O novo escrito sobre a ética e sobre o perdão.
O novo escrito sobre a ética e sobre o perdão.
Jacques Derrida em palestra no Rio de Janeiro (2004) cujo tema principal era o perdão apontava que representava uma “uma prova de fogo” é exatamente perdoar o imperdoável.
Contudo, perdoar não significa esquecer, é em verdade um sinal permanente de advertência. Na desconstrução dos dogmas ocidentais, aflora o perdão incondicional como aquele que é o mais difícil.
Aliás, para Derrida só há decisão ética ou hiperética onde parece não haver outra saída; do contrário diante do caminho previamente traçado, não há responsabilidade, somente o cumprimento de programa preestabelecido. Ser verdadeiramente ético reinventar suas próprias normas diante do desconhecido.
Em tempo de olimpíadas, seria interessante refletir que a cada atleta de uma parte pobre ou miserável do globo mundial, significa uma afirmação ínfima diante das escabrosas estatísticas sobre morte infantil e desnutrição.
Significa uma transcendência preciosa mas que serve para ratificar a necessidade de se subverter a pobreza e a miséria desses povos e países.
E nesse momento, deparo-me com certa inquietação ética pois até aonde devemos premiar aquele atleta que representa a pura exceção do que normalmente ocorre em seu país de origem, até aonde não significaria homenagear a miséria como prática contextual?
Perquiro mais cruelmente e ínsito: até que ponto reconhecer um único indivíduo não significaria simultaneamente negar a sociedade?
Inquietum est cor nostrum (inqueito é nosso coração) é o lema do hiper-realismo que é o contexto mais apropriado para a hiperética. A expressão latina faz parte de aforismo célebre de São Tomás que aponta a natural tendência humana para a verdade e para o bem.
A expressão latina faz parte de aforismo célebre de São Tomás que aponta natural tendência humana para a verdade e para o bem.
A hiperética é uma ética individual que vai além da ética, que não cede às tentações dos bens morais e está ligada essencialmente àquela coisa e à sua excepcionalidade.
A Ética do fim pode ser vista na doutrina de Bergson que distinguiu moral fechada, de moral aberta.
No auge dos valores acessíveis a humanidade mediante a ética, portanto existem dois valores: o do conhecimento e o da pessoa humana.
E propugnar pelo respeito à dignidade humana esquadrinha um contínuo desafio disputado pelas ciências, pela técnica e, pela lógica.
A definição clássica que considera o conhecimento como crença verdadeira e justificada e, ainda exige a presença de três elementos: sujeito cognoscente, objeto cognoscível e a justificativa para o sujeito acreditar no objeto.
Em linguagem filosófica tanto os termos conhecer como conhecimento são vagos, imprecisos e equívocos. Podem tanto significar uma informação qualquer como a posse da verdade.
O pressuposto fundamental do conhecimento é o de que se estabeleça relação entre sujeito que conhece e um objeto que é conhecido.
Se o sujeito não dispuser de condições necessárias para o conhecimento (uso dos sentidos, capacidade de raciocínio, acesso à linguagem) ou se o objeto não se mostrar de alguma forma para o sujeito, o conhecimento não ocorre.
Nem sempre o objeto é necessariamente material e acessível aos sentidos, podendo ser, portanto também, imaterial, ideal (tais como símbolos matemáticos) intuído pela fé, representação ou construído pela fantasia.
O objeto de conhecimento dá a imagem que é apreendida pelo sujeito, desta forma é indispensável que haja o contato entre o objeto e o sujeito, que exista então uma correlação entre eles.
Decorrente da própria natureza humana é a problematização sobre a realidade foi responsável por trazer questionamentos e respostas. Tais respostas falsas ou verdadeiras foram se organizando de acordo com certo esquema de pensamentos, algumas respostas baseadas em crenças, outras na experiência e, outras ainda, baseadas na pura racionalidade ou na sensibilidade.
Daí se desenvolverem variados tipos de conhecimento tais como: mito, religião, senso comum, ciência, filosofia e arte.
E todos esses tipos de conhecimento interagem e influenciaram os padrões éticos e hiperéticos vigentes.
Na filosofia vigente contemporânea, a noção de valor começou a substituir a de bem, antiga alternativa da ética do fim e ética da motivação. O valor é constantemente identificado por seus três caracteres: a) objetividade; b) simplicidade, graças à qual é indefinível e indescritível, do mesmo modo que uma qualidade sensível elementar; c) necessidade ou problematicidade.
Mas questiona-se qual é o valor da hiperética? Talvez seja o mesmo princípio da ética de Epicuro que implica no reconhecimento daquilo que, de fato, é o móvel da conduta humana: prazer e dor. Que são duas afeições que se reúnem em todo animal, e são antagônicas, através das quais se julga o que se deve escolher, e o que se deve evitar.
