Carolina Maria de Jesus como Rodrigo S. M. de A hora da estrela: possibilidades de uma Macabéia num contexto social real.
Por Fabrício de Andrade Raymundo
Carolina Maria de Jesus, em sua brilhante obra Quarto de despejo apresenta com muita propriedade uma visão cotidiana, in-loco, do ambiente social no qual esteve inserida. Sua visão denota as peculiaridades da vida na favela do Canindé, na cidade de São Paulo entre os anos 1955 e 1960.
Os sentimentos, as angústias, os dilemas e os instintos mais inesperados, principalmente os surgidos em decorrência da fome são expostos com muita propriedade de causa e jamais poderiam ser ditos (ou descritos) por um narrador externo – alheio ao convívio, àquela prática social - com a fidelidade do memorial de Carolina Maria de Jesus.
Entretanto, a recíproca – entregando à autora em questão, personagens como Sinhá Vitória de Vidas Secas e principalmente Macabéa de A hora da estrela - teríamos uma narração próxima do adequado, do contextualizado(1), do verossímil. No entanto, a que se ressaltar que por se tratar de uma autora com a biografia de Carolina Maria de Jesus, deixaríamos de ter as obras em questão em detrimento da inadequação estética da autora, que em um ponto de vista literário e intelectual não seria capaz de escrever - e mais importante - descrever e trazer de forma translúcida a mensagem passada pela obra de Graciliano Ramos principalmente.
Ainda neste aspecto, ao vislumbrarmos a autora Carolina Maria de Jesus descrevendo a personagem Macabéa, ou se Macabéa fosse a mesma personagem de A hora da estrela vivendo na favela do Canindé, teríamos uma perfeita sincronia autor-personagem, uma completa adequação oriunda da propriedade com a qual somente o contexto pode trazer ao autor. As reflexões da narradora demonstram profunda sensibilidade e senso crítico, temos então o foco voltado para a questão das representações sociais(2). Nesse sentido, tenho Clarice Lispector como uma autora desprovida do senso de alteridade (3).
Tratando em específico da obra A hora da estrela escrita por Clarice Lispector, a qual encarna o personagem Rodrigo S. M., narrador da vida e aventuras diuturnas da jovem nordestina Macabéa, que o faz aparentemente de dentro de uma redoma, regado a frutas, vinhos e outras guloseimas obviamente em terceira pessoa.
O narrador de A hora da estrela - Rodrigo S.M – utiliza-se da personagem Macabéa para descrever um ser humano estereotipado pela sua regionalização e sobretudo pelo consciente preconceituoso da comunidade central em relação à periferia. Porém, o resultado deste intento de Rodrigo S.M. é desastroso para as convicções do narrador, pois percebe-se claramente que acaba por questionar quanto a posição e utilidade social do personagem-narrador. Basta analisar um detalhe que torna a personagem Macabéa com um nível de importância superior em relação a Rodrigo S.M.: Macabéa produz, ela trabalha, já Rodrigo S.M. não. Faltaria a este narrador, propriedade para lidar com tal personagem?
Rodrigo S.M é um representante da classe alta, mas não possui nenhum trabalho, a sua narrativa deixa perceber que isso não importa, não interfere na narrativa (seria isso correto? Adequado?) que a diferença estava em o quê era Macabéa de fato. Macabéia viria a ter uma função imprescindível no desenvolver da obra. Veremos ao concluir.
O fato é que Carolina Maria de Jesus se reconhece como “lixo”, como um ser que está no Quarto de despejo para ser jogado fora. Esta questão é de fundamental importância para que se desenvolva a idéia de que a “favelada” pudesse narrar o que Rodrigo S.M. com propriedade, já que este, no entendimento deste autor não o fez.
Outro fato que me faz crer na possibilidade de Carolina Maria de Jesus fazer as vezes de Rodrigo S.M., vem do seguinte questionamento: quem é Macabéa? Respondendo com outra pergunta teríamos: Macabéa poderia ser a “as pessoas”, as personagens que não foram frutos criação da imaginação da narradora Carolina de Jesus? Sim, existem milhares de Macabéas espalhadas pelo mundo, essas pessoas existem, as pessoas narradas por Carolina também realmente existiram. Carolina Maria de Jesus “retrata” a si mesma e as pessoas que com ela conviveram. Já Rodrigo S.M não! Ele não pode. Não dispõe dessa prerrogativa. Aliás, ele ignora esse pré-requisito.
