Consideraçõessobre ato ilícito - parte I
Considerações sobre ato ilícito
“Viver honestamente, não prejudicar a outrem, atribuir-se o que é seu”.
Gisele Leite
O conceito de ilícito é de extrema generalidade e complexidade no plano jurídico até mesmo porque é atuante em todas as suas ramificações. Simplificando grosseiramente dizem que o ilícito é tudo aquilo que é contrário ao Direito, até porque se entende este como proteção do que é lícito.
Tal simplificação remonta às máximas romanas: “Honeste vivere, altere non laedere, suun cuique tribuere”, que significa: “Viver honestamente, não prejudicar a outrem, atribuir-se o que é seu”.
A summa divisão que se elabora quanto à ilicitude, distinguindo o que é ilícito civil e o que é ilícito penal é mais de cunho didático do que científico.Pode mesmo coincidir sobre um mesmo fato, é o caso, por exemplo, do motorista que faz uma conversão em local proibido e, provoca um acidente automobilístico com vítima fatal.
A diferença fundamental entre os ilícitos reside na aplicação do sistema sancionatório pois o direito penal pode afetar a liberdade da pessoa do infrator, como o direito de ir e vir, enquanto que o âmbito civil irá atingir sua esfera pessoal, sua subjetividade, mas preferencialmente o seu patrimônio.
O fato é que o comportamento contrário à norma tipifica uma ilicitude. Concluímos que o ilícito civil é transgressão do dever jurídico quer seja legal, quer seja negocial.
A definição do ato ilícito outrora contida no art. 159 do Código Civil de 1916 acarreta a obrigação de reparar o dano assim, em sua etiologia, o ato ilícito é, fonte de obrigação, embora sua conseqüência independa da vontade do agente, resulta de ação ou omissão sua.
Esclarece Caio Mário da Silva Pereira para haver a caracterização do ato ilícito deve ocorrer certos elementos: a) violação do direito ou dano causado a outrem.; b) ação ou omissão do agente.; c) culpa.
A ilicitude da conduta está no procedimento contrário a um dever preexistente (neminem laedere).Destaca o mestre português Luís A. Carvalho Fernandes apud Lotufo que tanto o direito civil como o direito penal referem-se muitas vezes à mesma matéria, embora sob justificativas diversas.
Na esfera criminal, os ilícitos podem ser definidos como crimes ou contravenções e, ao puni-los, faz aplicação de sanções mais graves chamadas penas. Mas esses mesmos atos, enquanto envolvam a violação de interesses de pessoas singularmente consideradas, pertinem também ao direito civil.
A ilicitude comportamental pode advir tanto da norma jurídica, na norma contratual concebida dentro da égide da autonomia privada.Ao contrário do ato jurídico, que é uma declaração de vontade, o ato ilícito é um ato material (ato ou omissão) que, infringindo dever legal ou contratual, causa dano a outrem.
Assim o ato ilícito pressupõe sempre uma relação jurídica originária lesada e a sua conseqüência é uma responsabilidade, ou seja, o dever de indenizar ou ressarcir o dano causado pelo inadimplemento do dever jurídico existente na relação jurídica originária.
O não-cumprimento do dever na relação jurídica, pelo sujeito passivo, implica em lesão do direito do sujeito ativo, que pode recorrer ao Estado, a fim de obter não só a prestação devida, mas ainda, o ressarcimento dos prejuízos decorrentes do inadimplemento.
Orlando Gomes acautela ser relevante distinguir a atividade infringente da norma jurídica, da atividade que lesa interesse legítimo de outrem, cuja satisfação depende de sua iniciativa.Se alguém deixa de honrar pagamento com dívida assumida, prejudica o credor, mas não pratica ato ilícito propriamente dito, embora que seu procedimento importe numa violação de regra contratual que ordena ao devedor o adimplir da obrigação livremente contraída.
Assim a transgressão a uma norma contratual não deixa de ser uma espécie de ilicitude, mas não se traduz propriamente numa transgressão direta e frontal à lei. Deparamos que o dever jurídico decorrente de norma legal evidentemente não pode ser ignorado por ninguém. Esse é o dogma fundamental do direito previsto no art. 3o, LICC para sua eficácia, sob pena de inexistindo, não ser viável qualquer sistema jurídico.
