Gregório de Matos sob o olhar do divã

AO MENINO JESUS DE N. SENHORA DAS MARAVILHAS, A QUEM DESPEDAÇARAM ACHANDO-SE A PARTE DO PEITO

Entre as partes do todo a melhor parte

Foi a parte, em que Deus pôs o amor todo

Se na parte do peito o quis pôr todo

O peito foi do todo a melhor parte.

Parta-se pois de Deus o corpo em parte,

Que a parte, em que Deus ficou o amor todo

Por mais partes, que façam deste todo

De todo fica intacta essa só parte.

O peito já foi parte entre as do todo,

Que tudo mais rasgaram parte a parte;

Hoje partem-se as partes deste todo

Sem que do peito todo rasguem parte,

Que lá quis dar por partes o amor todo,

E agora o quis dar todo nesta parte.

Vamos realizar uma análise do soneto "Ao Menino Jesus de N. Senhora das Maravilhas, a Quem Despedaçaram Achando-se a Parte do Peito", de Gregório de Matos, sob a perspectiva psicanalítica, utilizando conceitos de Freud, Lacan e outras vertentes relevantes, adaptados ao contexto do poema e à sua linguagem barroca. Essa leitura explora o inconsciente latente no texto, os símbolos corporais e as tensões psicológicas implícitas na relação entre fragmentação, amor e transcendência.

Na psicanálise freudiana, o inconsciente se manifesta através de símbolos, repetições e deslocamentos que revelam desejos reprimidos ou conflitos internos. Lacan, por sua vez, aprofunda essa ideia ao introduzir os registros do Imaginário, Simbólico e Real, com ênfase no papel do "Outro" (aqui, potencialmente Deus ou o amor divino) como estruturante do sujeito. No soneto de Gregório, a repetição obsessiva de "parte" e "todo", o foco no peito e a violência da fragmentação sugerem um terreno fértil para essa abordagem.

1. O Corpo Fragmentado e o Desejo

O ponto de partida é o evento narrado no título: a estátua do Menino Jesus "despedaçada", com o peito preservado. Psicanaliticamente, a fragmentação do corpo remete à fase do "corpo em pedaços" descrita por Lacan no estágio do espelho, momento em que o sujeito percebe sua unidade imaginária como frágil e ameaçada. No poema, o corpo divino é rasgado "parte a parte", mas o peito — sede do amor — permanece intacto. Isso pode ser lido como uma tentativa de reparar essa angústia primordial: o "todo" (a integridade perdida) é buscado no peito, que se torna um fetiche, um objeto que concentra o desejo de completude.

O verbo "rasgar" e a insistência em "partir" evocam uma violência que ressoa com o conceito freudiano de pulsão de morte (Thanatos). Há um sadismo implícito na destruição da estátua, seja pelos agentes históricos que a despedaçaram, seja na imaginação poética que reitera essa cena. Contudo, essa pulsão é contrabalançada pela pulsão de vida (Eros), representada pelo amor divino que habita o peito. O soneto, assim, encena um conflito psíquico entre destruição e preservação, morte e amor.

2. O Peito como Objeto do Desejo

Na psicanálise, partes do corpo frequentemente funcionam como significantes de desejos inconscientes. O peito, destacado como "a melhor parte" onde "Deus pôs o amor todo", pode ser interpretado como um objeto parcial, no sentido kleiniano, ou como o "objeto a" de Lacan — aquele elemento que promete, mas nunca entrega plenamente, a completude. O foco recorrente no peito sugere uma fixação, talvez ligada à fase oral (Freud), onde o seio materno é o primeiro objeto de amor e sustento. Aqui, o Menino Jesus, filho de N. Senhora das Maravilhas, desloca essa relação: o peito divino substitui o materno, mas sua inviolabilidade ("de todo fica intacta essa só parte") o torna inatingível, perpetuando o desejo insatisfeito do sujeito lírico.

