INVENTIVIDADE E CRIAÇÃO POÉTICA

A inspiração como veículo de perscrutação filosófica

Tasso Assunção*

No exercício da atividade poética, pode-se notar clara distinção entre o poema técnico, mero produto de destreza no emprego do idioma, e a poesia intuitiva, aquela que brota quase espontaneamente, ante a predisposição do artista para a atividade literária, configurando-se, mais que autêntica obra de arte, instrumento de investigação da realidade.

Isto posto, tecem-se, a seguir, algumas reflexões sobre esse paralelo entre o poema técnico e a poesia intuitiva, aplicando-se aspectos dos ensinamentos dos sábios Jiddu Krishnamurti, Osho, Enrique Martinez Lozano e, mais particularmente, ideias do capítulo Las alas del delfin, da obra Caminar con Krishnamurti, do escritor argentino Armando Clavier.

Advirta-se, no entanto, que, embora se façam referências a esses autores, as considerações aqui expostas não traduzem seu posicionamento a respeito da temática literária. Este artigo apenas recorre a juízos por eles expostos como fundamentação da analogia proposta, com vistas a enfatizar o potencial de interioridade contido na inspiração poética.

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É realmente lamentável o quanto a poesia tem sido depreciada nesta era tecnológica e consumista dominada pelos valores dos sentidos. E estamos aqui diante de dado cuja relevância se evidencia sobretudo quando se leva em conta que a revitalização da sensibilidade poética poderia contribuir significativamente com a evolução espiritual do homem.

Claro, refere-se aqui à sensibilidade relacionada com a obra intuitiva do autêntico poeta, não à confecção meramente técnica dos buscadores de prestígio que tanto pululam nos círculos intelectuais. O caso é que estes, apesar da engenhosa habilidade de manejar palavras, nada mais oferecem que peças de teor periférico, limitadas ao entretenimento.

Nesse caso, ausente a peculiar afetividade que caracteriza o verdadeiro artista, fabricam-se em série produtos para o consumo massivo dos que igualmente carecem da sutileza perceptiva imprescindível à capacidade de distinguir o joio do trigo, deficiência infelizmente muito comum hoje em dia, a qual reflete a deterioração geral da afabilidade humana.

Em meio à insuficiência desse atributo, ou à emotividade superficial, as palavras podem até se organizar formalmente como expressão poética. Mas lhes faltará a essência vital que caracteriza a verdadeira poesia. Haverá, então, o abundante, mas vazio, poema sem poesia, resultado do sentimentalismo e até de certa inventividade, mas não lídima arte.

Demanda-se atualmente, isso sim, aquela verve que capta reflexos da consciência pura, situada para além da rede da linguagem. Nesse caso, gesta-se poesia em que a forma verbal constitui mero recurso, ponte de comunicação do inexprimível, cujos ecos, apreendidos pela profunda sensibilidade do poeta, ressoam, de maneira sutil, na mente do leitor.

Neste ponto, convém assinalar que a mensagem gerada por essa produção poética não se origina, a princípio, por meio do concurso do pensamento, que só um instante depois intervém para enunciá-la, mas deriva da comunhão do poeta com a matriz mais profunda da existência, com a qual se conecta para propiciar a quem o lê a mesma experiência.

Esse processo não implica, porém, uma dicotomia entre a inspiração e a linguagem. Não, já que, na poesia, o idioma representa bem mais que uma ferramenta destinada a registrar vivências subjetivas do artista. Isso porque as palavras, com seu ilimitado potencial de associação, mantêm uma relação simbiótica com a experiência essencial do poeta.

Fenômeno semelhante se pode verificar na música ou nas artes plásticas, mas o acesso a essas manifestações artísticas é de natureza predominantemente emotiva. Na poesia, além da carga emocional, a linguagem encerra a faculdade de traduzir e transmitir significados, que produzem vibrações cujo sentido está além das palavras que o comunicam.

O fato é que, através de seu aparato sensorial, assim como de certa percepção profunda da realidade, o homem sente necessidade de exteriorizar essa percepção, seja com as mãos, o sentimento ou o pensamento, mas é este o que contém maior potencial expressivo, desde que se revista obviamente do grau de sensibilidade requerido à ação lírica.

Nessa perspectiva é que, munido do combustível da destreza no manejo de símbolos e figuras de linguagem, o lídimo poeta expõe sua relação psicológica com o mundo por meio de palavras, às vezes de modo despojado, outras impregnadas de rara beleza formal e conceitual, por meio de analogias, imagens e metáforas que se sucedem fluentemente.

Ressalve-se que, em virtude de seu caráter subjetivo, nenhuma vivência humana profunda é passível de demonstração experimental. Contudo, como o poeta é um ser humano cujas cordas ressoam mais alto, a ofensa ou a exaltação, a tristeza ou a alegria, o cume ou o abismo, as luzes ou as sombras adquirem distinta qualidade ante seu talento artístico.