Licitude vale como elemento essencial e constitutivo do ato jurídico, seu objeto há de ser lícito.; se lícito não for, não haverá ato jurídico propriamente dito, senão fato voluntário que somente produz as sanções ou cominações impostas por lei.
Vicente Raó distingue com clareza os atos ilícitos de objeto contrário à ordem pública, às disposições imperativas da lei e aos bons costumes, dos ilícitos que se consideram por serem viciados por dolo civil, ou de culpa. Os primeiros são nulos.; anuláveis são os segundos.
É dos primeiros, isto é dos moralmente ilícitos, ou como desejava Coelho da Rocha que os qualificava como moralmente impossíveis, com amparo em Windscheid (Pandectas, vol. I, § 81) designava como declarações de vontade “cujo conteúdo se acha em contradição com a lei moral”.
Observe-se que no sistema pátrio não há qualquer referência às antigas figuras do quase-delito e do quase-contrato que eram existentes no direito romano e que já foram abandonadas na BGB que prestigiou um conceito único, o ato ilícito.
Jamais será caracterizado como o ato ilícito se remanesceu apenas na mera esfera íntima da pessoa, ou só na declaração de vontade. Efetivamente, deve haver uma conduta, um comportamento, uma exteriorização material que enseja a percepção por terceiro.
É curial, nesse sentido, Ulhoa ao relatar que são externalidades do homem,(grifo nosso) ou seja, ação ou omissão de qualquer pessoa que infere com interesses, bens e situação de outras pessoas.
A externalidade é negativa se a ação de uma pessoa prejudica a outra, e será positiva, se beneficia. O que caracteriza a externalidade é a inexistência de compensação entre as pessoas envolvidas. Caso contrário, ocorre a hipótese de compensação de prejuízos ou ganhos, dar-se-á a internalização da externalidade.
Há inúmeros exemplos de externalidades que não comportam internalização. E Ulhoa bem exemplifica referindo-se à capital paulista, como o caminhar por uma de suas famosas avenidas urbanas, ao respirar, o ar denso e poluído pela emissão de gás carbônico dos ônibus e carros que nela trafegam. Apesar de notoriamente nocivo aos pulmões do doutrinador, as empresas de transportes que exploram tal atividade no município paulista e demais proprietários dos veículos particulares nada lhe devem a título de indenização.
Outro bom exemplo e bem trivial é o incômodo produzido pelo forte odor de tinta fresca aplicada na pintura do apartamento do vizinho, ou a lentidão do tráfego urbano na hora do rush, ou pelos arredores de shopping center.; os transtornos causados pelas greves legais.; a frustração de não assistir o filme pelo fato da sala de projeção já estar lotada, são todos inúmeras externalidades negativas que não comportam nenhuma internalização, logo, não redundando em nenhuma obrigação de indenizar.
Ulhoa sublinha com propriedade que as normas de responsabilidade civil cuidam exatamente da internalização das externalidades. A referida internalização opera-se em sociedades complexas tais como as contemporâneas, e por meio de regras jurídicas reprimem o enriquecimento sem causa.
A responsabilidade civil é classificada doutrinariamente como obrigação não negocial (grifo nosso) posto que não deriva nem de contrato e nem de ato unilateral de vontade. Origina-se do ato ilícito ou de fato jurídico.
O fato de ser não-negocial, a referida obligatio não a impede que entre os sujeitos envolvidos, não possa mais tarde existir um negócio jurídico, não sendo este o fundamento da obrigação de reparar o dano.
Temos, pois que a vontade deve integrar o conceito de ato ilícito. Mas, não apenas a vontade capaz de caracterizar o dolo, mas mesmo diante da negligência, imprudência ou imperícia com que se conduz o agente, o objetivo desejado não é alcançado, mas sim, o ato que causa a lesão a outrem.
Frisa com pertinência San Tiago Dantas: “não é por querer o evento que o ato se torna doloso: é por ser querida a ação”. Enquanto que o comportamento reflete negligência, imprudência ou imperícia caracteriza a culpa stricto sensu, significando a inexistência de comportamento devido e conforme a previsão legal, por isso, previamente conhecido e que deve ser observado.
