MATERNIDADE ABSOLVE ACUSADA
           
     

             
            Hoje, revendo os meus guardados, deparei-me com uma das obras marcantes na minha vida acadêmica, sobretudo nas apaixonantes aulas de Direito Penal. Trata-se de UMA PORTA PARA O HOMEM NO DIREITO CRIMINAL, de João Baptista Herkenhoff, Juiz de Direito de uma Comarca do Espírito Santo, na qual o referido autor prolata suas sentenças à luz de uma sustentação filosófica da arte de julgar, baseada na primazia dos valores humanos e no entendimento de que o juiz tem uma grande cota de arbítrio, sem sair do sistema legal.
          Herkenhoff, em comentário a COMO APLICAR O DIREITO, de que também é autor, assim declara: 

        
“Se o juiz falhar na sua missão de humanizar a lei, de estabelecer o ajustamento entre valores da lei e valores do povo, muito pouco ou nada restará de útil, socialmente útil na lei”.
          E na apresentação do seu livro de que é objeto este tema diz: 
        
Nenhum juiz, mais do que o de primeira instância, é testemunha tão rente da trepidação social, é visinho tão próximo da miséria e da dor, abdica -se da sua missão de humanizar e atualizar a lei, de negar sua aplicação ao caso concreto, que foge da abstração do comando genérico, de retificar rumos jurisprudenciais que considera inadequados à vida que geme cá embaixo – esvazia-se, em muito, o papel social do magistrado”. 
          
          São ao todo 125 decisões abrangendo os mais diferentes casos e nas quais se percebe a preocupação humanística do magistrado associada à aplicação da lei que as fundamentam. Vejamos aqui, como exemplo, a que se segue, transcrita na íntegra:

              MATERNIDADE LIBERTA ACUSADA


       A matéria, por si só, tem força para libertar da cadeia uma futura mãe. No ato, também liberta o Juiz a criança que está no ventre materno, (primeiro despacho descrito).
     Em sentença, noutro processo, envolvendo a mesma acusada, sua absolvição é proferida porque se verificou sua readaptação social: a Justiça Criminal não se escraviza ao passado, mas descortina o futuro.
    
Atente-se para as argumentações do Juíz.

      
“Compareceu à minha presença, no Fórum de Vila Velha, Edna S.,grávida de oito meses, que estava presa na cadeia da Praia do Canto, enquadrada no art. 12 da lei de Tóxicos”.
    Diante do quadro dramático – uma pobre mulher grávida, encarcerada -, proferi, em audiência, despacho que libertou Edna.
    Anteriormente, Edna vira-se envolvida noutro processo, enquadrada em crime de lesões corporais leves porque se utilizando  de um pedaço de vidro, ferira Neuza Maria Alves.
    O motivo da agressão de Edna a Neuza foi ter Neuza abandonado a escola de samba Novo Império.
    Neuza era figura importante do desfile, como porta-bandeira da escola, na qual também Edna desfilava, como passista.
    Depondo em audiência, um ano após ter Edna sido solta para dar à luz, disse Neuza, a vitima das lesões, que se dependesse dela pediria que a justiça fosse mais "calma" com a acusada, pois o fato ocorreu por provocação de Levi; a acusada tem uma filha pequena, e, além disso, está se regenerando.
    Diante dos fatos este juiz proferiu a sentença absolutória por entender que

    A justiça Criminal, dentro de uma visão formalística, localiza-se no passado, julga o que foi. A Justiça Criminal, numa visão humanista, coloca-se no presente e contempla o futuro.
   O despacho que libertou Edna, no processo de tóxicos, e a sentença absolutória no processo de lesões corporais, são transcritos na íntegra, a seguir. 

