LÍNGUA PORTUGESA: Morfossintaxe
A língua em seu recorte histórico atual é o resultado do processo evolutivo imprimido pela fala, no decorrer do tempo. (HEHDI, 2004). Porém, o que se pretende examinar neste estudo, não é a evolução da língua, mas a língua em seu estado atual, a formação de palavras no enfoque sincrônico concebido pela Morfossintaxe.
O estudo do processo de formação de palavras, a morfossintaxe, requer prévio conhecimento de segmentação dos morfemas: fragmentação das palavras, separando o radical de seus afixos, a fim identificar cada parte, compreender e reconhecer os elementos mórficos de formação dos vocábulos. Neste trabalho, no entanto, limitar-nos-emos apenas em responder aos questionamentos constantes da atividade, Língua Portuguesa: morfossintaxe, módulo I, uma que vez o tema proposto, contempla vasta abordagem além da examinada neste módulo. Apesar desta limitação, tentaremos visitar alguns conceitos e pressupostos teóricos, a fim de chegarmos aos falantes, verdadeiras fontes geradoras da língua.
A Gramática Tradicional escolheu como modelo a linguagem restrita a um grupo elitizado de letrados, aristocratas, de natureza economicamente abastada, que teve acesso à educação escolar. Com isso, afastou a língua de sua realidade social, gerou o conceito de “certo” e “errado”, e, priorizou o padrão culto da língua como norma capaz de uniformizar os falares (BAGNO, 1999). Assim, “Muitas gramáticas e livros didáticos chegam ao cúmulo de aconselhar o professor a "corrigir" quem fala muleque, bêjo, bisôro, como se isso pudesse anular o fenômeno da variação, tão natural e tão antigo na história das línguas.” (BAGNO, 1999, p.42).
Diversos são os preconceitos lingüísticos, que consideram a forma não padronizada da língua como, feia, simplória e identificadora de baixa escolaridade e de nível social inferior. A exemplo disso, a análise de um trecho do aparte publicado na Folha de São Paulo, em 11 de janeiro de 2000, p.1, mostra a vereadora paraense Lourdes Lopes, sendo ridicularizada, em plenário, quando, não aceitando a argumentação do colega João Pedro, ela protesta:
[...] “Disconcordo totalmente do senhor.”
Embora tenha sido motivo de zombaria, a vereadora criou um neologismo na língua portuguesa, através do processo de derivação prefixal, dis+concordo, em substituição à palavra já dicionarizada “discordo”. Tal processo é possível, tal como ocorre em disforme, compatível com desconforme, que, a rigor, significam aquilo que não tem forma. Portanto, “disconcordo” tem o mesmo valor semântico de discordo, ou não concordo. Na mesma construção frasal, Lourdes Lopes utiliza-se ainda da palavra finalmente, formada por derivação sufixal agregada ao radical: final + mente (sufixo) e mais adiante, infundada, criada pelo processo de derivação prefixal: in + fundada, mas essas derivações não causaram nenhum riso, pelo fato de serem previamente concebidas pela língua culta.
Em, “Novas Comédias do Vida Privada”, Luís Fernando Veríssimo evoca a imagem de "Quequinha" para descrever o desgaste no relacionamento amoroso entre marido e mulher, representando-o em forma de “gradação pronominal”. Com esse recurso lingüístico, Veríssimo vai substituindo o tratamento carinhoso de "Quequinha", atribuído à esposa de Norberto, por pronomes de tratamento, possessivos e demonstrativos, revelando uma gradação depreciativa no relacionamento do casal.
Como descreve Veríssimo, inicialmente, numa demonstração carinhosa de pertença e não de posse, Norberto conta casos de sua mulher, afagando-lhe a mão. No decorrer do tempo, entretanto, esse mesmo tempo que arrefece a chama do amor e vai arrancando, aos poucos, suas penas e podando as asas, Norberto passa a referir-se a “Quequinha” chamando-a de "a mulher aqui", expressão com valor de pronome demonstrativo, que, com certa "frieza" substitui o nome próprio ou apelido da mulher. Adiante, o pronome demonstrativo esta, associado à palavras, mulherzinha, toma forma acusativa da pessoa de quem se fala (mal), mas ainda presente no cenário da conversa. Com o avançar do tempo, Norberto, trata “Quequinha” por ela, pronome pessoal do caso reto, utilizado para pessoa não presente no ato da fala, (embora a “Quequinha” ainda esteja presente). E, apontando com o queixo, ele usa a linguagem não verbal para reforçar o sentimento de desprezo contido na linguagem verbal do pronome demonstrativo essa, mais o advérbio, aí. Semanticamente, a locução “essa aí”, assume a função do pronome pessoal “ela” ou do substantivo próprio “Quequinha” para caracterizar uma presença sem importância na conversa. E por último, o pronome demonstrativo, aquilo, que, via de regra, é utilizado para coisas, no texto, é aplicado a uma pessoa, "Quequinha", gerando humor.
No texto, Fernando Veríssimo conseguiu criar uma imagem acústica possível de ser visualizada mentalmente, e, mesmo utilizando a forma escrita, aproximou-se muito da oralidade, renovou o sentido das palavras atribuiu a elas novos valores semânticos.
Para estudar o processo de formação das palavras, Marcos Bagno, traz à baila a conversa de dois amigos, em que um deles, se diz cardisplicente. No entanto, o outro não aceita a palavra como vernáculo da língua portuguesa, sob a alegação de que ela não existe. Na verdade, nenhuma palavra e nem uma língua existe por si mesma. Toda palavra tem algum fragmento meteórico de outra órbita lingüística e toda língua teve, um dia, seu berço materno.
Cardisplicente, é, pois, um neologismo cujo processo de formação se deu por aglutinação do radical, cardio (coração) + displicente e significa aquele que zomba do coração, ou não cuida dele.
...
Adalberto Antônio de Lima
...
Referências:
BAGNO, Marcos. Preconceito lingüístico: o que é, como se faz. 15 ed. São Paulo: Loyola, 1999, 186 p.
CARONE, Flávia de Barros. Morfossintaxe, 9 ed. São Paulo: Ática, 2005, 109 p.
KEHDI, Valter. Morfemas do Português. Série Princípios. 6 ed. São Paulo: Ática, 2004, 72 p.
SARTORELLI, Soraya Rozana. Língua Portuguesa: morfossintaxe. Disponível em ttp://www2.unopar.
br/bibdigi/biblioteca_digital.html. Acessos em 15 set.2007, 29 set. 2007.