O elemento subjetivo do ato ilícito lembra o conceito lato de culpa onde se inclui o dolo pertinente ao âmbito privado, e a culpa é referida como sendo aquiliana por abranger ação (in faciendo) ou omissão (in omittendo).
Em várias hipóteses no sistema normativo, desde a Antiguidade, vige uma presunção de culpa em razão da pessoa com as coisas, ou com seus pressupostos, o que vem sendo denominado, de forma pouco feliz e apropriada, como responsabilidade objetiva.
São as hipóteses como as dos arts. 932, 936 e 937 do Código Civil de 2002. Depreende-se do art. 186 C.C., que o ato do qual há de resultar lesão para outrem, isto é deve, produzir o dano.
A alteração da conjunção de “ou” para “e” (grifo nosso) no bojo do vigente art. 186 em comparação ao teor do art. 159 do Código Civil de 1916, implicou estabelecer relação direta com a responsabilidade civil, distinguindo-se das hipóteses de ilicitude que não levam à responsabilidade civil, pela ausência do dano, mas que não ficam imunes à incidência do Direito.
É o outro elemento que se tem para a completar caracterização do ato ilícito civil. Logo, em doutrina, se tem que o ato ilícito é ação, ou omissão (comportamento) de alguém que, mediante culpa, viola norma jurídica e causa dano a outrem.
O dano tanto pode ser material ou patrimonial como moral, pode ser dano emergente, ou ainda, lucro cessante, mas deve estar ligado ao ato, mediante o qual se convenciona denominar de nexo causal.
É de se salientar que o ato ilícito implica em regime jurídico submetido à responsabilidade civil, portanto, em princípio, há dever do praticante do ilícito em promover o retorno ao status quo ante (anterior ao ocorrido), ou pela indenização, ou pelo ressarcimento.
Orlando Gomes como apoio de Trabucchi esclarece que o negócio ilícito é alcançado pela ineficácia, e se caracteriza pela causa, ou motivo determinante desconforme com o sistema normativo, ou pela inidoneidade do objeto e o comportamento das partes.
Portanto, a ilicitude negocial não prospera, e pode ser atribuída a ambas partes e o direito veda-lhe a produção de efeitos. O ato ilícito em princípio, é praticado por uma parte que causa dano à outra.
A conseqüência fundamental da ilicitude é a referida responsabilidade civil que gera a necessária reparação que pode ser da mesma natureza da prestação ou de natureza diversa. O surgimento do dever de reparar possui evidente estrutura obrigacional.
Um ato praticado despido de vontade não produzirá ato ilícito. Mas isto não significa que o dano não ocorreu e que o mesmo não deva ser reparado.O art. 188 do C.C. /2002 enumera as hipóteses de atos que podem efetivamente causar danos, mas que não são considerados como ilícitos. Tal elenco é taxativo, sendo vedada a interpretação extensiva e nem mesmo analógica. São: A legítima defesa (mais particularmente sobre o tema, leia meu artigo citado nas referências), o estado de necessidade, e o exercício regular de direito, e mesmo não expresso o consentimento do ofendido.
Mesmo na seara penal excluem a ilicitude do fato. São também comumente denominadas de excludentes da responsabilidade civil são: força maior, caso fortuito e ato de terceiro, culpa exclusiva da vítima.
Quem sofre dano, não está obrigado a empobrecer com o mesmo. A todos é garantido o direito de permanecer na sua condição de integridade física e moral, tanto quanto patrimonial.
As hipóteses de exclusão de responsabilidade civil, além de serem excludentes, têm de ser interpretadas com rigor, pois levam a um choque de princípios, que no caso concreto tem que ser dirimido pelo juiz, com base no princípio da proporcionalidade, também conhecido como da ponderabilidade.
O denominado dano moral que sempre existiu e, já era reconhecido tanto pela doutrina como pela jurisprudência brasileira como indenizável, ou pelemos, compensável. Apesar de grande resistência doutrinária por parte da parcela da magistratura.No entanto, com a expressa previsão constitucional, a discussão deixou de existir quanto a indenizabilidade, e tem ficado restrita à questão da avaliação do dano moral.