     A acusada é multiplicadamente marginalizada: por ser mulher, numa sociedade machista; por ser pobre, cujo latifúndio são os sete palmos dos versos imortais do poeta; por ser prostituta, desconsiderada pelos homens, mas amada por um Nazareno que certa vez passou por este mundo; por não ter saúde; por estar grávida, santificada pelo feto que tem dentro de si. Mulher diante da qual este Juiz teria de se ajoelhar, numa homenagem à maternidade, porém que, na nossa estrutura social, em vez de estar recebendo cuidados pré-natais, espera pelo filho na cadeia. É uma dupla liberdade a que concedo neste despacho: liberdade para Edna e liberdade para o filho de Edna que, se do ventre da mãe puder ouvir o som da palavra humana, sinta o calor e o amor da palavra que lhe dirijo, para que venha a este mundo tão injusto com força para lutar, sofrer e sobreviver. Quando tanta gente foge da maternidade, quando pílulas anticoncepcionais, pagas por instituições estrangeiras são distribuídas de graça e sem qualquer critério ao povo brasileiro; quando milhares de brasileiras mesmo jovens e sem discernimento, são esterilizadas; quando se deva afirmar ao Mundo que os seres têm direito à vida, que é preciso distribuir melhor os bens da terra e não reduzir os comensais; quando por motivo de conforto e até mesmo por motivos fúteis, mulheres se privam de gerar, Edna engrandece hoje este Fórum com o feto que traz dentro de si. Este Juiz renegaria todo o seu credo, rasgaria todos os seus princípios, trairia a memória de sua mãe, se permitisse sair Edna deste fórum sob prisão. Saia livre, saia abençoada por Deus, saia com seu filho, traga seu filho à luz, que cada choro de uma criança que nasce é a esperança de um mundo novo, mais fraterno, mais puro, algum dia cristão.
   Expeça-se incontinente o alvará de soltura.

               -x-

     SENTENÇA ABSOLVENDO EDNA (n.de Ordem; 2).


Processo-crime instaurado pelo Ministério Público contra Edna S. Rito regular.

       
Passo a decidir: a Justiça Criminal, dentro de uma visão formalística, localiza-se no passado, julga o que foi. A justiça Criminal, numa visão humanista, coloca-se no presente e contempla o futuro. A Justiça Criminal não é uma máquina calculadora que só fecha as suas contas quando o saldo é zero. A Justiça Criminal é, sobretudo, um ofício de consciência, onde importa mais o valor da pessoa humana, a recuperação de uma vida, do que a rigidez da lógica formal.
     A prova testemunhal convence que Edna é hoje uma pessoa inteiramente recuperada para o convívio social. Como ficou demonstrado, sua vida está dedicada inteiramente a sua casa. Compareceu hoje a este juiz com uma filha nos braços. Insondáveis caminhos da vida!... Da última vez que aqui veio, esta criança,  que ela traz nos braços, ela trazia no ventre. Por despacho deste Juiz, foi naquela ocasião posta em liberdade.
     Creio que a sentença justa, no dia de hoje, é a sentença que absolve a acusada. Não se trata da sentença sentimental, da sentença benevolente, como se julga, tantas vezes erradamente, sejam as sentenças deste Juiz.. É a sentença que crer no ser humano; é a sentença convicta de que muitas vezes pessoas marginalizadas pelas estruturas sociais encontram, no contato com o julgador, o primeiro relacionamento no nível de pessoa. Absolvo a acusada na esperança, em voz alta, sentença ouvida, palavra por palavra pela acusada, para que sinta ela desejo tenha uma vida nova. Liberto-a deste processo e espero que nunca mais fira quem quer que seja.
      Considerando tudo que foi ponderado, acolhendo as razões do Ministério Público e a Defesa, atendendo ao gesto de perdão da vitima Neuza Maria Alves, atento à criança que Edna traz no colo, sua filha Elker, desejando que esta sentença seja um voto de confiança que Edna saiba compreender – ABSOLVO a acusada da imputação que lhe foi feita."

LordHermilioWerther
Enviado por LordHermilioWerther em 18/03/2009
Reeditado em 28/03/2009
Código do texto: T1492760
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