VOCÊ CONHECE O CATADOR DE MATERIAIS RECICLÁVEIS?
Por Cassia Gomes
Eis que me deparo com uma lentidão no trânsito, e logo estou irritada, pois sai atrasada de casa, a reunião já começou, mas me pego num trânsito que não tem mais fim. Olho de um lado, olho do outro e não consigo entender o que se passa, pois ainda se faz cedo para um congestionamento.
Como minha irritação não adiantará em nada, aumento o volume do rádio e começo a observar a cena ao redor. Crianças indo para a escola, executivos procurando por um táxi, pessoas enfileirando-se na entrada para o metrô, ou no ponto de ônibus. E de repente o trânsito começa a fluir, lentamente, mas pelo menos não estou mais parada. Nesse momento deparo-me com uma cena que eu conheço: um amigo com o carro quebrado. Só então percebi que as pessoas passavam, gesticulavam, gritavam pela janela, como eu já estava atrasada, parei e fui ajudar.
O carro quebrado, ele nervoso, peças espalhadas pelo chão, material também, meu deus, meu amigo havia sido vitima de um acidente de trânsito. Isso mesmo, e o infrator nem se deu ao trabalho de parar e ajudar a reparar o mal que havia feito. Reconheci Pedro pelo gesticular, ele é um homem de meia idade, meio ranzinza, mas muito educado, profissional dedicado, anda na linha, como manda o trânsito, faz questão de citar as normas de trânsito quando vê algum colega dando mal exemplo, e agora, olhem só, vítima de um ignorante do trânsito. Pedro levanta cedíssimo, de segunda a sábado, aos domingos dedica-se à igreja e à família como faz questão de frisar. Trabalhou por muitos anos numa indústria e foi contaminado com chumbo, ficou muito doente, tinha pouca idade e mal orientado não teve os cuidados necessários, muito menos indenização.
Foi por isso que conheci Pedro, estávamos na fila de espera do INSS, eu para ver uns processos, ele para abrir um, mas não tinha a menor noção de seus direitos. Abria e fechava sua pasta de papel com elástico, inúmeras vezes para conferir os documentos, foi então que curiosa perguntei se estava aguardando há muito tempo ali, ele por sua vez muito tímido me respondeu, eu sorri de volta e continuei a conversar e saber um pouco mais daquela figura comum.
Pedro estava na casa dos 50 quase 60 anos, trabalhador braçal, desde os 12 anos, primeiro roça, depois metalúrgica, de onde saiu por adoecer, ou melhor, ter sido mandado embora em decorrência disso. Ficou anos sem trabalho e assistência por não ter nem sequer a 4ª. Série primária e achar que não tinha direitos. Atualmente, dizia em voz baixa, meio que com vergonha, era catador de papelão.
Fiquei ainda mais interessada, e lá fui eu com uma chuva de perguntas a Pedro, que começou a olhar-me com estranheza. Foi então que me apresentei da maneira correta. “Desculpe-me seu Pedro, sou Cassia, ambientalista, educadora ambiental, ou seja, eu trabalho com pessoas como o senhor, Catadores de Material Reciclável, e quero lhe convidar pra participar da minha turma de alunos”. Bom, a reação foi bem interessante, ele disse nunca ter sabido sobre isso, usando as palavras dele: “Olha Doutora, a sinhora ta de brincadeira comigo, cadique eu nunca orvi fala que tem estudo pra cata papel, a sinhora adiscurpi”. Eu ri e comecei uma explicação para o Pedro, sobre o local e hora do nosso encontro.
No dia e hora marcados, lá estávamos eu e meus 30 alunos maravilhosos, detentores de uma sabedoria incrível, meus mestres em muitos assuntos de trabalho e da vida, quando de repente vejo paradinho na porta o Pedro, cabelo molhado, meio que preparado para uma festa. Apresentei-o para a sala como nosso novo colega de aprendizado. Estávamos no segundo encontro, e eu por minha vez, feliz, já havia conquistado a confiança daquela turma, e agora fora presenteada com o meu novo amigo, o Pedro.
Minha primeira pergunta naquele dia foi: Vocês conhecem o Catador de Material Reciclável? E a resposta foi o silêncio devido à timidez, mas eu continuei dizendo, tudo bem eu vou lhes apresentar.
O Catador de Material Reciclável é um profissional autônomo, reconhecido pelo Ministério do Trabalho, que deve obter seu cadastro junto ao INSS – Instituto Nacional de Seguridade Social, comprando um carnê para pagamento dos tributos, e levando seus documentos pessoais. Assim receberá um número que lhe dará direitos de trabalhador autônomo, auxilio saúde e acidentes e contagem de tempo para aposentadoria. Normalmente esses profissionais unem-se em cooperativas, associações ou grupos organizados a fim de tornarem-se mais fortes, elegerem um representante para compor o movimento nacional e regional dos catadores, participar das negociações e reivindicações da classe. Quando organizados tornam-se empresários, isso mesmo, empresários do ‘lixo’.
Ouve um silêncio ainda maior naquela sala depois da minha fala, e de repente vi olhos mais brilhantes, até mesmo risos disfarçados. Em mim, uma sensação inexplicável de cumprimento de dever, e satisfação por ter sido veículo para desvendar uma novidade.
Ah, o acidente? Pois é, o Pedro aprendeu nas minhas aulas, que o catador responsável, respeita o trânsito, e trafega na mão correta, ocupando o espaço de um carro, para não atrapalhar o trânsito, assim como segue a legislação e sempre dá a preferência, por ainda não possuir um veículo apropriado e nem emplacado, mas mesmo assim pode perdê-lo se cometer um acidente. No entanto, quem bateu no Pedro, foi embora, nem sequer ajudou, e muito menos foi considerado infrator.