Configurado como dano que deve ser demonstrado cabalmente, não se admitindo a mera alegação de que o ato ilícito decorreu uma dor, um sentimento negativo e, etc.
Lembremos que a súmula do STJ que expressa que até a pessoa jurídica pode ser também indenizada por dano moral, Renan Lotufo, no entanto, tem entendimento diverso.
Não é que se queira purismo de linguagem, o que se objetiva em preservar a denominação de dano moral para as pessoas humanas e a questão de valoração.
A extramaterialidade do dano sempre existiu na seara das pessoas jurídicas mas nunca no sentido de ligação com valores éticos decorrentes da dignidade humana. Sempre foram, na verdade, considerados bens imateriais das pessoas jurídicas a clientela o ponto comercial, a marca, a fama, entre outros e, isto sempre compôs sua patrimonialidade.
Tais elementos sempre foram ligados diretamente à atividade econômica, enquanto a retomada da dignidade humana veio mais como resultado da Segunda Grande Guerra Mundial e, a conseqüente instalação da chamada “Era dos Direitos”, por Norberto Bobbio que culminou com a Declaração Universal dos direitos fundamentais passando a ser incorporada constitucionalmente hoje em dia por 157 países, isto contabilizado apenas até o ano de 2000.
O que pode e deve ser indenizado para as pessoas jurídicas, não é exatamente dano moral, é a lesão patrimonial de bens imateriais, mas cujo valor não se pode equiparar aos sentimentos humanos que integram a personalidade humana.
Merece destaque a figura do abuso de direito já que é bem próximo ao conceito de ato ilícito. O abusivo exercício de um direito possui teor impactante e faz com que não queira haja reação sancionatória pelo sistema jurídico.
No entanto, o Código Civil de 2002 que pouco inovou, pelo menos nessa seara apresentou um efetivo avanço. Não só positivando o conceito de abuso de direito como também consagrando que tudo em Direito deve ser relativizado até o exercício de direitos.
No Brasil, a monografia mais brilhante acerca do direito de vizinhança e que bem ilustra esse relevante conceito, é do inesquecível San Tiago Dantas que foi um dos primeiros professores a abordar o assunto: “abuso de direito” no que fora seguido pelos doutrinadores como Serpa Lopes, Caio Mário, Sílvio Rodrigues, Limongi França e mais recentemente por Carlos Alberto Bittar e, ainda Silvio Salvo Venosa.
A dúvida que se aponta diante do abuso de direito, se este é tão reprimível quanto o ato ilícito. Questão tormentosa e que ganhou espaço no direito francês particularmente no que tange ao direito de propriedade.Mas hoje está plenamente consagrado o princípio da função social para uma série de direitos absolutos e personalíssimos.
Planiol ao traçar o que chamou de teoria moderna do uso abusivo dos direitos, aludiu que este não pode ser, a um só tempo paradoxalmente, ao mesmo tempo conforme o direito e contrário ao direito. Mas, na lição dos irmãos Mazeaud é que se avulta a idéia mais límpida e que aponta que a noção de abuso de direito, esta não passa de uma aplicação extensiva da noção de culpa.
A noção de abuso de direito não fora prontamente aceita em doutrina. Embora hoje seja presente em várias legislações. Foi Marcel Planiol que veemente se insurgiu contra a teoria do abuso de direito, sintetizando que os atos jurídicos são lícitos ou ilícitos, inexistindo um tertius genus.
Duguit e Josserand deram grande colaboração para essa teoria e, afirmavam que nenhum direito assegurado por lei pode ser exercido com único objetivo de prejudicar outras pessoas, se não houver proveito para seu titular.
A concepção do abuso de direito mais se aproxima do ato emulativo do direito romano. A concepção objetiva não se ocupa das intenções do agente, e considera ilícito o exercício do direito sem observância de sua finalidade social, econômica ou moral.
Na concepção subjetiva, o abuso se tipifica em ser emulação, pela vontade de prejudicar (dolo). Dentro da ótica objetiva, quem abusa ao exercer seu direito, o desvia de sua finalidade ou desconsidera as regras de convivência em sociedade.
