A PESQUISA SEMIOLÓGICA


Como escolher um corpus para análise

“O objetivo da pesquisa semiológica é reconstituir o funcionamento dos sistemas de significação diversos da língua, segundo o próprio projeto de qualquer atividade estruturalista, que é construir um simulacro dos objetos observados. Para empreender essa pesquisa, é necessário aceitar francamente desde o início (e principalmente no início), um princípio limitativo. Este princípio limitativo, mais uma vez oriundo da Lingüística, é o princípio da pertinência: decide-se o pesquisador a descrever os fatos reunidos a partir de um só ponto de vista e, por conseguinte, a reter, na massa heterogênea desses fatos, só os traços que interessam a esse ponto de vista, com a exclusão de todos os outros (esses traços são chamados de traços pertinentes); o fonólogo, por exemplo, só interroga os sons do ponto de vista do sentido que produzem, sem ocupar-se da natureza física, articulatória; a pertinência escolhida pela pesquisa semiológica concerne, por definição, à significação dos objetos analisados: interrogamos os objetos unicamente sob a relação de sentido que detêm, sem fazer intervir, pelo menos prematuramente, isto é, antes que o sistema seja reconstituído tão longe quanto possível, os outros determinantes (psicológicos, sociológicos, físicos) desses objetos; não devemos, é certo, negar esses outros determinantes, cada um dos quais depende de outra pertinência; mas eles próprios devem ser tratados em termos semiológicos, isto é, seu lugar e sua função devem ser situados no sistema do sentido: a moda, por exemplo, tem claramente implicações econômicas e sociológicas; mas o semiólogo não tratará nem da economia nem da sociologia da moda; dirá somente em que nível do sistema semântico da moda, a Economia e a Sociologia encontram a pertinência semiológica: no nível da formação do signo indumentário, por exemplo, ou no das pressões associativas (tabus), ou no do discurso de conotação. O princípio de pertinência acarreta evidentemente para o analista uma situação de imanência, pois observa-se um dado sistema do interior (a partir do). Todavia, como o sistema pesquisado não é conhecido de antemão em seus limites (já que se trata precisamente de reconstruí-lo), a imanência só pode ter por objeto, de início, um conjunto heteróclito de fatos que cumprirá “tratar” para conhecer-lhes a estrutura; esse conjunto deve ser definido pelo pesquisador anteriormente à pesquisa: é o corpus. O corpus é uma coleção finita de materiais, determinada de antemão pelo analista, conforme certa arbitrariedade (inevitável) em torno do qual ele vai trabalhar. Se desejarmos, por exemplo, reconstituir o sistema alimentar dos franceses de hoje, será preciso decidir antes o corpo de documentos a ser analisado ( cardápios de jornais? cardápios de restaurantes? cardápios reais observados? cardápios “relatados”?) e, tendo definido esse corpus, devemos a ele ater-nos rigorosamente: isto é, de um lado, nada acrescentar-lhe no decurso da pesquisa, mas também esgotar-lhe completamente a análise, sendo que qualquer fato incluído no corpus de reencontrar-se no sistema. Como escolher o corpus sobre o qual vamos trabalhar? Isto depende evidentemente da natureza dos sistemas presumidos: um corpus de fatos alimentares não pode ser submetido aos mesmos critérios de escolha de um corpus de formas automobilísticas. Podemos aqui aventurar-nos tão-somente a duas recomendações gerais. Por um lado, o corpus deve ser bastante amplo para que se possa razoavelmente esperar que seus elementos saturem um sistema completo de semelhanças e diferenças: é certo que quando dissecamos uma seqüência de materiais, ao cabo de certo tempo acabamos por encontrar fatos e relações já referenciados (vimos que a identidade dos signos constitui um fato da Língua); esses “retornos” são cada vez mais freqüentes, até que não se descubra nenhum material novo: o corpus está então saturado. Por outro lado, o corpus deve ser o mais homogêneo possível; homogeneidade de substância, em primeiro lugar; é claro que se tem interesse em trabalhar com materiais constituídos por uma única e mesma substância, a exemplo da lingüística que só trata da substância fônica; assim também, idealmente, um bom corpus alimentar não deveria comportar senão um único e mesmo tipo de documentos (os cardápios de restaurantes, por exemplo); a realidade, entretanto, apresenta mais comumente substâncias misturadas; por exemplo, vestuário e linguagem escrita na moda; imagem música e fala no cinema, etc.; aceitaremos, portanto, corpus heterogêneos, mas tendo o cuidado, então de estudar meticulosamente a articulação sistemática das substâncias envolvidas (sobretudo, de separar bem o real da linguagem que dele se incumbe), isto é, dar à sua própria heterogeneidade uma interpretação estrutural; em seguida, homogeneidade da temporalidade; em princípio, o corpus deve eliminar ao máximo os elementos diacrônicos; deve coincidir com um estado sistemático, um “corte” da história. Sem entrar aqui no debate teórico acerca de sincronia e diacronia, diremos que, de um ponto de vista operatório, o corpus deve abranger tão estritamente quanto possível, os conjuntos sincrônicos; preferir-se-á pois um corpus variado, mas cingido no tempo, a um corpus estreito, mas de longa duração. E, por exemplo, se se estudam os fatos de imprensa, uma amostragem dos jornais publicados num mesmo momento à coleção de um mesmo jornal editado durante vários anos. Certos sistemas estabelecem, por si mesmos, sua própria sincronia: a moda por exemplo, que muda de ano em ano: para os outros, é preciso estabelecer temporalidade curta, com o inconveniente de se fazerem depois sondagens na diacronia. Essas escolhas iniciais são puramente operatórias e, em parte forçosamente arbitrárias: não podemos prever o ritmo de mudança dos sistemas, visto que o objetivo talvez essencial da pesquisa semiológica (isto é, aquilo que será encontrado em último lugar) é precisamente descobrir o tempo próprio dos sistemas, a história das formas."


(Roland Barthes. Elementos de Semiologia: S.P. Cultrix. 1975 )

Nilza Aparecida Hoehne Rigo