É o desejo de sobrevivência e conservação que existe em cada ser, é que, com efeito, a natureza faz que com que todos desejem o próprio bem, mas para que possam ser capazes disso, será necessário que desejem a vida, a saúde e a maior segurança que possível desses valores para o futuro.
Em notório contexto positivista, a ética assume a pretensão de valer como ciência exata da conduta. Mas tal concepção se prendeu muito ao utilitarismo do século XIX, encabeçada por Bentham. E, segundo esse filósofo, os dois únicos fatos dos quais há a partida do domínio moral são os prazeres e as dores.
Assim, a conduta do homem é pautada pela expectativa de prazer ou de dor, e esse é o único motivo possível de ação. Desta forma e com tais argumentos a ética se torna tão exata quanto a matemática, embora mais complexa e ampla.
Bertrand Russel propôs uma ética ampla e grosseira inclusive acusando a ética de não conter afirmações verdadeiras ou falsas mas consiste em desejos de caráter geral.
Dizer que uma cópia é um bem ou um valor positivo significa dizer que me agrada e exprime atitude pessoal e subjetiva. Ainda falta a ética contemporânea uma teoria geral da moral concebida como técnica de conduta e que abriga modalidades que se realiza em grupos sociais diferentes.
O atual renascimento da ética envolve os problemas práticos das pessoas e, considera variados modelos filósofos. Para Lévinas a ética corresponde a filosofia primeira, e abertura para o outro, pondo em crise a subjetividade egocêntrica e egoísta.
Já para os neo-aristotélicos (Arendt, Gadamer, Ritter, Bulner) afirmam que a autonomia da práxis em relação à theoria e à poesis e faz do exercício concreto da virtude, entendida como um tipo de sabedoria que vive apenas num mundo de costumes já dados, o baricentro da moral.
Já para o pós-kantismo da Escola de Frankfurt (Apel, Habermas) reportar-se às instâncias formalistas e deontológicas da razão prática de Kant e baseia a moral em estruturas universais e necessárias de comunicação lingüística.
Desta forma, a moral é uma das seções da filosofia que hoje em dia desperta maiores interesses e maiores polêmicas pois a demanda da ética é espécie de desafio constante em inúmeras ciências e, em meio a tantas perplexidades principalmente por falta de justificativa científica para a filosofia moral e por ter tamanho respaldo legisferante.
Hegel labora distinção entre moralidade que é vontade subjetiva, individual ou pessoal, do bem e a eticidade que é a realização do bem em realidades históricas ou institucionais tais como família, sociedade civil e o Estado.
A metaética é abordagem teórica que deixando de lado problemas morais concretos e as questões éticas normativas, propõe analisar, esclarecer os procedimentos.
Preocupa-se com a verificação, justificação ou demonstração de validade dos juízos éticos ou de valor. Retornando ao perdão enquanto conduta ética há de se ponderar até a sensibilidade e percepção influem diretamente na concessão ou não de perdão verdadeiro.
A justificativa do perdão para ser aceitável deve ser epistêmica, portanto não pode ser casual, fortuito ou mero fruto de conjecturas estranhas e misteriosas.
Assim a justificativa deve trazer confirmação da diagnose, aonde o perdão é a única solução hábil a permitir a evolução do desenvolvimento humano emocional.
Evidentemente há grande diferença entre a pessoa dizer que tem certos valores e, efetivamente tê-los assim como vige a mesma diferença entre a pessoa dizer que perdoar dizer que perdoa e, efetivamente perdoar.
A linguagem pela qual expressamos nossos juízos morais é, de certa forma, um indicador de como entendemos e abordamos a ética.
A temática do perdão sempre fora alvo de profundas inquietações e preocupações tanto dos filósofos como Derrida e Ricoeur, como sociólogos, antropólogos e, também, teólogos.
Derrida trouxe interessantes insights sobre o perdão que é condição imprescindível para a reconciliação, para a continuidade da vida. O perdão deve parecer impossível e, neste sentido, e este só pode ser concedido ao que é imperdoável (todo o restante, nós apenas desculpamos).
E adianta o filósofo francês que perdoar não é esquecer, não é o apagamento ou sublimação da culpa. Ratifica então que deve manter a ferida aberta e, que ato de perdoa sublinhe o que é imperdoável, portanto, não é ato incondicional posto que requer condições para sua existência.
O ato de perdoar não pode estar associado à impunidade ou ao estímulo da irresponsabilidade, como bem definiu Derrida: “os homens não têm o direito de subtrair - o julgamento, qualquer que seja o tempo decorrido após cometer a falta.”.