Exercer um direito para causar um prejuízo é, com efeito, cometer uma culpa delitual caracterizada pela má intenção de causar prejuízo a outrem. Francisco Amaral conceitua o ato ilícito como ato praticado como infração de um dever legal ou contratual, de que resulta dano para outrem.
Ilustrativo é o exemplo trazido por Ulhoa a respeito de abuso de direito que apesar se referir ao início do século passado em França (mais precisamente em Compiègne), onde o fazendeiro vizinho de certa propriedade havia erguido, na divisa das terras com o hangar de seu vizinho, umas altas colunas de madeira com varas de ferro pontiagudas erguidas em grande altura. Pelas condições do lugar, a estranha divisória tornou a manobra dos dirigíveis extremamente perigosa e houve mesmo um deles perfurado pelas pontas das varas da divisória.
O fabricante dos equipamentos moveu processo contra o vizinho para obrigá-lo a retirar ou alterar a divisória. Mas a justiça francesa rechaçou os argumentos do fazendeiro, decidindo a questão em favor do construtor dos dirigíveis. Considerou que o direito de propriedade, malgrado o previsto no Código Civil francês, esbarrava em outros limites além dos legais. Já se alumbrava, naquela época, a função social da propriedade a limitar o exercício do direito de propriedade.
A importância da caracterização, estudo e disciplina do ato ilícito reside no fato de este ser uma relação jurídica cujo objeto é o ressarcimento do dano causador. E na obrigação de indenizar inclui-se no conceito amplo da responsabilidade civil, um dos mais relevantes setores do direito contemporâneo, a relevância do ato ilícito reside no fato de ser o elemento primacial da teoria da responsabilidade civil, como conjunto de princípios e normas que definem ato ilícito e sua autoria e obrigam a reparação do dano causado a outrem.
Orozimbo Nonato consagrou que os atos ilícitos constituem a categoria principal e dos fatos jurídicos. São jurígenos como lhe chama o professor Paulino Neto e, compreendem os atos jurídicos e, os atos ilícitos.
Assim sendo, os atos ilícitos, produzem conseqüências de direito e se dividem em dolosos e culposos. Nos primeiros, a ação é desejada e voluntária enquanto que nos segundos, resulta de negligência ou imprudência.
Repisando, na configuração do ato ilícito, congregam-se os seguintes elementos como a existência de ação ou omissão do agente.; a contrariedade à ordem jurídica.; a penetração na esfera jurídica de outrem co a produção do evento danoso e a imputabilidade do agente, além é claro do nexo de causalidade.
Conforme o ato ilícito seja ou não contratual, teremos a responsabilidade civil contratual e extracontratual que é a clássica divisão nos sistemas civis contemporâneos.
Sustenta Silvio Rodrigues que o conceito de abuso de direito provém da evolução do conceito de responsabilidade civil. Já Pedro Baptista Martins por sua vez, adota a orientação eclética admitindo que esta provenha da culpa como do desvio da destinação social do direito exercitado de forma abusiva.
O ato ilícito tem correlata a obrigação de reparar o mal. Se permanecer meramente abstrata ou teórica, não interessa senão à moral. Mas, quando se tem em vista a efetiva reparação do dano, toma-o direito a seu cuidado e então, constrói a teoria da responsabilidade civil.
Formam-se duas correntes: uma, que afirma ser de ordem pública, o princípio definidor da responsabilidade civil, também chamada de escola francesa (grifo nosso) e, outra que afirma ter sido este instituído para a salvaguarda de um interesse privado (a chamada escola belga), e, por conseguinte, admite sua derrogação pela vontade das partes. E aí, ainda, se insere o busilis acerca da chamada cláusula de não indenizar.
Sustenta Caio Mário, mestre dos mestres, que a cláusula de não indenizar é aceitável desde que não haja dever de reparação instituído em lei de ordem pública.; quando não seja expressamente proibida em lei.; e no caso de haver o agente causado o dano não intencionalmente.
Afirma o nobre jurista que a doutrina moderna, seguida pelo Código Civil de 2002, cogita em responsabilidade sem culpa, quando a obrigação de reparar o dano sofrido independe de apuração de culpa do agente, e, nesse propósito se constrói a doutrina da responsabilidade objetiva (teoria do risco).
