O PARADOXO DO NON BIS IN IDEM E O INSTITUTO DA REINCIDÊNCIA NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo procura trazer a tona um tema de suma importância dentro do Direto Penal, que é o instituto da reincidência como agravante de pena.

Embora o assunto demande uma análise complexa, incluindo o aprofundamento em diversos sistemas judiciais através do Direito Comparado, como é o caso do Código Penal da Colômbia que supriu este instituto de seu ordenamento em 1980; vamos nos ater ao sistema jurídico brasileiro, devido a sua relevância e a sua implicação direta na nossa sociedade.

É de conhecimento da grande maioria, que muitos dos doutrinadores consideram como um assunto consolidado, quando se trata do instituto da reincidência criminal como agravante de pena no nosso sistema jurídico, inclusive com o respaldo jurisprudencial do Egrégio Tribunal Federal, entretanto, é fundamental importância que todos os operadores do Direito dispensar algum momento de reflexão sobre esta matéria, tendo em vista que todos que abraçaram o Direito como profissão ou como instrumento de agregação de conhecimentos e valores, já sabiam de antemão, que nesta ciência não deve existir dogmas, que o Direito é vivo e em constantes mudanças que acompanham a evolução do homem e da sociedade, e que os entendimentos mais aceitos que temos hoje acerca de uma determinada matéria, já foi diferente no passado eprovavelmente será diferente no futuro, um futuro que se começa a construir no presente; sem medos e com a ousadia de pensar diferente daqueles que se consideram ou são considerados os baluartes do Direito e da Justiça.

2. BREVE HISTÓRICO DA REINCIDÊNCIA NO BRASIL

O instituto da reincidência tem suas origens nos Direitos Romano e Germânico, e desde o surgimento da Escola Clássica no século XIX, já havia doutrinadores que criticavam a agravação da pena pelo do fato de alguém ser reincidente, por uma explícita violação ao princípio do non bis in idem.

No sistema jurídico brasileiro a reincidência sempre esteve presente como sendo uma circunstância agravante de pena, e já no o Código Criminal do Império de 1830, em seu art. 16, § 3º, preconizava: "Ter o delinqüente reincidido em delicto da mesma natureza", nota-se porém neste caso que a reincidência só produzia seus efeitos na pena, quando o delito posterior fosse da mesma da natureza do crime do anterior, entretanto o referido diploma não fazia alusão à condenação anterior, cabendo à doutrina da época estabelecer os parâmetros a serem seguidos.

Com o advento da República e conseqüentemente a produção do Código Penal de 1890, houve uma mudança significativa no tocante à reincidência; a inclusão da necessidade do trânsito em julgado da sentença, conforme se observa no art. 40, que dispunha:

"a reincidência verifica-se quando o criminoso, depois de passada em julgado a sentença condenatória, comete outro crime da mesma natureza e como tal entende-se, para os efeitos da lei penal, o que consiste na violação do mesmo artigo".

Tal qual o Código Criminal do Império, o primeiro ordenamento penal da era republicana, estabelecia que a reincidência para os efeitos de agravamento da pena se referia somente quando o réu incorresse em uma violação do mesmo tipo penal, a chamada reincidência específica.

Com o Código Penal de 1940, deu-se uma abordagem mais ampla no tocante a reincidência conforme o disposto no art. art. 46, § 2º, em que os crimes da mesma natureza eram os "previstos no mesmo dispositivo legal, bem como os que, embora previstos em dispositivos diversos, apresentam, pelos fatos que os constituem ou por seus motivos determinantes, caracteres fundamentais comuns", nota-se aí a abordagem também da forma genérica de reincidência.

A partir de 1969, durante regime militar, houve inovações novamente, que extinguiram a reincidência especifica e posteriormente com a Lei 6.416/77, houve a inclusão do sistema de temporariedade , ou seja a necessidade de um lapso temporal de cinco anos entre a data do cumprimento ou extinção da pena anterior e nova infração penal, desta forma afastando de vez o sistema da perpetualidade, esse sistema, segundo Damásio de Jesus “não considera qualquer lapso temporal entre o termo a quo e a prática do novo crime” e ainda esse sistema admite que “quanto maior o período do tempo, mais firme se mostra a tendência criminosa do agente”.

