CÉLULAS-TRONCO E DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA (Palestra)
É uma grande satisfação encontrar-me entre vocês. Gente entusiasmada, de sonho aceso e visão de futuro!
Uma boa noite a todos!
A minha área de conhecimento é jurídica. A mesma de vocês!
Não sou a pessoa indicada para lhes falar com propriedade sobre células-tronco, mas vou tentar.
Aristóteles Onassis dizia que se a gente não pensar que quer sempre mais, fatalmente terá sempre menos. O homem só fracassa quando desiste de tentar. Todos os dias me levanto para vencer!
E essa é a minha oração, o meu objetivo, alicerçado num querer forte, valente e decidido.
Antes, porém, quero falar um pouquinho sobre a Vida, sobre a força do otimismo, o encantamento da partilha, a busca da felicidade...
O que é a vida, afinal?
A vida é um estágio, e o passaporte, com certeza, chama-se AMOR. Ela é feita de momentos bons e ruins, tristes e alegres, e, muito mais de renhidas batalhas para lapidar o nosso temperamento, para nos fazer crescer, conforme o nosso esforço para isso.
Nesse estágio, há também o estrelato que satisfaz o ego, eleva a autoestima, acalenta o orgulho, a vaidade, a prepotência... Mas é efêmero, o que vale dizer que os mesmos degraus que nos elevam aos píncaros conduzem-nos aos calabouços.
Ora, podemos dar as cartas, dar as ordens, ora, recebê-las e cumpri-las humildemente.
"A vida não dá, nem empresta;
Não se comove, nem se apieda.
Tudo quanto ela faz é
RETRIBUIR E TRANSFERIR...
Tudo aquilo que nós lhe oferecemos”.
Albert Einstein
Os valores morais, a dignidade, o autoconhecimento são a cartilha para o enfrentamento correto desse exercício chamado VIDA.
Temos que agir como cidadãos do mundo, co-participes na construção de um futuro melhor, pois pensar na coletividade é a melhor maneira de pensar em nós mesmos.
Não vivemos sozinhos. Temos coadjuvantes, auxiliares e auxiliados.
E vocês, que em breve se tornarão profissionais do Direito, para a manutenção da ordem e da paz social, dirimindo os conflitos que a vida oferece, deverão ser ilibados na conduta e fiéis ao ordenamento jurídico nos mais diversificados cargos que exercerão.
Com todas essas ferramentas para um bom trabalho, muitas vezes, ficamos na ociosidade, reclamando de tudo, pintando de cinza o que poderia ser um arco-íris. Determinação é o comando!
Carrega-se o peso das dores. Todos nós as temos.
O importante é que saibamos transformar os tombos em belos passos de dança.
Tudo tem o seu lado positivo. Se não houvesse trevas, não saberíamos valorizar a luz.
Se eu não tivesse perdido os passos, não saberia valorizar o caminhar e tentar executá-lo de outras formas: com a mente, com o coração, com o olhar... Não é após a guerra que surgem os grandes inventos?
Se temos apenas um limão, que tal uma gostosa limonada?
De certa forma, somos arquitetos do nosso destino. A altivez do espírito é medida pela coragem perante a vida.
Precisamos gostar de nós mesmos, admirar o que há de bom em nós. A coragem, o determinismo, a assiduidade, a disciplina... o sorriso farto, o discurso entusiasmado, benfazejo, a facilidade para dar e receber afeto...
Se a gente não se ama, como pode amar aos outros ou ser amado?
O pensamento move a vida! Somos o que pensamos.
Pensem nisso!
Aproveito do ensejo para falar um pouquinho sobre mim.
Eu sou a Genaura Tormin. Estou paraplégica há 27 anos. Tenho 63 anos de idade e somente 20 de cabeça, alicerçados pelo entusiasmo e pelo encantamento de viver.
Recebi uma dura sentença por crime que não cometi nesta vida. Mataram minhas pernas em mim. Mesmo assim, ainda corro atrás da vida para que ela não corra atrás de mim. Esforço-me para ser a campeã dos meus aprendizados. O meu coração é vivo e o sorriso aflora sempre até os cantos das orelhas. Eu estou viva!