Em outra passagem o filósofo acrescenta que “só se perdoa o imperdoável, pois o perdoável já está perdoado”.
Pela vertente teológica do Cristianismo, perdão é divino mas não significa esquecimento posto que no Juízo Final, todos serão julgados e punidos por seus pecados.
Portanto, frisa com razão Derrida que perdoar não é sinônimo de impunidade e nem de esquecimento até porque o passado é irrevogável, e punir não é ato de ódio e vingança e, sim, antes de tudo, ato de justiça.
Nesse sentido é muito útil a ética de Kant pois se ao quer precisar ser perdoado, basta seguir o imperativo kantiano: “não faça aos outros o que não gostaria que fizessem você.”
Derrida em sua última vinda ao Brasil, precisamente em 2004, participou de evento sediado no Rio de Janeiro tenho escolhido o tema “O perdão, a verdade, a reconciliação: qual gênero?”. Seu desejo foi trazer reflexões sobre o lugar do negro no Brasil e na América Latina.
A investigação do perdão é por sua natureza limiar muito fragmentada e desdobrável em várias dimensões. É importante perceber que a resistência de alguns em cogitar sobre certos assuntos que muitas vezes é tido como incomunicável e indizível (onde o segredo seria protegido pelo silêncio.
São os poucos assuntos que são tratados com tamanha diversidade de linguagens como o perdão. Sem falar no silêncio. Basta atentar para as múltiplas roupagens e máscaras tais como cenas épicas ou romanescas, tragédias insuperáveis, estórias míticas e textos sagrados, cânticos, diálogos, confissões e cerimoniais.
Mea culpa, mea máxima culpa! É uma frase latina reconhecendo o próprio erro e vem da prece tradicional da Missa da Igreja Católica conhecida como Confiteor (em latim “em confesso” e, na qual o fiel reconhece seus erros perante Deus.
A própria multiplicidade de linguagens é indicadora que o perdão encerra uma prática não violenta do discurso. Enfim, o perdão é humano é humano e nada estranho tal qual a frase de Terêncio: “Sou homem; nada que é humano me é estranho”.
O perdão como exigência ética implica muitas vezes em renunciar inteiramente de ter a última palavra. A pregação do perdão vem sendo feita secularmente, a sabedoria ética deve ser o recurso pessoal de cada um, pois só as vítimas é que podem perdoar ou não.
E o principal busilis do perdão não se refere ao exercício mas também ao pedido. Para Derrida, escrever é também pedir perdão, ensinar é pedir perdão, em algum sentido.
A problemática do perdão é a da culpabilidade e reconciliação com o passado. O contexto onde redundam excessos nos crimes contra a humanidade, principalmente no século passado após a Segunda Grande Guerra Mundial, ocasião propícia para a discussão sobre o perdão.
O homem não nasceu para a morte, mas para instaurar algo novo, já assinalava Hannah Arendt, seja na ação política ou na ética.
O perdão suspende um tempo, um ciclo para abrir outro, tem o poder de revelação. O perdão quebra o encadeamento lógico de causas e efeitos, promovendo a ruptura com a lei da dívida.
Interessante é perceber que todo crime, toda falta, tudo o que se poderia perdoar ou pedir perdoar pressupõe um perjúrio, ou seja, uma quebra de promessa (implícita ou explícita). Aliás, o título original do trabalho de Derrida seria mesmo “Pardon et perjure”.
Apontando para os elementos essenciais do perdão que seriam a promessa e seu rompimento, assim o perdão corresponde à falta de fé jurada, ao juramento ou a palavra empenhada.
As reflexões derridianas se encaminham para temas contemporâneas tais como a geopolítica internacional, novas tecnologias, novas técnicas genéticas e, as catástrofes de 11 de setembro.
Apesar de suas palestras e seminários demonstrarem “a voz diferida da impressa”, no limite da aporia (que em grego significa falta de passagem, a incerteza) quanto à solução de um problema apontando a necessidade de decidir entre caminhos que bifurcam.
O verdadeiro estatuto do perdão de Derrida aonde identifica que o perdão não se perfaz sem tropeços e dificuldades. O perdão pertence a um universo negativo aonde vige a noção de um impossível, percorrendo a culpabilidade e punição do genocídio dos judeus na Segunda Guerra, aonde a coletividade “do nós”, do povo alemão é inquirida. E, o simples fato de ser alemão, não o transforma culpado pelos crimes nazistas.
O próprio discurso que torna possível o perdão e traz a necessidade de reconciliação mas traz igualmente a vertente do irreconciliável. O processus que possibilita o perdão no futuro
Mas, afinal qual seria a importância contemporânea numa sociedade submetida ao cruel imperativo da troca e na imersa complexidade dinâmica e infinita de trocas e dívidas? Mas essas reflexões mais profundas servirão certamente de inspiração para outro texto.