Essa leitura ganha nuance ao considerarmos o título, que menciona N. Senhora das Maravilhas, mas silencia sua presença no texto. Psicanaliticamente, isso pode indicar uma repressão do feminino: a mãe é eclipsada pelo filho, e o amor divino, concentrado no peito masculino, assume uma conotação patriarcal. O sujeito lírico, ao louvar o peito intacto, talvez projete uma nostalgia inconsciente pela unidade perdida com a figura materna, agora sublimada na divindade.

3. A Repetição e o Inconsciente

A repetição lexical de "parte" e "todo" (e suas variações) é um traço estilístico que, sob a ótica psicanalítica, revela a compulsão à repetição descrita por Freud em "Além do Princípio do Prazer". Essa reiteração sugere um esforço do sujeito para dominar a angústia da fragmentação, mas também um fracasso: o retorno obsessivo ao mesmo significante ("parte") indica que o trauma (a estátua despedaçada) não pode ser plenamente simbolizado ou superado. No registro lacaniano, essa repetição aponta para uma falha no Simbólico: o linguagem tenta dar conta do Real (a destruição física e o mistério divino), mas só consegue girar em torno dele, sem tocá-lo.

O jogo de palavras, típico do conceptismo barroco, também pode ser visto como um mecanismo de defesa. A elaboração intelectual ("Se na parte do peito o quis pôr todo / O peito foi do todo a melhor parte") mascara a ansiedade diante da perda e da violência, transformando-a em uma meditação teológica. É como se o sujeito lírico usasse a razão para conter o caos do inconsciente.

4. O "Outro" Divino e a Subjetividade

Na perspectiva lacaniana, o "Outro" é o lugar do desejo e da lei, frequentemente associado a figuras de autoridade ou transcendência. Aqui, Deus, que "pôs o amor todo" no peito, assume esse papel. O sujeito lírico se constitui em relação a esse Outro divino, mas há uma ambivalência: o amor é dado "por partes" e "todo nesta parte", sugerindo uma oscilação entre abundância e privação. O peito intacto funciona como um espelho onde o sujeito busca sua própria identidade, mas essa busca é frustrada pela impossibilidade de possuir o amor divino em sua totalidade.

Essa relação com o Outro também pode ser lida como uma projeção do superego. A inviolabilidade do peito reflete uma idealização rígida, uma exigência de perfeição que contrasta com a vulnerabilidade do corpo despedaçado. O sujeito lírico, ao exaltar essa parte intacta, talvez expresse um conflito interno entre o ideal (o amor divino) e o pulsional (o desejo de destruir ou possuir).

5. Interpretação Psicanalítica do Contexto Barroco

O Barroco, com sua estética do excesso e da contradição, é um terreno propício para leituras psicanalíticas. A ênfase na transitoriedade (o corpo rasgado) e na eternidade (o amor intacto) reflete a tensão entre o princípio do prazer e a pulsão de morte, típica da mentalidade seiscentista. Gregório de Matos, como sujeito dividido entre a devoção e a sátira, pode ter canalizado nesse soneto uma sublimação de suas próprias angústias: a fragmentação da estátua espelha a fragmentação de um eu barroco, cindido entre o sagrado e o profano.

Conclusão

Sob a abordagem psicanalítica, o soneto de Gregório de Matos revela um drama inconsciente que transcende sua superfície teológica. O peito intacto emerge como um objeto de desejo e reparação, contraposto à violência da fragmentação, que ecoa pulsões de morte e angústias primordiais. A repetição lexical e o jogo de contrastes denunciam um sujeito lírico preso entre o anseio por completude e a impossibilidade de alcançá-la, mediado por um "Outro" divino que é ao mesmo tempo fonte de amor e de privação. No contexto barroco, essa leitura ilumina as tensões psicológicas de uma época — e de um autor — marcada por conflitos entre corpo e espírito, destruição e redenção. Assim, o poema se torna não apenas uma meditação religiosa, mas um espelho das profundezas do psiquismo humano.

Miguel Júnior
Enviado por Miguel Júnior em 28/02/2025
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