Às vezes, quando estamos nos píncaros do sucesso, somos atirados inexoravelmente ao caos. É chegada a hora de uma marcante mudança de vida.
Foi o que aconteceu comigo!
Numa manhã de março acordei paraplégica, vítima de uma virose ou de um erro médico. Na realidade, um turbilhão de dificuldades nunca imaginadas. Uma jovem mulher reduzida a cabeça, seios e braços. O resto, morbidamente alheio ao meu comando: dormente como se não fosse meu.
Perdi o meu ir-e-vir cheio de graça, de trejeitos. Poderia ter sido uma bailarina na vida, mas tive a vida para bailar, gingar até encontrar os meus próprios caminhos, lapidar os meus cantos, aparar as arestas...
Lógico que envidei muitos esforços para reverter o descalabro da situação. Sou guerreira de muitas batalhas para não ser escória de uma sociedade que, geralmente, só aceita os fortes, perfeitos e vencedores.
Consciente de que seria irreversivelmente uma paraplégica, preparei-me e classifiquei-me muito bem para o cargo de Delegado de Polícia de Goiás, e o exerci com presteza, durante 13 anos, ocasião em que, também por concurso público, ingressei no Judiciário Federal, atuando, hoje, na Diretoria de Serviço Recursos e Distribuição do Tribunal Regional do Trabalho do meu Estado, da qual fui, também, subdiretora.
Quem falou que deficiente físico não pode trabalhar? Ando de cadeira de rodas e trabalho. Conquistei até o título de “Servidor-padrão”.
Deficiência é uma parte natural da experiência humana. Mesmo que nos empreste um visual diferente e algumas dificuldades locomotoras, a mente sã cria soluções para tudo. O trabalho devolve-nos o sentimento de utilidade e supera a defasagem do caminhar.
Baseada no desafio, integro-me muito bem aos grupos de trabalho e luto por tratamento igualitário, mesmo por que, forjada a ferro e fogo, tenho por lema a coragem, e jamais me subjugo às subserviências em busca de protecionismo, benesse, sob o álibi da deficiência. Pelo contrário, preocupo-me em mostrar competência, conquistando respeito pelos meus próprios méritos.
Sinto-me adaptada à vida! Sei que ela se adaptou a mim também.
De minha catarse, sou mestra. Já entendo que a cadeira de rodas é uma dádiva. Devoto-lhe gratidão. É por meio dela que ando, lido, participo da vida lá fora e nivelo-me aos demais.
Sartre dizia que o importante não é o que fizeram do homem, mas o que ele faz do que fizeram dele. Assim estou tentando exercitar o aprendizado.
Ouso dizer que não se deve dar ao homem o que ele pode conseguir com fruto do seu trabalho, sob pena de roubar-lhe a dignidade.
Por isso uso o desafio, a criatividade e a vontade de vencer para empunhar sempre essa dignidade que herdei dos meus antepassados.
Tenho uma família que me ama e não me castra as oportunidades. Pelo contrário, é um nascedouro de forças, incentivos, que me faz caminhar mesmo sem o uso das pernas. E isso é de importância vital. Talvez seja o segredo de todo o sucesso que tenho conquistado.
Sou escritora. Escrevi PÁSSARO SEM ASAS, já em 6ª edição. É um livro autobiográfico, corajoso, em que me desnudo, viro-me do avesso e conto ao leitor toda a minha trajetória depois dessa nova condição de ‘rodante’: avanços, derrotas, conquistas, aprendizados, até as verdades mais recônditas e inconfessáveis.
Ainda três outros livros: APENAS UMA FLOR, NESGAS DE SAUDADE e BORBOLETEANDO. Neles, enveredo pelos veios da poesia para acalentar instantes, colorir a vida, fabricar fantasias e sentir-me inteira outra vez.
E a vida continua. Ainda sou perseguidora de sonhos. As portas me fascinam. A vida ainda acontece inteira no meu coração. Acredito no amanhecer, no poder recomeçar a cada dia. Sou a síntese dos meus desejos, compilação de inércias estáticas, mas, ainda, uma inesgotável fonte de encantamento pelos amores, pelo belo, pela arte de fazer versos.