Em outros termos, quando o poeta alcança certo grau de intensidade perceptiva, o discurso da existência se lhe afigura mais veemente. E é nesse momento que a experiência vivida se materializa em palavras que adquirem valor próprio e se dispõem em estruturas originais que comunicam, com elegância e valor estético, a singularidade dessa vivência.

Ao se inteirar, ainda que instantaneamente, desse nível de percepção, o poeta pode entrar em contato com a esfera do não-manifestado, o sem-forma, entrever a faculdade da cognitividade de per si, enfim, ver-se na iminência de um salto quântico – e de ingressar no estado de consciência que o sábio Jiddu Krishnamurti nominava “percebimento direto”.

Nesse patamar, a receptividade perceptiva do poeta alcança o limiar do incognoscível, em que, num estado de atenção isento da interferência da memória, torna-se apto a divisar a realidade a partir da própria dimensão primordial de que emana, ocasião em que – como veículo do inexpressável, segundo Osho – predispõe-se a plasmá-la em palavras.

É preciso advertir, contudo, para o permanente risco de apropriação do talento artístico pelo ego, que busca então se fortalecer por meio do conhecimento desse dom de entrever algo para além do trivial. Nesse caso, tão frequente, num movimento reverso, o poeta se distancia da mutação interior a que deve conduzir aquele instigante processo perceptivo.

É assim que muitas vezes a excepcional predisposição poética colide com a própria personalidade do poeta, quando depara um bloqueio para determinados graus de apreensão da realidade, ocasião em que a potencial conexão com o sublime se vê turbada pela, ainda que momentânea, prevalência dos interesses mais imediatos de sua tendência egoica.

Nessa situação, a natural capacidade do leitor de captar o que de transcendente houvesse na mensagem transmitida pelo autor se anula pela identificação personalística com este. De qualquer forma, o leitor que, embora não disponha de talento, encontre-se em estágio de acessibilidade compatível, pode contar com maior potencial transformador.

Mais frequentemente, entretanto – tal é a natureza sutil dessa perspectiva existencial –, prevalece o equívoco em que se converte o real percebido no ilusório imaginado. Ou seja, o autor se expressa a partir de uma dimensão fundamental, mas o leitor recebe o exposto desde outra, de maneira que aquilo que é captado difere por inteiro do que foi transmitido.

Mas o que se assinala aqui é que, ao se dispor para as possibilidades perceptivas que lhe proporciona a aptidão artística, o poeta tanto tem acesso a um estado de atenção que traz o discernimento indispensável à cognição direta da realidade como pode transmiti-lo ao leitor provido de equivalente altitude da sensibilidade, num vislumbre do transcendente.

A esse respeito, importa enfatizar que esse lampejo do incognoscível não ocorre de forma aleatória, dissociada do processo de evolução da percepção da consciência e da espécie humana, mas, conforme ensina o filósofo integral Enrique Martinez Lozano, insere-se no contexto da ascensão do modelo dual de cognição para o modelo cognitivo não-dual.

O que se apresenta aqui é a verificação de que se faz premente radical transformação psicológica, uma profunda renovação – de base gnoseológica – da mente do homem e de sua relação com a sociedade, com a vida e com o cosmo, o que, conquanto às vezes seja enfocado com devoção, raramente se encara com a necessária seriedade e persistência.

Na atual fase evolutiva, os sintomas da carência de libertação interior quase sempre se diluem em crenças, especulações intelectuais, abstrações esotéricas, arroubos sentimentais, ao sabor de oscilações do entusiasmo – e ainda não nos cala no espírito, não nos deita raízes na estrutura psíquica com veemência suficiente para o surgimento de novo mundo.

Pelo ângulo do tema destas linhas, é de se ressalvar que a realização espiritual não se restringe às manifestações artísticas – pinturas, melodias e poemas –, mas precisa se expressar na vida cotidiana, no dizer de Krishnamurti, “na arte de viver”, o que se condiciona à investigação da interioridade, ao autoconhecimento e à remoção da “poeira dos séculos”.

A arte de modo geral e a poesia especialmente pode, no entanto, constituir instrumento de ressonância, de antecipação do sabor do inefável, de elevada expressão de matizes da dimensão do atemporal, de expansão da vivência rotineira à esfera do arrebatamento, despertando o interesse pelo incomensurável, ao intensificar a sensibilidade humana.

Enfim, apesar de tais considerações se situarem, em certa medida, na área das conjecturas, apontam para a existência de um campo do labor literário em que se divisa nova manifestação de vida, uma dimensão que o pensamento não alcança, mas é onde se encontra a própria fonte da criação e é também donde brotam a Verdade, o Amor e a Compaixão.

*Tasso Assunção é escritor e consultor em produção textual; membro fundador da Academia Imperatrizense de Letras - AIL.

Tasso Assunção
Enviado por Tasso Assunção em 31/10/2021
Reeditado em 31/10/2021
Código do texto: T7375676
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