AVOENGO
AVOENGO
Vem desde o meu avô essas olheiras;
Essa insônia sem fim, esse cansaço
Logo ao aboio dos bois: Currais, porteiras...
Cumpri a obrigação, um mal pedaço:
Casei e descasei; criei meninas
E por prédios deixei meu fino traço.
Também vômito e versos nas esquinas
Além d'um fatalismo que não sei
Se fez-me ou não mais baças as retinas...
Sem embargo, não fui filho de rei.
Tampouco de nobre ou de burguês,
Antes filho do mundo me tornei.
Venho das madrugadas, ou talvez,
Das madrugadas venham tais alardes
Entremeados de bílis e embriaguez:
-- "Envelhecer é a arte dos covardes!
Dos que, como eu, bateram retirada
Sem grandes alaridos nem retardes..."
"Eu deixo para trás montes de nada,
Desço rios correntes, subo abismos
E contemplo os estratos da alvorada."
"Tolerei do egoísta os egoísmos
E ainda dos histriões as histrionices
Até render-me ao puro cepticismo..."
"Sem ascendente em Gemine nem Pisces,
Jamais mostrei aos outros quem eu era,
Senão para amargar com pedantices."
"Tornei-me pouco a pouco uma quimera
De mim mesmo sem lastro pela vida,
Nos ecos que meu canto reverbera."
"Porque fazer a vida mais comprida
Tão-só adia a triste e má verdade,
Que a gente vive sempre de partida."
"Se após de meu avô caminho a herdade
A ver as suas obras e conquistas,
Tão-só ruínas trago à claridade."
"Bem breve se marejam minhas vistas
A lembrá-lo chamar, alto e robusto,
Às reses ressurgindo-lhe imprevistas."
"Fico parado a vê-lo, não sem susto,
Como se na porteira ora estivesse
Ou reclinado à sombra d'um arbusto."
"A casa em que viveu; os filhos, a messe...
Tudo aquilo que há muito se perdera
Como nunca existido ali houvesse."
"Se ele, que tanto teve e eu não tivera,
Pôde deixar de ser sem mais nem quê,
Quanto mais eu? De quem nada s'espera."
"Não pretendo do Fado mais mercê
Que desaparecer, vago e discreto,
Sem que ninguém sequer conta se dê."
"E os lamentos que canto quando poeto
Deixo afinal dispersos como folhas
Que esvoaçam por um pé de vento inquieto."
"Eu, maestria, tão-só co'o saca-rolhas
Para vinho entornar... Pois na poesia,
Nem erros nem acertos, só escolhas."
"Fosse eu sensato, nada escreveria
Muito menos sonetos ou rondéis
Que pouca gente a ler se me atrevia."
"Deixava para os vates seus lauréis
E com eles as palmas recebidas
Dos leitores mais gratos e mais fiéis."
"Restem-me essas vidas esquecidas
Cuja herança carrego inopinado
Em memórias que nunca serão lidas."
Encerro esse monólogo arrastado,
Mas sobretudo estúpido e inconcluso,
Deixando ora o leitor desobrigado.
Pois mais ideias caindo em parafuso
Apenas os conduzem à loucura
D'um poeta já excêntrico e confuso.
Quem mais sabedoria se procura
Não há-de pelas linhas mal traçadas
De s'encontrar senão mais amargura.
Tampouco queira achar em mim carradas
Já d'alguma poesia que, sapiente,
Lhes faça às almas mais edificadas.
Ler-me-ão desavisados tão-somente
Ou desinteressados de más vidas,
Atrás de seus azares simplesmente.
E, olhando-me o retrato, as coisas idas
Deem um sentido qu'eu jamais tivera
A essas olheiras sempre escurecidas..."
Betim - 13 12 2018