A gente não pode viver de passados. A ordem é reinventar a vida, fazer consertos, aplicar remendos e seguir em frente. É ser otimista!
Hoje é o momento de agir, de semear! O tempo se esvai como num passo de mágica! É preciso aprender apenas a ser contente. E foi o que fiz!
O tempo me roubou os passos, mas me legou muita segurança, muitas experiências, muitos valores aprendidos com a dor.
Sinto-me uma nova mulher e gosto-me assim. Embora o meu caminhar tenha sido substituído pelas rodas de uma cadeira, não me sinto paraplégica.
Cumpro e assumo o direito de ser MULHER em toda a plenitude.
Quem sabe poderia estar andando de muletas, ou até sem elas, se não fosse o desinteresse e a insensibilidade dos profissionais que me assistiram naquela época.
Não atribuo a fatalidade a ninguém. Nada agora me devolverá as pernas. A ordem é aceitar-me como estou para viver melhor. Luta é a minha palavra de comando! E o campo de batalha é o meu “habitat”.
Sei que as pesquisas científicas avançam. Estamos diante de uma revolução médico-tecnológica, sem precedentes, desencadeadora de processos curativos extraordinários nas áreas neurológica e genética. É o marco deste milênio, que enfoca o uso da clonagem de embriões, principalmente nas pesquisas das chamadas células-tronco, tentando buscar a superação dos problemas do ser humano.
A experiência com célula-tronco no Brasil deixa o campo da teoria e passa a ser implementada na prática, após experimentos positivos em laboratório, tentando substituir a célula morta por outro tecido saudável.
“Células-tronco são células progenitoras(que geram outras), capazes de originar qualquer tipo de célula no organismo, dependendo do meio em que se encontra.
Até recentemente, encontrada apenas em embriões, trata-se, na verdade, da mais importante célula do corpo humano, já que possui a capacidade de se transformar em qualquer tecido ou órgãos perfeitos.
Simplificando, pegue uma célula-tronco e implante-a num coração e ela se transformará em célula de coração. Coloque-a num fígado e se transformará em célula de fígado; num cérebro, e ela se tornará numa célula cerebral.
Essas células-tronco, denominadas autólogas ou adultas, são coletadas do sangue da pessoa, expandidas em cultura laboratorial e injetadas perto do local da lesão, com o objetivo de que se transformem na célula faltante”. Por isso não há implicações éticas envolvendo a experiência. O estudo não sofre influência da Lei de Biossegurança.
Não há dúvidas de que as suas potencialidades são enormes, e pode-se esperar um novo tipo de Medicina que resultará em saúde e longevidade. Um verdadeiro tesouro!
O mundo inteiro está engajado nessas pesquisas. No Brasil, essas células-tronco têm apresentado sucesso nas áreas da cardiologia, neurologia, ortopedia, endocrinologia e outras mais.
Entretanto, as células-tronco mais importantes são as embrionárias que possuem o atributo da pluripotência, o que quer dizer que são capazes de originar qualquer tipo de célula do organismo, exceto a célula da placenta.
São as únicas que podem dar origem a qualquer um dos 216 tipos de tecidos que formam o corpo humano.
Somos uma nação organizada, tutelada! Todo poder emana do povo e em seu nome será exercido, diz a nossa Lei Maior.
Assim, a questão foi disciplinada na lei de Biossegurança, art. 5º
O art. 5º da Lei de Biossegurança, de 2005 (Lei 11.105, de 24.03.2005),
Artigo 5º - É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:
I – sejam embriões inviáveis; ou
II – sejam embriões congelados há três (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem três (três) anos, contados a partir da data de congelamento.
§ 1º Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.
§ 2º Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa.
§ 3º É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no artigo 15 da Lei no 9.434, de quatro de fevereiro de 1997.
Contra esse artigo, foi proposta a Ação Direta de Inconstitucionalidade, pelo então procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, que defendeu que o embrião pode ser considerado uma vida humana.
