foi imputado ao agente, que o representa, foi provado ou não por culpa do próprio agente, ou se eventualmente existem outras causas que devem ser levadas em consideração no momento do julgamento a ser proferido pelo Poder Judiciário.
No caso dos agentes que integram as Forças de Segurança análise semelhante deve ser feita, tendo em vista que nesta seara o Estado tem o dever de agir, e o ato que foi praticado pelo agente policial no cumprimento de seu dever constitucional deve ser analisado com base nos princípios que regem a responsabilidade civil do Estado, dentre eles, a presença ou não de uma das excludentes de responsabilidade.
4. Atos praticados por multidões
A vida em sociedade leva a formação de grupos ou em determinadas situações a reunião de pessoas de forma transitória para praticarem um determinado ato de protesto ou para exercerem atos que ferem à ordem pública, à tranqüilidade, e a paz social. Nas sociedades de massa atuais se torna cada vez mais comum que multidões dirijam a sua fúria destruidora a bens particulares, normalmente quando pretendem evidenciar algum protesto contra situações especiais. Em todo o mundo ocorrem esses movimentos, ora de estudantes contra a polícia, ora da população contra o Estado, ora de delinqüentes contra o indivíduo.
Em matéria de danos causados a particulares em razão de movimentos hostis de aglomerados humanos, quando a massa enfurecida exterioriza sua revolta através de atos de depredação à propriedade privada, a responsabilidade civil do Estado não emerge necessariamente da concepção absoluta do risco integral; aqui, mais do que em qualquer outro plano do Direito, verifica-se que o reconhecimento daquela responsabilidade não se basta com a ineficácia genérica do aparelhamento estatal de polícia preventiva, encarregado da manutenção da ordem e da segurança do cidadão.
A regra é que o Estado não venha a ser responsabilizado pelos danos que foram suportados pelo particular em decorrência de atos praticados por multidões. Mas, existindo omissão das forças policiais, civis ou militares, ao tomarem conhecimento da possibilidade de ocorrência de atos de depredação, por exemplo, por um determinado grupo, e não adotarem as providências legais existirá a responsabilidade do Estado. O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais reconheceu que, “Quando a Administração Pública se abstém da prática de atos, ou de tomar providências que a lei lhe impõe, e de sua inércia resulta dano, a culpa se configura e a sua conseqüente reparação surge como imperativo indeclinável de justiça”.(TJMG, 2ª C, 30.4.55, RT 275/833).
Portanto, o Estado-administração não responde por atos praticados por multidões devido a ausência do nexo de causalidade entre o dano e a lesão. O administrado deve provar que o ato foi praticado por um agente do Estado, a não ser que esse agente tenha sido omisso no exercício de suas funções. As forças policiais são responsáveis pela preservação da ordem pública, e quando seus integrantes deixam de exercer as suas funções, apesar de terem sido avisados, está caracterizada a responsabilidade do Estado nesta modalidade.
5. Fatos imprevisíveis
A culpa exclusiva ou concorrente da vítima ao lado dos atos praticados por terceiros, neles se incluindo os atos praticados por multidões, excluem ou reduzem a responsabilidade do Estado em relação ao dano suportado pelo particular. Além dessas situações, existem ainda os chamados fatos imprevisíveis, que ocorrem sem que as pessoas possam prevê-los ou se prepararem para enfrentá-los. Nesta categoria encontramos o caso fortuito e a força maior.
Ao estudar o caso fortuito e a força maior Hely Lopes Meirelles observa que, “Força maior é o evento humano que, por sua imprevisibilidade e inevitabilidade, cria para o contratado impossibilidade intransponível de regular execução do contrato. Assim uma greve que paralise o transporte ou a fabricação de um produto. O caso fortuito é o evento da natureza que, por sua imprevisibilidade e inevitabilidade, cria para o contratado impossibilidade de regular execução do contrato. Assim, inundação imprevisível, que cubra o local da obra”. É importante se observar, que apesar de Hely Lopes Meirelles se referir aos contratos administrativos a noção sobre força maior e caso fortuito é perfeitamente válida em sede de responsabilidade do Estado.