Com a reforma do Código Penal, através da Lei nº 7.209, de 11 de julho de 1984, é que se deu a redação atual no tocante ao instituto da reincidência.

3. A REINCIDÊNCIA NO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO

A fundamentação da reincidência está no Código Penal Brasileiro que estabelece a reincidência em seu art. 63, da seguinte maneira: "Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior”.

Esta forma de reincidência adotada atualmente pelo nosso ordenamento é doutrinariamente chamada de reincidência ficta, ou seja, a mesma ocorre quando o sujeito comete um novo crime após haver transitado em julgado uma sentença que o tenha condenado por delito anterior, diferente da reincidência real, que se dá quando o sujeito pratica nova infração após cumprir total ou parcialmente a pena importa em face do crime anterior, conforme nos ensina o mestre Damásio E. de Jesus (2003, p 565).

Entre os efeitos previstos no Código Penal podemos citar, além do agravamento da pena (art 61, I), o impedimento à concessão da suspensão condicional da execução da pena (art. 67), aumenta o prazo do cumprimento da pena para a obtenção do livramento condicional (art 83, II), aumenta o prazo da pretensão executória (art. 110, caput), interrompe a prescrição (art 117, VI), impede algumas causas de diminuição de pena (arts. 155, § 1 º, 170 e 171, § 1º), além de constituir uma circunstância preponderante quando em concurso de agravantes (art. 67, caput).

Há de se salientar que para gerar seus efeitos, a reincidência ou o novo ato delituoso, deve ocorrer dentro um período não superior a cinco anos entre a sentença condenatória transitada em julgado da infração anterior, conforme dispõe os art. 64, I do Código Penal:

“Não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a 5 (cinco) anos, computado o período de prova da suspensão ou do livramento condicional, se não ocorrer revogação;”

4. NATUREZA JURÍDICA E FUNDAMENTAÇÃO

Ao longo dos tempos, os doutrinadores defensores do instituto da reincidência como agravante da pena, de diversas maneiras tentaram fundamentar teoricamente seus posicionamentos, mas nenhum o fez de modo a de não violar o principio do non bis in idem.

Talvez a teoria de uso mais corrente é a que aquela fundamentada no fato que o agente ao cometer um novo ilícito penal demonstra uma maior periculosidade, mas conforme bem discorreram sobre esse argumento, Zaffaroni e Pierangelli, argumentando que os conceitos de pessoa e periculosidade não se compaginam, pois, "se por periculosidade se entende uma maior possibilidade de cometer um delito, de modo algum pode se afirmar isso na reincidência". Ou seja:

"Nada faz presumir ser mais provável que venha a praticar um delito de emissão de cheque sem provisão de fundos, quem antes causou um homicídio culposo com seu veículo, do que aquele que nada fez até então".

Também nada indica ser mais provável que uma pessoa que foi intimada da sua condenação transitada em julgado seja mais predisposta a cometer um crime do que outra que ainda não o foi.

Para justificar a reincidência sob estes fundamentos, seus defensores criaram a figura da chamada reincidência presumida, o que é uma incoerência jurídica, pois, uma vez que a periculosidade é valorável e permite uma apreciação fática, não pode ser presumida jure et de jure, ou seja, sem admitir prova em contrário, pois, desse modo, estabelecer-se-ia um fato quando o fato não existe, o que não se pode ser denominado presunção, mas sim ficção.

Ainda na esteira da doutrina dos doutrinadores Zaffaroni e Pierangelli, há aqueles defendem a agravação da pena pela reincidência é justificável pelo fato de a pena imposta ao primeiro delito não ter sido suficiente para evitar o cometimento de outros. Esse argumento também não se sustenta, pois é sabido que a pena, via de regra, é motivadora e não contramotivadora do cometimento de novos delitos. Em outras palavras, a pena tem papel fundamenta na admissão pelo indivíduo do seu caráter de infrator.