A polêmica quanto às células-tronco embrionárias é que a maioria das técnicas implementadas implica a destruição do embrião.
A questão dividiu opiniões entre os diferentes setores da sociedade. A igreja disse que a Constituição garante a inviolabilidade do direito à vida e a dignidade da pessoa, e parte do princípio de que esses direitos são extensivos ao embrião, porque a vida começaria na concepção, por meio de uma célula chamada zigoto, que no 2º dia se biparte, originando a princípio da VIDA.
A defesa se alicerçou no fato de que:
- 90% dos embriões gerados em clínicas de fertilização e que são inseridos em um útero, nas melhores condições, não geram vida.
- Embriões de má qualidade, que não têm potencial de gerar uma vida, mantêm a capacidade de gerar linhagens de células-tronco embrionárias e, portanto, de gerar tecidos.
- A certeza de que células-tronco embrionárias humanas podem produzir células e órgãos que são geneticamente idênticos ao do paciente, ampliaria a lista de pacientes elegíveis para tal terapia.
- É ético deixar um paciente afetado por uma doença letal morrer para preservar um embrião cujo destino é o lixo, daí a três anos?
- E conclui: Ao utilizar células-tronco embrionárias para regenerar tecidos de um paciente não estaríamos criando uma vida?
E finalmente no dia 29 de maio de 2008, foi votado constitucional o artigo 5º da Lei de Biossegurança, questionado pela ADIN 3510.
Na Índia esses estudos científicos estão adiantados, e há muita esperança na cura para doenças degenerativas como mal de Parkinson, diabetes e de portadores de deficiência física.
Há milênios, Sófocles em Antígona disse: na natureza há remédio para todos os males.
Os mestres tibetanos também costumavam dizer: Cura o teu corpo com o teu próprio corpo!
São 28 países que já realizam pesquisas com células-tronco, entre eles Inglaterra, Austrália, Canadá, China, Japão, Holanda, África do Sul, Alemanha e outros países da Europa.
O benefício alcançará o grande número de pessoas com deficiência física. Na América Latina totaliza 85 milhões, dos quais 24,5 milhões no Brasil, sendo que 82% vivem abaixo da linha da pobreza.
Imaginemos um mundo em que a paralisia não exista e que um simples enxerto de células possa devolver os movimentos a quem sofreu lesão medular em função de acidente automobilístico, ferimento por tiro ou queda!
Ou imaginemos, ainda, um mundo sem atrofiados musculares ou sem a incidência da doença de Alzheimer ou do Mal de Parkinson... Sem doentes do fígado ou do coração...
Esse é um mundo que promete passar do imaginário à realidade em poucos anos no Brasil - disse a Dr.ª Erika Barros
Entretanto o deficiente tem que manter a cabeça erguida, continuar fazendo fisioterapia para que as articulações mantenham-se flexíveis e a musculatura não se atrofie. A receita é cuidar-se, manter-se ativo, com uma grande dose de autoestima para ser sempre um candidato apto a receber o tratamento celular que, com certeza, brevemente baterá à porta.
Durante séculos, a existência da condição de “deficiência” era considerada um problema da pessoa, de sua família ou mesmo da esfera religiosa. Gradualmente, a sociedade passou a adotar uma outra postura, baseada em valores filantrópicos ou assistencialistas.
No entanto, cresce a consciência de que a inclusão destas pessoas é um direito, que vem sendo árdua e cotidianamente conquistado. Os avanços têm sido mais frequentes que os retrocessos.
Vivemos num dos maiores Países! O terceiro em extensão territorial. É um País rico, detentor do maior ecossistema, destacando-se em todo o cenário mundial por suas matas, flora e fauna, além das riquezas minerais que o classifica entre os de maiores economias do planeta. Somos, hoje, a terceira maior democracia do mundo.
É um País sem guerras, sem vulcões, sem terremotos. Entretanto ainda se situa entre os de terceiro mundo.
Como todo País em desenvolvimento, tem os seus problemas: com a educação, com a segurança, com a saúde, e muitos outros. Entre esses, está a situação das pessoas com deficiência, cuja noção está ligada ao problema geral da exclusão.