A favela Paulistana, as suas misérias, o descaso dos órgãos estatais constituem assim o pano de fundo do registro de uma classe social marginalizada - seria esse o pano de fundo da realidade de Macabéa que Rodrigo S.M. tentou descrever? - e até hoje ignorada pelas autoridades. Vejamos o que escreve Carolina nesse sentido: “... Eu classifico São Paulo assim: o Palácio é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam o lixo....”
Por fim o fator mais convincente, no qual venho a sustentar o já disposto anteriormente vem a ser o eixo pelo qual Carolina sustenta sua narrativa: a fome.
“...Hoje não temos nada para comer. Queria convidar os filhos para suicidar-nos. ...” (4)
Rodrigo S.M. faz a faminta Macabéa comer papel num desses lampejos de fome (semelhantes aos de Carolina) e solidão que costumeiramente perfaziam o dia-a-dia da jovem. Seria óbvio esperar tais afirmativas deste narrador pois o mesmo às páginas 15-16 a descreve inicialmente assim:
“...A pessoa de que vou falar é tão tola que às vezes sorri para os outros na rua. Ninguém lhe responde o sorriso porque nem ao menos a olham. ...” (5)
Tal trecho reforça a teoria de que um “ser” insignificante (para o narrador) como Macabéa poderia morrer de qualquer forma, de fome inclusive, o que não alteraria o questionamento final de A hora da estrela, pois uma das preocupações de Clarice por meio de Rodrigo S.M. estava na estética da linguagem, “o autor da obra, Rodrigo, discute obsessivamente estilo e formas de narrar Macabéa” (Bosi, 1994:25).
Era Rodrigo S.M. que estava narrando, não era a própria Macabéia, pois se fosse a mesma, ou até mesmo Carolina a narrativa teria o seguinte questionamento real:
“...Quando eu encontro algo no lixo que eu posso comer, eu como. Eu não tenho coragem de suicidar-me. E não posso morrer de fome. ...”
Portanto, concluo, que pelo fato de Rodrigo S.M. não ser nada além de um narrador fora de foco - simplesmente - da trajetória de uma jovem nordestina, tenho que Carolina Maria de Jesus estaria completamente respaldada para narrar Macabéa. Sobra uma mera dúvida no que diz respeito a ser um “Rodrigo S.M.”. Mas quem é este e o que faz este jovem aristocrata? Nada além de escrever sobre uma jovem à margem da sociedade, à margem de seu convívio de “eleito”. Ele nem trabalhar, trabalhava. Comer frutas e tomar vinho; todos temos essa capacidade, por que não Carolina de Jesus que comia lixo? Ah! Mas Rodrigo escrevia. Carolina também, c com uma vantagem em relação a Rodrigo S,M.: seu foco vinha de dentro (à exemplo da fome), vinha do contexto (do lugar sombrio e asqueroso no qual vivia).
Encerro estas linhas com uma frase de Carolina Maria de Jesus em Quarto de despejo e uma pergunta:
“... O dia está triste igual a minha alma. ...”
Rodrigo S.M. tinha a alma triste ao descrever sua triste Macabéa?
BIBLIOGRAFIA
ALMARZA, Sara. Formas e dilemas das representações da mulher na literatura (no prelo) Editora da UnB, pp.5-7.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo - Diário de uma favelada. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1983.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro : Rocco, 1999.
NOTAS
1 - Contexto é a relação entre o texto e a situação em que ele ocorre. Podemos, por isso, defini-lo, de maneira um pouco mais precisa, dizendo que abrange o conjunto constituído, por um lado, pelas instâncias enunciativas e, por outro lado, pelo mundo extralingüístico a que um texto se refere.
2 - O objetivo da Teoria das Representações Sociais de Serge Moscovici é explicar os fenômenos do homem a partir de uma perspectiva coletiva, sem perder de vista a individualidade.
3 - Qualidade do que é outro.
4 - Os trechos em fontes itálicas foram extraidos da obra Quarto de Despejo.
5 - Trecho extraído de A hora da estrela.