Da leitura do art. 186 do C.C., em comparação com art. 159 do C.C. de 1916, evidencia-se um deslize como professa Caio Mário que necessita de esclarecimento, a fim de sanear as dúvidas. Nos seus elementos, constitui ato ilícito a violação do direito ou dano causado. De sua redação subtrai-se a etiologia da conjugação de uma e de outro. Ademais, o novo codex retirou da cláusula geral do art. 186 a conseqüência da reparação do dano, indo incluí-la no art. 927 constante mais no Título da Responsabilidade Civil.
Assim o princípio da responsabilidade por fato próprio é a idéia originária, e em seu evoluir, foi criada a responsabilidade pelo fato de terceiros e das coisas, que De Page denomina de responsabilidade complexa.
No campo objetivista é que se situa a teoria do risco proclamando ser de melhor justiça que todo aquele que disponha de um conforto oferecido pelo progresso ou que realize certo empreendimento portador de utilidade ou prazer, deva também suportar os riscos de seus atos, sem cogitação da idéia de culpa, e, portanto, o fundamento da responsabilidade civil desloca-se da noção de culpa para idéia de risco.
Alguns doutrinadores o encaram como risco-proveito, que se fundo no princípio pelo qual é reparável o dano causado a outrem em conseqüência de uma atividade realizada em benefício do responsável.; ora mais genericamente como risco criado, a que se subordina todo aquele, sem indagação de culpa, expuser alguém a suporta-lo.
A teoria do risco não substitui a da culpa, e deve conviver ao seu lado. Por pretender mais equanimidade na distribuição dos encargos, o justo e o injusto, nem promove separação entre o indivíduo que procede ao arrepio da lei, admitindo que agente indistintamente responda por conduta culposa, como pelos efeitos imprevisíveis do ato não culposo.
È preciso fixar a causa da responsabilidade que deve residir em fundamento ético de apuração direta ou indireta da culpa. Para a teoria do risco, o fato danoso gera a responsabilidade pela simples razão de prender-se à atividade do seu causador, argumentam alguns que o fato danoso está intimamente ligado ao exercício da atividade, e este nasce, em verdade, nasce do choque das duas atividades. Assim, não é bem que se escolha, em substituição ao critério da culpa, conclui Colin e Capitant. É velha parêmia que relata: quem aufere bônus, deve arcar com ônus...
A teoria do risco é uma realidade admitida no direito moderno, e o sistema pátrio já a colhia francamente em alguns casos, expressos em lei, onde a responsabilidade se define pura e simplesmente sem culpa. Entre nós, foi a legislação de acidentes no trabalho. Daí a obrigação de reparar do empregador nos acidentes do trabalho definindo-se como tal qualquer lesão corporal, perturbação funcional ou doença que cause a morte ou a perda total ou parcial, temporária ou permanente da capacidade para o trabalho.
Outro exemplo de responsabilidade sem culpa por alargamento jurisprudencial é o dever de reparar o dano imposto ao que explora indústria insalubre, ou perigosa. Trava-se uma responsabilidade civil ponderada, pois o empregado acidentado por ocasião do trabalho tem sempre direito à indenização.; mas esta, é limitada na forma das tabelas aprovadas pelo legislador.
Salienta Silvio Salvo Venosa que a ilicitude prevista no art. 186 do C.C. /2002 diz respeito a infringência de norma legal, violação de dever de conduta, por dolo ou culpa, que tenha resultado prejuízo de outrem.
Por dolo, aduz o Código Penal é a situação em que o agente quer o resultado ou assume o risco de produzi-lo (distinguindo-se assim o dolo específico, do dolo eventual). Já no tange à culpa estatuída no art. 186 do C.C. pelas expressões negligência ou imprudência e, o Código Penal, no art. 18, acrescenta imperícia, onde sempre se contém um ato voluntário determinante de resultado voluntário e previsível.
Quando o resultado é imprevisível, não há culpa, pois o ato entra no campo de caso fortuito ou força maior, onde não vige a indenização alguma.