A Fantasia das Leis
GIOVANI CLARK é Professor da PUC/MG, Doutor em Direito Econômico pela UFMG e Diretor-Presidente da Fundação Brasileira de Direito Econômico (FBDE).
A classe dominante e os governos nacionais que se sucedem vêm embalando os sonhos do nosso oceano de miseráveis e da dilacerada classe trabalhadora, através de seus aparelhos de divulgação, propagando a miragem de uma sociedade justa e desenvolvida. Para tanto, em regra, basta ativar, assiduamente, a milagrosa fórmula de mutação ou de criação de leis, a fim de que a magia da transformação socioeconômica realize-se no futuro. Cinicamente, “sugere-se” que um dos grandes vilões da caótica realidade brasileira seja supostamente a legislação existente .
A fantasia da alteração das estruturas sociais seria executada por intermédio da revogação total ou parcial das normas legais, com a criação de novas, ou dando roupagem jurídica às matérias ainda não versadas por aquelas. Contudo, em um passo de mágica, a nova legislação cai no descrédito popular por não se tornar eficaz devido aos interesses dos “donos do poder”. Sintetizando, em via de regra, mudam-se as normas legais para não se mudar nada em nossas chagas sociais ou, quando muito, elas atingem a periferia dos problemas ou, até, reforçam os pilares das desigualdades.
Somos um ardente defensor do Poder Legislativo e de suas prerrogativas de produtor das leis e fiscalizador do Executivo. Funções essenciais em uma sociedade que se propõe a conquistar uma real democracia social, política e econômica. Ao Legislativo, juntamente com o Judiciário, compete a difícil missão de inviabilizar a adoção de qualquer ditadura pós-moderna, assim como de controlar a magnitude do poderio do Executivo dos dias atuais, motivado, dentre outros fatores, pela constitucional intervenção estatal no domínio econômico e social.
A sociedade do século XXI deixa explícita sua pluralidade de interesses, a complexidade de suas relações e o antagonismo das classes. Obviamente, as normas jurídicas devem tratar dessa realidade, sujeitas às mutações tecnológicas, ambientais ou econômicas. Então, torna-se vital que o Legislativo tenha um destacado papel com uma produção vigorosa atendendo aos desejos conflituosos do tecido social. Não negamos assim, dialeticamente, a necessidade da alteração das normas jurídicas em diversos instantes. Todavia, as leis, principalmente as novas, vêm sendo usadas como engodo e instrumento de dominação pelas elites.
Enquanto discutem e aprovam as “normas salvadoras”, desvia-se a atenção social e, o pior, desmobiliza-se a minguada parcela da sociedade civil organizada para a exigência da eficácia da legislação existente. A citada conduta é mais uma hábil técnica de dominação que resulta no retrocesso das lutas dos grupos explorados, já que ao invés de se exigir a eficácia das leis atuais, através da criação de condições adequadas para implementação daquelas, recua-se, restabelecendo-se os palcos das disputas anteriores, ou seja, o das lutas das forças sociais no plano legislativo em torno da produção das normas legais.
A Constituição Brasileira de 1988, com quase 20 anos, sofreu mais de 50 Emendas Constitucionais, até então, em nome da conquista do “paraíso liberal” e das “maravilhas econômicas e sociais” a serem propiciadas pelo Estado Mínimo, quando ele sairia de cena do âmbito econômico e social, e pela implantação da famigerada globalização, ou renovação do pacto colonial em bases pós-modernas. A propaganda foi enganosa. O Estado ficou frágil para desempenhar as suas múltiplas funções e os horrores da colonização imperialista transformaram-se em “tecnocolonialismo”.
Praticamente em todos os campos das relações sociais em que temos de intervir legislativamente para contribuir na transformação do nosso calamitoso quadro socioeconômico possuímos numerosa legislação capaz de “modificar” a selvageria implantada no Brasil desde quando fomos invadidos em 1500. O que necessitamos é de que as leis sejam vividas, ou melhor, tenham eficácia no mundo real do ser e não continuem no universo do imaginário legal do dever ser.
O Direito não é revolucionário por si próprio. Ele reflete as relações produtivas, culturais, educacionais, sociais travadas no tecido social. Se as bases daquele são de exploração, segregação e ganância, digo genocídas, em nada adianta modificar a lei, já que está se transformará em fetiche, ou em documento ilusório, usado para legitimar a permanência dos “donos do poder”, visto que as perversas estruturas perduram. As normas legais, isoladamente, não possuem a magia de fazer o milagre da transformação, pois somente as lutas sociais pacíficas possuem tal força.