TENTANDO OUVIR O SILÊNCIO
Prólogo
O gaúcho Mário de Miranda Quintana, irreverente, escrevia de forma simples, fluida, introspectiva e, muitas vezes, irônica. Certa feita ele escreveu:
“Os poetas não são azuis nem nada, como pensam alguns supersticiosos, nem sujeitos a ataques súbitos de levitação. O de que eles mais gostam é estar em silêncio - um silêncio que subjaz a quaisquer escapes motorísticos e declamatórios. Um silêncio... Este impoluível silêncio em que escrevo e em que tu me lês.”. – (SIC).
Sem nenhum ufanismo assim sou eu. Não me considero poeta nem escritor. Apenas busco, ainda, nos poucos momentos que me restam de vida material, OUVIR O SILÊNCIO.
Não sei se conseguirei, mas tentar ouvir ou escutar o silêncio é o que me resta fazer em um ano pandêmico eivado de desgraças naturais e outras provocadas por irresponsáveis usurpadores de cargos e poderes, onde só deveriam estar os verdadeiros líderes comprometidos com o bem-estar social, público e não com oligarquias. – (Nota do Autor).
NO MEU TERRAÇO – ESPAÇO GOURMET
Para quem não sabe espaço “gourmet” é um ambiente destinado à prática culinária. A cozinha antes considerada um lugar de serviço, situada distante dos demais cômodos da casa, hoje o espaço ganhou evidência.
O espaço "gourmet" pode reunir móveis planejados e confortáveis, com diversos equipamentos com requinte e praticidade para a elaboração de um cardápio mais bem caprichado.
Pensando nisso transformei meu terraço que mede 8m x 12m em um agradável local onde, eventualmente, quando recebo honorários de sucumbência, pagamentos de clientes que já julgava perdidos e/ou o estorno do imposto de rendas, eu possa fazer um churrasco ou mesmo contratar um serviço de bufê para gastar alguns reais destinados ao lazer familiar.
ENTRE PERIQUITOS E CALOPSITAS
No meu terraço refestelei-me numa cadeira de balanço confeccionada em madeira angelim, exclusivamente usada para modorra pós-refeição ou leitura envolvente.
No aprazível e espaçoso supracitado local resolvi dar um pouco mais de atenção ao romance ficcional “O Cemitério de Praga”, escrito por Umberto Eco, sendo esse livro considerado a melhor ficção depois de “O Nome da Rosa”, o qual já li e vi o filme, do mesmo autor.
Não consegui! O trinado da passarada (periquitos e calopsitas) me avisava sem deixar dúvidas: “Aqui você não conseguirá ouvir o silêncio!”. O periquito líder, a quem chamo carinhosamente de Jorgino, voou ao meu encontro e pousando em meu ombro parecia dizer:
“Quando você construiu esse local disse que era nosso. Portanto, se quiser ler seu livro, revista ou jornal faça isso em silêncio sem atrapalhar nossa farra dominical. Ah! Caso queira espere o anoitecer, se existir de sua parte outra pretensão, aproveite esse período porque é ao anoitecer que nos aquietamos.”.
Além de ler minha pretensão era tentar ouvir, talvez escutar o silêncio, mas seria isso possível com ou sem a presença dos meus pássaros? E se ao invés de ler eu apenas meditasse e me transportasse para um éden imaginário? Resolvi tentar.
UM SILÊNCIO DESEJADO
Retirei-me do terraço. Fui para minha sala de leituras e me acomodei numa poltrona de cor cinza-claro. Abri um espumante "Terra Nova Moscatel". Gosto desse vinho pelo pouco teor alcoólico, pelo preço (barato) e mais doce do que seco.
Depois das três primeiras taças e ouvindo Hans Florian Zimmer vislumbrei um carpete verde-musgo que parecia nunca haver estado naquela sala. Não me recordava também de um felpudo tapete azul-claro sob um vistoso grande centro de madeira rústica.
A música suave de Zimmer “Now We Are Free”, tema do filme “Gladiador”, aos poucos foi sumindo, tão silencioso parecia estar o ambiente que dava para eu ouvir gotículas de poeira batendo no vidro fumê do janelão.
O silêncio era tamanho que dava para ouvir, também, o tapete desbotando, como notas musicadas, mas sem escalas métricas conhecidas no mundo real. O meu tão desejado momento de silêncio me houvera alcançado? Ou eu estava em um estado de letargia nunca vivenciado?
MINHA INDESEJADA PARADA CARDÍACA
Letargia é um estado de inconsciência, onde a pessoa aparenta estar em sono profundo e perde totalmente a capacidade de responder aos estímulos externos. A letargia também pode ser considerada uma psicopatologia, onde o indivíduo apresenta períodos variados de total inconsciência.
Em alguns casos o indivíduo pode permanecer consciente de tudo o que se passa ao seu redor, mas encontrando-se totalmente impossibilitado de reagir aos estímulos externos.
Nesse caso, dá-se o nome de letargia lúcida e costuma ser provocada em pessoas que sofreram com um intenso estresse emocional. Não era esse, ainda, o meu caso!
O PODER DA MÚSICA
A música sempre esteve presente na cultura da humanidade. As poesias trovadorescas, acompanhadas por sons, e os poemas simbolistas, que visam à musicalidade nas suas criações, são exemplos do uso artístico da música, no qual o objetivo é proporcionar prazer aos ouvidos e evocar sentimentos enaltecendo as sensibilidades sensoriais.
A música é reconhecida por muitos pesquisadores como uma modalidade que desenvolve a mente humana, promove o equilíbrio, proporcionando um estado agradável de bem-estar, facilitando a concentração e o desenvolvimento do raciocínio, em especial em questões reflexivas voltadas para o pensamento.
A LETARGIA ESPIRITUAL
Do ponto de vista religioso, a chamada “letargia espiritual” é descrita como a “insensibilidade do corpo perante o plano espiritual”, ou seja, a sua inércia, comodismo e indiferença ao verdadeiro sentido da fé.
Nesse caso, assim como o indivíduo em estado letárgico lúcido, o espírito da pessoa está impossibilitado de "entrar em contato" com o seu corpo, fazendo-a não entender ou perceber a sua espiritualidade.
CONCLUSÃO
Esse foi o acontecimento do final do mês de fevereiro do ano de 2022. Alcancei a chamada “Letargia espiritual” quando desejava ouvir o silêncio. Senti-me revigorado. Estava vivo. Meu coração estava batendo num ritmo bem devagar, quase parando, e não se tratava de uma falência desse órgão vital.
Enfim, tamanho era o silêncio em minha volta, tão sublime era esse estado mental que fui capaz de ouvir sons nunca outrora ouvidos e sentir cheiro de chuva sem estar chovendo. Eu estava fora de meu corpo material. Teria eu sido acometido de uma amnesia alcoólica ou dissociativa provisória? Não creio.
O espumante, ingerido em pequena quantidade, era fraco, mas eu não me lembrava da existência, na sala de leituras, do carpete verde-musgo nem do tapete felpudo azul-claro. E o aroma de chuva ante a inexistência de tal fato?
Finalmente compreendi que só em estado espiritual seria possível ver coisas invisíveis aos olhos carnais e até OUVIR O SILÊNCIO.