Como toda minoria, essas pessoas são relegadas a segundo plano, tendo em vista não existir consciência popular valorativa sobre os seus potenciais, como se a cabeça estivesse na disfunção de um membro locomotor ou no atrofiamento de um braço.
Ter um defeito físico, andar numa cadeira de rodas, geralmente significa ser inválido, estar cerceado do sagrado direito de sustentar-se com o fruto do próprio trabalho. É a chamada rotulagem despreziva, que tanto mal nos faz. Os órgãos estatais fecham as portas. E para qualificar-se nem se fala, pois as barreiras arquitetônicas das escolas relegam o aluno, logo no primeiro dia de aula, bem como o mobiliário das cidades e o transporte coletivo, que não são planejados para esses “imperfeitos seres”.
A discriminação, também, por parte da própria família, que tem por tradição esconder os seus deficientes, é a mais crucial, numa mostra, sem dúvida, de preconceito e desumanidade. É o retrato de um País que não encara os seus problemas, não sabe transformá-los, aceitando, apenas, os fortes, perfeitos e vencedores.
Graças a Deus, não estamos vivendo nos dias do médico alemão Josef Mengele, o “Anjo da Morte”, que sob o comando de Adolf Hitler exterminava as pessoas de corpos imperfeitos, tentando estabelecer a pureza da raça ariana. Era a teoria em que as vidas humanas sem valor vital deveriam ser eliminadas.
Quantos gênios existiram e existem em corpos imperfeitos! O inglês Stephen Hawking, com esclerose lateral amiotrófica, que lhe paralisou os movimentos, emudeceu-lhe as cordas vocais, é um testemunho perfeito, pois, mesmo assim, continua produtivo e é considerado o mais brilhante físico teórico desde Albert Einstein. “Eu poderia viver recluso numa casca de noz e me sentiria o Rei do Universo”.
Exemplo digno de nota é o de Beethoven, o maior gênio da música de todos os tempos, que mesmo depois de ficar surdo em plena atividade musical, continuou compondo, produzindo sua obra mais importante: A nona sinfonia. “O que está em meu coração precisa sair à superfície. Por isso preciso compor” — dizia ele.
Outro exemplo, aqui bem perto de nós, é o de Cláudio Drewes Siqueira, que ficou tetraplégico por causa de um mergulho em águas rasas, quando era adolescente, e mesmo assim, por méritos próprios, mediante acirrados concursos públicos, ascendeu aos cargos de Procurador do Estado de Goiás e em seguida ao de Procurador da República, um dos mais elevados cargos da República Federativa do Brasil. Por meio de uma adaptação presa a um capacete, o competente Procurador folheia livros e processos, além de digitar suas próprias peças, elogiadas pelo excelente conteúdo jurídico. É um exemplo e a certeza de que o querer é poder. É preciso somente que os sonhos estejam acesos.
A sociedade não sabe conviver com essas pessoas. Ainda não conseguiu entender que o maior potencial humano é a mente e, se essa está ilesa, a vida é possível e o trabalho é digno dentro da capacitação.
A informação e o espírito de solidariedade ainda são muito pequenos entre nós. Nunca paramos para pensar como é o dia-a-dia de uma pessoa que tem por pernas quatro rodas de uma cadeira.
Estamos sempre ocupados com os nossos próprios problemas, esquecendo-nos de que as fatalidades não avisam nem escolhem status. Quando deparamos com alguém de muletas ou cadeira de rodas, a idéia é de que está aposentado ou aposentando, embora sirvam as pernas, apenas, para cumprir a simples missão de andar. Se a pessoa for do sexo feminino, principalmente, presume-se logo que jamais encontrará companheiro. Se a seqüela for recente, fatalmente será abandonada por ele.
É como se, de repente, o ser humano se transformasse num objeto sem valor.
