Condução coercitiva e produção de provas na Lei Seca

1.CONTEXTUALIZAÇÃO

A lei 11705/2008 apresentou-se com o escopo de alterar dispositivos relativos ao Código de Trânsito Brasileiro, assim também como regular a propaganda de bebidas alcoólicas e fumígeros pela mídia, seja ela escrita, televisiva ou de rádio. Mas o ponto que mais tocou, causando certo estranhamento, foi o relativo à conduta de dirigir sob o efeito de álcool, comportamento este já proibido na legislação anterior, mas reformulado e repaginado pela novel.

Passou-se a adotar apenas um critério objetivo, baseado na quantidade de álcool no sangue do condutor, aferido por um aparato eletrônico, tecnicamente chamado de etilômetro. Tratou-se logo de “ apelidar” de Lei Seca ao conjunto de dispositivos trazidos pela 11705. Aí onde surge o primeiro problema a ser debatido.

A Lei não faz distinção alguma entre aquele que bebe socialmente, duas ou três cervejas, com a família ou os amigos, e que se encontra visivelmente em condições psicomotoras de conduzir o veículo, daquele alcoólatra contumaz, que comumente se excede no consumo de bebidas, e se encontra mano tropo, tropeçando, cambaleante, como se caminhasse em um terremoto, e resolve dirigir. Há de se convir que a grande maioria do povo brasileiro pertence ao primeiro grupo, e encontra-se, from now on, tolhido de sua liberdade individual, sem ao menos tolher as de outrem.

Por que, então, não se buscou amparo, um estudo analógico, de outros diplomas de trânsito ao redor do mundo? Coube a este escritor fazê-lo, depois de quase um ano de promulgada tal LEI? Na Noruega, para exemplificar, existe uma proporcionalidade na pena de multa àquele que for pego guiando embriagado. É proporcional à renda do condutor. Em outros países , têm-se a proporcionalidade por grau de álcool no sangue, que, na visão mais legalista, deveria ser adotada em nosso diploma.

Não, não é cânon deste artigo criticar a finalidade de tal Lei, pois é de nobre e salutar necessidade. Quantas vidas foram salvas desde a promulgação? Isto é sem dúvida uma vitória de nosso legislador. O que se ataca é apenas a maneira com que se faz prova de provável estado de embriaguez.

Ninguém precisa ser um expert em medicina ou bioquímica para verificar que a resistência de certos indivíduos em relação ao álcool é variada. Existem aqueles que se embriagam ao segundo copo de cerveja, e também aqueles que, para alcançar igual patamar ingere meia dúzia de Long Necks . Vários fatores orgânicos levam à esta distinção, entre os quais massa corporal, idade, condições físicas, funcionamento fisiológico regular ou não, etc. E , pasmem, fumar facilita a embriaguez, e o cigarro não é detectado no exame etílico.

2- DOS DISPOSITIVOS LEGAIS

Reza a Nova Lei: III - o art. 276 passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 276. Qualquer concentração de álcool por litro de sangue sujeita o condutor às penalidades previstas no art. 165 deste Código.”

O uso da expressão “ qualquer” eiva de irregularidade o artigo, pois como diziam os romanos Bonum vinum laetificat cor hominis( o bom vinho alegra o coração do homem). Não obstante , estudos mostram que ingerir uma taça de vinho no almoço reduz significantemente o risco de doenças cardiovasculares. Aquele profissional, então, que sai do emprego com apenas uma hora pra fazer seu almoço, e ingere uma taça de Cabernet Sauvignon, ou de um áspero Merlot, fica impedido de retornar ao seu emprego em seu próprio veículo, por estar legalmente embriagado.

Não obstante tal dispositivo, ainda existe a previsão de que o indivíduo deve ser submetido ao exame halitar via bafômetro, e se houver a resistência a este, há a condução coercitiva do condutor até a autoridade competente. O Brasil é signatário do Pacto de San José da Costa Rica, que vaticina em um de seus célebres dispositivos que “ a ninguém é obrigado produzir provas contra si mesmo”. Dês que assumido pela Constituição, este dispositivo tem aplicação übber alle Recht, ou seja, sobre todo o Direito pátrio.

