A PRIMEIRA CRÔNICA BRASILEIRA

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Estudos Literários

 

A carta de Pero Vaz de Caminha (escrivão da esquadra de Pedro Álvares Cabral) ao Rei D. Manuel é, de acordo com muitos estudiosos da literatura, uma crônica. Alguns a qualificam como “uma crônica de viagem”. Outros, porém, afirmam não ser uma obra literária e sim um relatório. Aí está algo bastante discutível. Contudo, se a referência fosse a um “relato histórico”, nada haveria de discutível, pois a palavra crônica, no seu primeiro significado se confunde com relato histórico:

[...] Empregado primeiramente no início da era cristã designava um "relato cronológico dos fatos", isto é, uma lista ou relação de acontecimentos, arrumados conforme a seqüência linear do tempo. Colocada assim, entre os simples anais e a História propriamente dita, a crônica se limitava a registrar os eventos, sem aprofundar-lhes as causas ou dar-lhes qualquer interpretação. Em tal acepção a crônica atingiu o auge na Idade Média, ou seja após o século XII. [...] (MOISÉS, Massaud. A Criação Literária, - São Paulo: Cultrix, 1978, p.132.)

A “Carta do Achamento” é ou não é uma relação de acontecimentos arrumados conforme a seqüência linear do tempo?! Eu acredito que sim. Caminha arrumou o emaranhado de registros colhidos na observação direta dos acontecimentos e no contato com os índios, de acordo com a sucessão lógica do tempo. Além disso, ele registrou os eventos, dispondo-se a falar única e exclusivamente daquilo que está apto a tratar, recusando-se a entrar nos assuntos de que não entende.

Aliás, o aspecto cronológico, sempre foi à preocupação dos primeiros cronistas portugueses no Brasil. Suas observações e registros referiam-se sempre a fatos relacionados com o presente, com a atualidade vivida. A ausência de “flash backs” , relacionando fatos atuais com o passado,  é total.

A crônica é uma mistura de jornalismo e literatura. De um recebe a observação atenta da realidade cotidiana e do outro, a construção da linguagem, o jogo verbal. Ora, não é isso a Carta de Caminha?! Como repórter ele sempre atento as minúcias, registra a realidade cotidiana, usando um ponto de vista de câmara cinematográfica, mesclando o descritivo com o narrativo, e nos faz visualizar as cenas que seus olhos observam, através de um estilo literário inteligente e colorido:

[...] E assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo, até que terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, topamos alguns sinais de terra, estando da dita Ilha -- segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670 léguas

[...]. Neste mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! [...].

[...] Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim pelos corpos como pelas pernas, que, certo, assim pareciam bem. Também andavam entre eles quatro ou cinco mulheres, novas, que assim nuas, não pareciam mal.

"[...] Aos quais mandou dar a cada um uma camisa nova, uma carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de osso, que eles levaram nos braços, e cascavéis e campainhas. E mandou com eles para ficar lá um mancebo degradado, criado de D. João Telo, a quem chamam Alfonso Ribeiro, para andar lá com eles e saber de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho. (CAMINHA, Pero Vaz de. Carta a El Rey Dom Manuel. Rio de Janeiro, Record, 1981.)

Já por esses fragmentos se vê que Pero Vaz vivenciou cada momento que narrou; e é a experiência vivida que dá a narrativa mais força, mais vigor:

“[...] A observação direta é o ponto de partida para que o narrador possa registrar os fatos de tal maneira que mesmo os mais efêmeros ganhem certa concretude. Essa concretude lhes assegura a permanência, impedindo que caiam no esquecimento, e lembra aos leitores que a realidade – conforme a conhecemos, ou como é recriada pela arte – é feita de pequenos lances.” (SÁ, Jorge de. A crônica. São Paulo: Ática, 1985. Série Princípios)

Se a carta inaugura o nosso processo literário, isso é discutível, mas que nela podemos encontrar o princípio básico de uma crônica é inegável.

E qual seria esse princípio básico? Registrar o circunstancial, os problemas e os assuntos do dia a dia, ou seja, transferir para o texto, com fidelidade, os detalhes, as particularidades, os pormenores, em suma as minúcias de um acontecimento. Aí está a diferença entre a notícia e a crônica. A notícia procura relatar os fatos que acontecem de maneira seca, apresentando distanciamento do fato; a crônica os analisa, dá-lhes um tom emocional.

E se assim fez Pero Vaz de Caminha em sua carta que seria considerada a  certidão de nascimento do Brasil, não seria, então, sem razão, dizer-se que a Literatura Brasileira começou com uma Crônica.

A partir do século XIX, a crônica deixou de vincular-se apenas a um tempo historicamente determinado e à narração sucessiva de fatos e passou a narrar acontecimentos com abundância de pormenores, com a intenção de esclarecer ou interpretar os acontecimentos numa perspectiva individual, esta recebeu o tradicional nome de crônica. Em contrapartida, as impessoais, isto é, as simples notações dos acontecimentos históricos, passaram a denominar-se «cronicões».

No entanto, a crônica moderna, ainda conserva o registro circunstancial dos acontecimentos; feito por um narrador (literatura), investido na condição de repórter (jornalismo), relatando um acontecimento com engenho e arte.

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NOTA: Para escrever a carta, Caminha utilizou um papel feito de trapos de linho e algodão. “É um papel de boa qualidade, muito mais resistente que o papel de celulose”, explica o historiador Hildo Leal da Rosa, do Arquivo Público. A tinta era feita de sulfato de ferro adicionada a gordura dissolvida. Com o passar do tempo, a cor preta fica castanha.

Ajudaram na elaboração deste texto:

SÁ, Jorge de. A Crônica. São Paulo: Ática, 1985. Série Princípios.

PORTELA, Eduardo - Visão Prospectiva da Literatura Brasileira.
BRASIL, Assis - Vocabulário Técnico de Literatura.

Agradeço a leitura e, antecipadamente, qualquercomentário.

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