É raro vermos uma pessoa com deficiência ocupando um cargo público de comando. E quando isso acontece, ela terá de ser imbatível. Caso contrário, os pequenos e naturais deslizes, policialescamente vigiados, serão creditados à sua deficiência física, com o mero objetivo de torná-la inválida. Se a fatalidade ocorre durante o exercício do cargo, a aposentadoria é compulsória, sem nenhuma chance de readaptação dentro do órgão. Nem sequer se pensa numa transferência para outro cargo mais compatível com a limitação física adquirida. Simplesmente, descarta-se. Afinal estamos na era dos descartáveis. É um marco da personalidade brasileira e do preconceito arraigado da maioria dos governantes, tão desinformados e mal preparados, que não sabem buscar, transformar, aproveitar, mesmo tanto tempo depois da teoria de Lavoisier em que: “... nada se perde, tudo se transforma”.
Quando uma parte do corpo se fragiliza, as outras se encarregam do trabalho, provando que não há problema sem solução.
A mídia, como formadora de opiniões, é a grande responsável por essa imagem tão negativa da pessoa com deficiência. Fulcrada em desinformações, as novelas banem até a sua sexualidade, forçando-a, mesmo, a tornar-se um cadáver vivo. Estar deficiente fisicamente, não significa estar assexuada. Sempre há uma saída, tendo em vista a lei da compensação e a perfeição da natureza.
É costume, também, mostrar a penúria, a fatalidade, a invalidez da pessoa com deficiência, e nunca o seu trabalho digno, a sua competência, o seu esforço para vencer barreiras. Vê-se sempre o invólucro e nunca o conteúdo. É pena que não entendam que, do mínimo indispensável, é possível construir uma obra de arte. “O essencial é mesmo invisível aos olhos. É preciso buscar com o coração”.
Apesar de não sermos detentores dos nossos movimentos físicos, não precisamos da caridade pública e não devemos ser excluídos do sistema socioeconômico e político do País.
Precisamos ser reconhecidos como força de trabalho, com o direito de competirmos e mostrar que somos capazes, quebrando tabus, preconceitos e discriminações. Somos desigualdades, mas tem que haver respeito a essas diferenças pessoais, além de nos ser resguardado o sagrado direito de legar a nossa participação de trabalho.
A Constituição Federal de 1988, que aprovou as mais amplas garantias públicas da história, concedeu-nos direitos de cidadania como participantes da vida, da seguinte forma:
— Art. 7º, XXXI — proíbe quaisquer discriminações no tocante a salários e critérios de admissão do trabalhador com deficiência.
— Art. 23, II — determina competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para cuidar da saúde e assistência públicas, da proteção e garantia das pessoas com deficiência. (O Decreto 914, de 6.9.93, instituiu a Política Nacional para a Integração da Pessoa com Deficiência).
— Art. 24, XIV — fala da proteção e integração social; (Lei 7.853/89 dispõe sobre apoio ao deficiente, institui a tutela jurisdicional, cria a CORDE, disciplina a atuação do Ministério Público, define crimes e dá outras providências).
— Art. 37, VIII (e Lei 8.112/90, art. 5º parág. 2º) — fala sobre os cargos e empregos públicos. Reconhece e abre mercado de trabalho aos deficientes físicos, destinando-lhes até 20% das vagas dos concursos públicos. Contudo, nos concursos em que são disputadas poucas vagas, somos preteridos, uma vez que os órgãos estatais, em suas leis regulamentares, não nos têm destinado mais do que 3 a 5% dessas vagas. Somos preteridos, também, porque se após o concurso surgirem mais vagas, nem sequer tivemos a oportunidade de concorrer, sem se falar de Estados e Municípios que até hoje não procederam à edição de suas leis.
— Art. 93, da Lei n. 8.213/91 (Decreto n. 3.298/99) — destina 2 a 5% das vagas em empresas, com mais de 100 empregados, a deficientes. Significa uma Reserva Legal. É um comportamento ético, porque não dizer, uma responsabilidade em busca de uma relação mais justa com a sociedade, diminuindo as desigualdades e aumentando o exercício da cidadania.
À medida que a sociedade provê meios para que o deficiente possa atuar produtivamente no sistema capitalista em que vivemos, estará realizando um investimento social, uma vez que o deficiente deixará de ser um consumidor de políticas de previdência e assistência social para capacitar-se como produtor de receitas públicas, mediante o recolhimento de impostos sobre sua atividade profissional.