Deve-se ressaltar, que na doutrina existe uma divergência a respeito do conceito de força maior e caso fortuito. No entender de José dos Santos Carvalho Filho, “São fatos imprevisíveis aqueles eventos que constituem o que a doutrina tem denominado de força maior e de caso fortuito. Não distinguiremos, porém, essas categorias, visto que há grande divergência doutrinária na caracterização de cada um dos eventos”.
Em regra, esses acontecimentos imprevisíveis excluem a responsabilidade do Estado devido à ausência do nexo de causalidade entre o fato e o dano suportado pelo particular. Mas, existem situações em que apesar dos eventos terem origem em fatos da natureza, o Estado responderá pelos danos suportados pelo administrado por não ter executado as obras necessárias para evitar o dano ou diminuir o seu resultado. A pessoa jurídica de direito público ou a pessoa jurídica de direito privado, prestadora de serviços públicos, responderá pelos danos, não pelo fato da natureza em si, mas por não ter executado obras suficientemente adequadas para evitar o dano ou mitigar seu resultado, quando o fato for notório, previsível e evitável.
Os fatos imprevisíveis excluem a responsabilidade patrimonial do Estado devido à ausência do nexo de causalidade, pois, se o Estado respondesse por todos os danos que o administrado viesse a sofrer em sua vida. O Estado não deve ficar em uma posição de irresponsabilidade pelos atos praticados por seus agentes, mas ao mesmo tempo não poderá ser penalizado por toda e qualquer espécie de dano que venha a ser suportada pelo particular.
6. Considerações Finais
O Estado por força do contrato social que foi celebrado assumiu junto à sociedade o dever de prover a segurança nacional e também a segurança pública, que é essencial para a existência do Estado democrático de Direito. Por isso, os atos que são praticados pelos agentes policiais, civis ou militares, estaduais ou federais, podem levar a responsabilidade do Estado quando estes causarem danos aos particulares.
Segundo a doutrina vem defendendo com base na Constituição Federal de 1988, a responsabilidade do Estado é de natureza objetiva, e o particular, administrado, destinatário dos serviços que são prestados, deverá demonstrar o nexo de causalidade entre o dano suportado e o que foi ato praticado pelo agente policial, civil ou militar.
A teoria que foi adotada pelo ordenamento jurídico é a teoria do risco administrativo, que permite ao Estado demonstrar que não foi o responsável pelo dano suportado pelo administrativo.
Por força desta teoria, o Estado poderá demonstrar em juízo a ocorrência de uma das excludentes de responsabilidade estabelecidas em lei, e reconhecidas pela doutrina e jurisprudência dos Tribunais.
Pode-se afirmar que esta teoria denomina de teoria do risco administrativo é mais justa quando comparada com a teoria do risco integral. Afinal, não seria justo que em todo e qualquer situação, o Estado que não pode ser omisso no exercício de suas funções, em especial na seara de segurança pública, fosse responsabilizado pelos atos praticados por seus agentes no exercício de suas funções constitucionais.
O reconhecimento de uma das excludentes de responsabilidade traz como conseqüência a diminuição ou até mesmo a exclusão da obrigação de indenizar o particular pelos danos suportados.
Portanto, pode-se afirmar que o Estado também tem o direito de demonstrar que não foi o responsável pelos danos suportados pelo particular, uma vez que não seria justo que em todas as hipóteses houvesse a obrigação de indenizar aquele que muitas vezes foi o próprio responsável pelo dano praticado pelos integrantes das Forças Policiais no exercício de suas funções constitucionais e infraconstitucionais.
PAULO TADEU RODRIGUES ROSA é Juiz de Direito Titular da 2ª AJMEMG, Mestre em Direito pela UNESP e Professor de Direito Penal e Introdução ao Estudo do Direito na Academia de Polícia Militar de Minas Gerais.
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