Ainda sobre a recusa, o ilustre mestre Genival França, em seu aclamado compêndio de Medicina Legal, afirma: “ Em suma, pode-se afirmar que o examinado tem direito constitucional de recusar-se à realização de exame de sangue para a averiguação de embriaguez(...) por outro lado, a presunção só pode ser considerada dentro de um conjunto de indícios, e desde que esses elementos sejam criteriosamente avaliados”. Ou seja: deixar a cargo do policial de plantão ou de um juiz a caracterização da embriaguez de alguém é correr risco de cometerem-se injustiças, e até crimes como lesão corporal e abuso de autoridade.

Agora passa-se à esfera Penal: como adequar tal norma aos tipos previstos no Código Penal?

Define-se abuso de autoridade : Art. 350 - Ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder:

Pena - detenção, de um mês a um ano.

Logo, observando a truculência com que os nossos policiais rodoviários e urbanos têm conduzido os que se recusam a fazer o teste, é viável a qualificação em abuso de poder, pois, mesmo estando em conformidade com a novel legis, vai de encontro a princípios basilares da CF/88. O já citado direito de não provar contra si, além de outros, como o Princípio do Contraditório, visto que, uma vez o agente afirmando que tal condutor está alcoolizado, usando-se apenas de presunção, ele tolhe a defesa individual do detido.

Portanto , condução coercitiva em batidas policiais de trânsito podem ensejar crime de abuso de autoridade, tanto na seara do Código Penal, como em observância à LEI 4898/65.

Quanto ao constrangimento ilegal, este não se verifica, pois a doutrina reconhece a existência do constrangimento legal, que é aquele usado para cumprimento de determinação legal. Se a Lei 11705 determina que deve ser recolhido, por mais que pareça esdrúxulo, é legal, afastando, então, a vigência deste tipo.

Ponto interessante é o da Lesão Corporal: Art. 129 - Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:

Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano.

Introduzir um instrumento perfuro-contundente na pele de um indivíduo, sem o seu consentimento, causando-lhe dor, ou sofrimento momentâneo, é, indubitavelmente, uma ofensa à sua integridade corporal. Então, forçar uma coleta de sangue para exame de alcoolemia é uma Lesão Corporal.

O problema surgido com a recusa em fazer o exame está em haver a supervalorização de uma presunção, porque tal gesto pode implicar num reconhecimento de uma confissão de estado alcoólico. Fazer uso de uma prerrogativa legal e ao mesmo tempo produzir prova contra si mesmo. Um contrassenso? Vamos à letra da Lei 11705/08:

IV - o art. 277 passa a vigorar com as seguintes alterações:

Art. 277. .....................................................................

.............................................................................................

§ 2o A infração prevista no art. 165 deste Código poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor.

§ 3o Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo.

Tocante ao parágrafo segundo, não há irregularidade alguma, mas há de se verificar que ele usa a expressão “ provas em direito admitidas”, o que insurge afirmar que a prova colhida de maneira criminosa ou irregular não terá validade, e uma prova colhida mediante condução coercitiva carece de regularidade e legalidade.

Já o parágrafo terceiro é vergonhoso, pois há a apreensão da CNH, prevista pelo artigo 165 do CTB, além da suspensão do direito de dirigir por um ano, além da multa. Vejamos: como eu posso apreender um patrimônio, um documento individual, sem o devido processo legal e sem a observância do necessário duplo grau de jurisdição? E como restringir o direito individual e constitucional de locomoção sine observação do contraditório e da ampla defesa?

VIII - o art. 306 passa a vigorar com a seguinte alteração:

“Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:

Seis decigramas equivalem mais ou menos a duas latinhas de cerveja. O que critica-se, neste dispositivo, é a adoção apenas de um critério matemático, objetivo, pois como antes mencionado, o cidadão pode tomar bem mais do que isto e não manifestar perda nos seus sentidos, reflexos e capacidade de discernimento, ou seja, não estar embriagado. No caso do vinho, uma taça seria necessária para que já se ultrapassasse este patamar legal.

Purga-se por uma revisão e reformulação desta Lei Seca, prevendo um procedimento de acordo com o que ordenam o Código de Processo Penal e a Carta Magna, pois corremos sério risco, caso isto não seja feito, de ressuscitar o procedimento inquisitivo dos séculos anteriores, que originava barbáries e injustiças historicamente conhecidas.

RAPHAEL BARBOSA
Enviado por RAPHAEL BARBOSA em 10/03/2009
Código do texto: T1478848
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