Não queremos paternalismo, nem diferenciação, queremos apenas respeito e oportunidades para mostrar a nossa capacidade de conquista, de trabalho, embasados na célebre frase de Rui Barbosa: “... tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que eles se desigualam”.
Referindo-me à política desenvolvida nos Estados Unidos sobre a reabilitação, acessibilidade arquitetônica e o trabalho do deficiente, gostaria de dizer que o retorno é de sete para cada dólar aplicado nesse sentido, pois, tornando-o reabilitado, independente e produtivo, não só ele estará liberado para o mercado de trabalho, mas também a pessoa que o assistia no ambiente doméstico.
Trabalho é saúde, é progresso. Cabeça vazia é sempre “oficina para o diabo”. E a ociosidade é um chamariz para as enfermidades mentais, redundando, muitas vezes, em depressão, suicídio e tristeza para a família e amigos.
— Art. 203, IV — garante a habilitação e reabilitação das pessoas com deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária.
— Art. 203, V (e Lei 8.742/93, art. 2º, V, de 7.12.93 — Lei Orgânica da Assistência Social) — garante um salário mínimo mensal ao deficiente carente que não possa manter-se, bem como ao idoso.
— Art. 227, parág. 2º e art. 244 — defendem o acesso adequado a logradouros e edifícios públicos, fabricação de veículos de transporte coletivo e adaptação dos existentes. Medida muito importante, pois precisamos conviver com as pessoas, executar o nosso caminhar pelas ruas da cidade, mostrar que existimos. Assim estaremos participando e ostensivamente reivindicando o nosso espaço, pois, primeiro o fato social, depois as normas. Sabe-se que as casas de diversões públicas, com capacidade para mais de 100 pessoas, deverão ter acesso e banheiros adaptados para deficientes, bem como restaurantes e hotéis.
Até na área de saúde, falta acessibilidade. Os banheiros não nos permitem acesso: as portas são estreitas, acontecendo por vezes de perdermos consultas por termos de retornar a casa para usar o banheiro, sem se falar do desconhecimento da Lei n. 10.048 de 8.11.2000, que nos garante atendimento prioritário, o que não é uma benesse, mas o cumprimento de um dever legal.
— Lei n. 10.098/2000 — estabelece normas gerais e critérios básicos para promoção da acessibilidade das pessoas com deficiência. Na verdade, trata da feitura e execução de projeto universal, uma concepção moderna de arquitetura urbanística e ambiental voltada ao bem de todos, pois a sociedade é heterogênea. E o acréscimo para a execução de obras projetadas nesses parâmetros é menor do que 2%. Gasta-se tanto com supérfluos, por que não investir na qualidade de vida da nação? O que falta mesmo são conhecimento, vontade e visão política das condições existenciais da nação.
— Lei n. 8.899/94 — concede passe livre interestadual ao deficiente carente que, por motivo justificável, necessite deslocar-se para outro Estado.
Ao deficiente físico é, também, facultado adquirir veículo adaptado às suas condições físicas com isenção de IPI (lei 8.989/95), conseqüentemente ICMS e IPVA. Partindo do princípio de que o veículo, além de instrumento de trabalho é o substituto de nossas pernas, torna-se de muita importância essa isenção fiscal, pois nos permite a celeridade do caminhar, inserindo-nos com mais facilidade no mercado de trabalho e na convivência social.
— Lei 10.690, art. 1º, IV, de 16.06.2003 — facultou a aquisição de veículo, com isenção de IPI, às pessoas com deficiência visual, mental severa ou profunda, ou autistas, diretamente ou por intermédio de seu representante legal.
— Lei 7.713 de 22.12.1988, com redação dada pela lei 8.541 de 13.12.1992 — concede isenção de imposto de renda sobre proventos de aposentadoria motivada por paralisia irreversível e incapacitante. Mesmo que a paralisia aconteça depois da aposentadoria, a isenção é legal e deve ser requerida.
Sabemos que nem todos os artigos são auto-aplicáveis, necessitando de leis regulamentadoras (federais, estaduais e municipais) que morosamente se arrastam pela burocracia.