O próprio conceito do perdão é enigmático e extremamente ligação a herança religiosa a que Derrida denomina de abrâamica (originado de Abrahão, o homem de Ur com quem Deus celebrou a aliança do povo de Israel) abarcando assim o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. E quanto ao cenário do perdão, sua geopolítica ligada aos crimes contra a humanidade pois são invocados para pedir perdão pelas iniqüidades e injustiças mesmo que cometidas por outras gerações.
No ano de 2007, por exemplo, por ocasião da comemoração dos 200 anos da proibição do comércio de escravos do Reino Unido, o governo inglês publicamente pediu perdão aos afro-americanos pelo tráfico negreiro do qual a Inglaterra fora seu expoente máximo.
Já Willy Brant ofereceu após 55 anos. Para indenizar as vítimas de trabalhos forçados nas usinas durante a Segunda Grande Guerra; O Japão após comemoração de tanto anos de sua rendição igualmente pediu perdão oficial pelo sofrimento que causou aos seus vizinhos, fazendo um chamado à concórdia e consolidação da paz na região.
Curiosamente nesse mesmo momento assistimos Barack Obama, um afro-descendente assumir a presidência dos EUA e, a expansão econômica do Japão e a reconsolidação da Alemanha no cenário europeu.
O perdão em sua concepção não é e nem deveria ser normal ou normalizante e nem normativo. Deve permanecer excepcional e extraordinário e mesmo a tradição judaico-cristã não subtrai do perdão do horizonte da reconciliação, da esperança, da salvação e redenção por meio da confissão, do remorso ou do arrependimento ou do sacrifício ou da expiação.
Então o perdão é a transcendência, perdoa-se tendo viva a memória do mal-feito, exigindo-se a recordação do indelével, para além de todo trabalho de reconciliação ou de recuperação, para além de toda ecologia da memória ou de toda psicoterapia do luto.
O perdão deve ficar como possibilidade humana e aponta Hannah Arendt que perdão tem em comum com o castigo pois este tendo por fim, que, sem sua intervenção, poderia continuar indefinidamente. Há segundo a filósofa uma simetria entre punir e perdoar, uma relação de troca.
Os institutos como absolvição, graça, anistia não significam o perdão, pois a princípio o perdão deve abarcar duas singularidades: o culpado e a vítima. No momento em que terceiro intervém, pode-se cogitar em anistia (que é instituto jurídico-político) de reparação, de reconciliação, mas não significa perdão em sentido estrito.
Na visão derridiana chega a ser obscena e odiosa a afirmação de que a soberania tem poderes de perdoar, seja enquanto vítima, ou em nome da vítima. Pois idéia reduz a vitimização absoluta retirando da vítima o direito à palavra, da liberdade e do poder, de dizer “eu perdôo”.
O perdão ab initio deve ser pedido e concedido de pessoa a pessoa sem a intermediação de outrem sob pena de comprometer a autenticidade do perdão. Para Derrida não há sentido o pedido de perdão a uma coletividade, a um grupo étnico ou religioso.
Derrida adota a ética hiperbólica, ou seja, uma ética além da ética, que tendo a transcender ao limite do possível e da economia corrente do perdão que o inunda de significância teológica, política e psicológica.
Mesmo assim não há como não evidenciar certa fragilidade do perdão, é uma espécie de loucura pois não exige reparação do mal, nada pede em troca. Na oração quando pedimos: “Perdoai-as, Pai. Porque eles não sabem o que fazem”, há uma finalidade do perdão que é a salvação do homem. A redenção é sem dúvida um dos fins do perdão condicional.
Ao final toda ética do perdão reinventa uma justiça restaurativo e o reconhecimento da humanidade como um dos mais soberanos valores de todas as ciências.
Referências
FREUD, S. O mal-estar na civilização. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro. Imago, 1995, volume 21.
HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
JANKELEVICH V. L’imprescritible pardonner? Dans L’honeur et la dignité, Pris, Seuil, 1986.
DERRIDA, J. Posições. Belo Horizonte, Autêntica, 2001.
___________ Do espírito: Heidegger e a questão. Trad. Constança Marcondes César. Campinas: Papirus, 1990.
___________A voz e o fenômeno: introdução ao problema do signo na fenomenologia de Husserl. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro. J. Zahar, 1994.
DUQUE ESTRADA, Paulo Cesar. (org.) Espectros de Derrida, Nau Editora, São Paulo, 2008.
MIGLIORI, Maria Luci Buff. Horizontes do perdão. Reflexões a partir de Paul Ricoeur e Jacques Derrida.Tese de doutorado em Filosofia, PUC-São Paulo, 2007.