4.1 - NOTAS SOBRE A TRADIÇÃO ORAL

A TRADIÇÃO ORAL

COMUNICAR é uma necessidade humana.

Comunicamos sobretudo através da fala.

Desde os seus primórdios, as pessoas precisaram de comunicar.

Seria crucial que as pessoas de um grupo humano informassem o colectivo de que faziam parte, se tinham visto algum dos animais de que se alimentavam, ou quais os trilhos habituais desses animais; comunicar onde haveria água, comunicar onde encontrar lenha mais própria para as fogueiras com que se aqueciam e com que afugentavam os animais... Combinar uma caçada, por exemplo, exigiria que se combinasse o QUANDO, e o COMO, e o ONDE, o PARA ONDE se dirigiriam...

Mas comunicar, certamente, também sobre os afectos... Sobre o respeito aos mais velhos, os mais experientes...

Comunicar também sobre as dúvidas acerca do seu meio ambiente, sobre o céu infinito... as dúvidas sobre o que haveria para além do horizonte, do horizonte terrestre ou marítimo... para além das margens dos rios...

A comunicação começou por ser oral, e gestual.

E é natural que quando todo o grupo se reunia à volta das fogueiras, os caçadores contassem como tinha decorrido a caçada. Ou que quando um grupo fosse atacado por outro, se contasse como se tinham defendido... Ou como todas as pessoas do grupo se tinham ajudado em caso de perigo...

Bem entendido, as NARRATIVAS começaram por ser orais...

É natural que factos mais marcantes fossem recordados vezes sem conta...

Ou que fossem mesmo recordados pelos mais velhos perante os mais novos, como forma de instrução, de ensinamento...

À medida que certos acontecimentos iam ficando distantes no tempo, os pormenores certamente iriam esquecendo... Então, seria necessário preencher as lacunas factuais com a imaginação!

Se não fosse a imaginação, o ser humano nunca teria saído das cavernas... Nunca teria inventado instrumentos... nem nunca os teria aperfeiçoado...

Então, dos factos reais, as narrativas terão passado à fantasia!

Terá sido muito provavelmente assim que nasceu a Cultura!

A Cultura, a cultura imaterial, o conjunto dos conhecimentos!

A Cultura, a cultura material, o conjunto dos instrumentos.

Um traço marcante das culturas primitivas, será, pois, a TRADIÇÃO ORAL.

Neste capítulo 4, iremos falar de várias formas da cultura oral: os CONTOS, as várias manifestações da imaginação

= O CONTO TRADICIONAL, ou Conto Maravilhoso;

= As FÁBULAS

= As LENDAS e MITOS

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O meu Pai contava com muita graça um CONTO TRADICIONAL DO ALGARVE que me deliciava, e que neste momento recordo, pois ilustra bem como “QUEM CONTA UM CONTO, ACRESCENTA UM PONTO” ou seja, como as histórias se transformam com o rodar dos tempos...

A história era mais ou menos assim:

O HOMEM QUE PÔS UM OVO

Certa tarde, um homem pôs um ovo.

Ele ficou muito envergonhado... E foi contar à mulher:

– Mulher, vê lá tu o que me aconteceu... Pus um ovo... Oh, não vás contar nada a ninguém!...

A mulher ficou muito admirada, e concordou que não iria contar nada a ninguém.

Mas ao sair de casa, encontrou a vizinha... E disse-lhe:

– Ó vizinha, você nem sabe o que nos aconteceu... Na noite passada, o meu marido pôs dois ovos!...

– O quê?! – admirou-se a vizinha.

– Oh, sim, ele ficou muito envergonhado... Ó vizinha, mas olhe que isto é segredo... Não vá contar a mais ninguém, olhe que eu estou a confiar em si...

Nessa tarde, a vizinha encontrou a irmã. E disse-lhe:

– Sabes o que aconteceu? Ali o marido da vizinha... pôs três ovos!

– O quê – respondeu a irmã... Três ovos? Como foi isso possível?!

– Olha, não sei. Mas não contes nada a ninguém: é segredo!

Bem, no dia seguinte, a irmã encontrou uma amiga e disse-lhe:

– Tu nem sabes o que aconteceu! Ali o marido da vizinha... pôs quatro ovos!

– O quê – respondeu a amiga... quatro ovos? Como foi isso possível?!

– Olha, não sei. Mas não contes nada a ninguém: é segredo!

Bem, os dias foram passando, e entre as vizinhas e as amigas das vizinhas, e as conhecidas das amigas... o número de ovos ia sempre subindo...

A história atravessou terras e mares, e o número de ovos ia sempre subindo!... A certa altura, quando a notícia chegou ao papa, o desgraçado do homem já tinha posto noventa e nove ovos!

O papa ficou espantado! Como é possível uma coisa dessas?!

E o papa quis conhecer o herói que tinha cometido um feito tão extraordinário! Então, o papa mandou que o homem viesse à sua presença.

O homem chegou à residência do papa, muito envergonhado...

O papa perguntou-lhe:

– Ora bem! Disseram-me que puseste cem ovos! Diz-me lá como foi que isso aconteceu!

E o homem, muito atrapalhado, disse:

– Meu senhor, na verdade, eu não pus ovo nenhum. Deu-me na cabeça e fui eu que contei à minha Mulher que tinha posto um ovo... Foi só para a surpreender! Mas era para ser segredo! Mas a história foi aumentando...

O papa disse assim:

– Tens razão, quem conta um conto, acrescenta um ponto! A mim contaram-me que tinhas posto noventa e nove ovos!... Mas eu achei que “cem” seria uma conta mais certa!

Myriam Jubilot de Carvalho

2020

Myriam Jubilot de Carvalho
Enviado por Myriam Jubilot de Carvalho em 05/07/2023
Reeditado em 05/07/2023
Código do texto: T7830180
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