Mas já é um avanço que tem melhorado a qualidade de vida do deficiente físico, aumentando-lhe a autoestima e proporcionando-lhe o sustento com o próprio trabalho.
Ouso dizer que não se deve dar ao homem o que ele pode conseguir com o fruto do seu trabalho, sob pena de roubar-lhe a dignidade.
O trabalho remonta aos tempos do homo sapiens, das cavernas, por estar ligado à sobrevivência. E para nós significa dignidade, além de uma verdadeira terapia ocupacional que nos devolve o sentimento de utilidade. É a oportunidade justa para provar que poderemos ser, não apenas força produtiva, mas força transformadora, aumentando a esperança num País justo e progressista, diminuindo-lhe os problemas sociais, além de servirmos também de motivação e incentivo aos muitos “paralíticos andantes”, que se alicerçam numa ociosidade crônica para nada fazerem ou mal fazerem.
— Ao art. 98 da Lei n. 8.112/90 — foi acrescentado, por força da Lei n. 9.527, de 10.12.97, o parág. 2º, concedendo horário especial ao servidor com deficiência, quando comprovada a necessidade por junta médica oficial, independentemente de compensação de horário. Portanto, mesmo com uma grande limitação, tendo o querer por escudo, é possível fazer do trabalho uma terapia e uma razão a mais para viver e deixar para o porvir as pegadas de esforço, obstinação e coragem.
Com a abertura do mercado de trabalho, por meio da Carta Magna, chegou a hora de provar a que viemos. Chegou a hora de mostrarmos à sociedade que o mais perfeito caminhar executa-se com a mente, além do famoso “querer é poder”. Chegou a hora de darmos o exemplo. A deficiência é apenas uma referência, pois o que importa mesmo são a disposição e a coragem que nos alicerçam, tornando-nos bons profissionais. O resto dá-se um jeito com os acessórios que a tecnologia nos empresta de acordo com a crescente escada do progresso, além do entusiasmo de viver.
E eu volto a repetir: “Se a gente não pensar que quer sempre mais, fatalmente terá sempre menos. O homem só fracassa quando desiste de tentar. Todos os dias me levanto para vencer” — disse Aristóteles Onassis.
Não obstante os muitos cerceamentos que sofremos na pele, impostos pela deficiência, temos que rebatê-los com uma só ação: CORAGEM! Coragem de ir à luta e vencer, deixando sempre à mostra a competência, o preparo técnico científico peculiar ao desempenho da função que conquistarmos, nunca nos escudando sob o pretexto da deficiência para auferir vantagens ou buscar protecionismo. Não há discriminação que resista à competência.
Por isso sou contente por viver num corpo com uma deficiência física. Sou contente por ter voz e oportunidade de acalentar e admoestar. Sou contente por tentar ajudar a construir um mundo melhor, formando mentalidades, fazendo denúncias, cobranças, exigindo respeito a quem, num dia qualquer da vida, vê romper-se a “farda de carne” para dar início a uma vida de sacrifícios e desafios diários.
Agora resta-nos exigir o cumprimento das leis na satisfação dos direitos. Necessário se faz um trabalho conscientizador a partir do próprio deficiente, da sua família (que deve se engajar) até a sociedade e governantes tão desinformados sobre os potenciais humanos. É preciso que a sociedade troque os sentimentos de paternalismo, compaixão ou desprezo, por outros valorativos, respeitosos e reconhecedores, devolvendo ao deficiente físico a cidadania, o direito de participar desta caminhada que chamamos de VIDA.
Não obstante, o preconceito e a aceitação constituam um apartheid silencioso, já se vislumbra um porvir mais alvissareiro.
Esperando ter contribuído de alguma forma para o aprendizado de vocês, termino dizendo que a acessibilidade é o pré-requisito básico para que o deficiente viva com dignidade.
Sem pátria acessível e inclusiva, a democracia para as pessoas com deficiência de todos os países, é impossível.
Obrigada!
Genaura Tormin
Palestra proferida no auditório da Faculdade Padrão,
em Goiânia, aos 26 de maio de 2009.