Juarez Cirino dos Santos vai mais longe afirmando que se o agente comete novo delito após o cumprimento de pena por crime anterior, passando pelo sistema prisional, o legislador deveria considerar esta situação como uma circunstância atenuante, tendo em vista o processo de deformação e embrutecimento pessoal do sistema carcerário, resultado da atuação deficiente e predatória do Estado sobre pessoas criminalizadas.

Há ainda a teoria que Armin Kaufmann desenvolveu, na qual o agente ao cometer o segundo delito, violaria duas normas diferentes: a do segundo tipo e a que proíbe a prática de um segundo delito, dessa forma cada tipo corresponderiam duas normas: uma específica, destinada a tutelar o bem jurídico a que se refere, e outra, genérica, referente á proibição de um futuro delito. Zaffaroni e Pierangelli refutam tal teoria afirmando que a mesma é insustentável, visto que o segundo bem jurídico tutelado seria o sentimento de segurança jurídica, que não é um bem jurídico independente, mas sim o somatório de todos os bens jurídicos a serem tutelados.

5 . O PRINCÍPIO DO NON BIS IN IDEM

Bis In Idem é incidência de dois atos sobre uma mesma coisa, no caso em específico da qual estamos tratando, significa aplicar duas penalidades pelo mesmo fato a uma única pessoa, portanto non bis in idem, é a não aplicação do bis in idem.

O princípio do Non Bis In Idem, não é explicitamente previsto na nossa Carta Magna, entretanto é conceito subjetivo presente em qualquer ordenamento jurídico de um Estado Democrático de Direito baseado no respeito à dignidade da pessoa humana e presente na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o chamado Pacto de San José da Costa Rica, da qual o Brasil é signatário, em seu artigo 8.º, inciso IV estabelece: "O acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos". Desta forma analogamente concluímos que uma vez julgado, sendo condenado, o réu não poderá ter no futuro, recaído sobre si as mesmas acusações, ou ainda, diante de um julgamento por outro crime, ter sua pena aumentada com fundamento em um crime pela qual ele já cumpriu sua pena.

6. A ANTICONSTITUCIONALIDADE DA APLICAÇÃO DA REINCIDÊNCIA COMO AGRAVANTE DE PENA.

Sob a alegação que a Constituição Federal de 1988 recepcionou o Código Penal Brasileiro, que é uma lei infraconstitucional, conferindo a ele a legalidade questionada, o defensores da aplicação do instituto da reincidência como agravante de pena, se esquecem que a lei absorvida deveria se adequar à Constituição Federal, no sentido de evitar o desrespeito aos valores e princípios que constituem o ordenamento geral, pois do contrário lhes falta validade e legitimidade jurídica, conforme a teoria da hierarquia das normas, criada por Hans Kelsen.

Não se pode também fazer vistas grossas ao art. 5º, XXXVI da Constituição Federal, que preconiza que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, e também aos princípios da legalidade e da proporcionalidade da pena, haja vista que cada infração possui em seu tipo a pena que lhe corresponde, e o fato de se exarcebar uma pena levando-se em consideração o agente ser reincidente é uma clara violação desses princípios.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, fica claro e evidente que a agravação da pena, levado em consideração ser o réu reincidente, disposta no Art. 61, I do Código Penal, é mais um entre tantos paradoxos existente no nosso ordenamento jurídico; que tal instituto é uma explicita violação do princípio do Non Bis in Idem e que não se adequa a um Estado Garantidor, a um Estado Democrático de Direito, portanto sem nenhum motivo jurídico sustentável que justifique sua presença ainda nos dias atuais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BECCARIA, Cezare; Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Martin Claret, 2004

JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal – Parte Geral. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2003

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 5 ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

SANTOS, Juarez Cirino dos; Direito Penal: Parte Geral. 21. ed, Curitiba: Lúmen Júris, 2006

WEINMANN, Amadeu de Almeida; Princípios de Direito Penal. Rio de Janeiro, Editora Rio 2004.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. 7. ed. São Paulo: RT, 2007.

CONVENÇÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, disponível em : http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm