O CIRCO DOS PERSONAGENS

“Embora a razão seja comum a todos, cada um procede como se tivesse um pensamento próprio. O caminho que sobe e o caminho que desce são um único e mesmo.”

– Citações do grego no poema “Burt Norton”, por T. S. Eliot, in QUATRO QUARTETOS, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 17, tradução de Ivan Junqueira.

Depois de três dias do primeiro momento de criação, continuo a limpeza do texto, procurando escoimar as impurezas gramaticais e linguísticas.

Também é necessário despersonalizá-lo ao máximo. Deste modo, a presença do autor (e a de seus alter egos) se torna cada vez mais rarefeita. A verbalização não é mais a do autor e, sim, o exercício de sua própria palavra enquanto texto: um novo personagem. Ele vai ser mais visível quanto mais constatável a ausência do primeiro autor: o Eu. Agora, ao ser lido, ele já é o Nós.

Este é o essencial desafio, na criação literária. Fernando Pessoa e os seus heterônimos que me perdoem: há, em seus discursos, uma presença imensa do “eu” e das diatribes dele próprio e seus fantasmas. É muito provável que seja devido por esta percepção que Pessoa tenha criado os seus heterônimos, enumerando e identificando as diversas “psiques” que ele possuía dentro de si.

Este é o seu maior mérito no campo psíquico e parapsicológico: o mestre da língua lusa abriu-se ao mundo em suas vertentes pessoais. É a criatura humana variegada, mergulhada em seus conflitos. Talvez a tradução factível, prática, do “Eu sou eu e minhas circunstâncias...”, como quer Ortega y Gasset.

No discurso, é essencial esta providência: a menor interferência possível (de seu autor) na fala do personagem que fala na lavratura textual. Com este proceder, aumentam as chances de que o leitor se aposse do escrito, decida “ficar com ele para si”, por empatia e/ou por amor à sua proposta, ainda mais no caso de poema ou prosa poética. É nestas peças que o intimismo é mais incidente, e, pateticamente, maior a sua abrangência na alma humana.

Seguramente, em cada ser humano não há unicidade, e muito mais no escritor, cujo universo é multifacetado. Veja-se o exemplo: de relance, acabo de descobrir que tenho de retirar tudo o que existe de fato, e que situa o relato em algum momento fático, puxando-o para o real: “À frente dos olhos, em Osório, no meu Rio Grande de Deus...”, no texto O VENTO DAS ESCOLHAS, publicado no Recanto das Letras: http://www.recantodasletras.com.br/prosapoetica/731688 , expressão circunstancial que tive de suprimir na publicação atual, cujo link acessa.

No caso, era apenas o cochicho da observação dos atos e fatos que se encontram no entorno do autor, à frente de seus olhos, em sua circunstancial percepção, no momento do exsurgir do texto. O discurso em exame é todo no plano abstrato (qualquer criatura humana consigo mesmo) e esta vinculação à realidade, aos seus atos e fatos, se torna dispensável.

Vale num primeiro momento como alegoria, com os pés na realidade, mas são asas – mesmo que as de Ícaro – que se desprendem frente ao sol dos sadios dias da “transpiração”, ao se efetivar o segundo momento do processo de criação do texto, tão ou mais importante que o do primeiro momento, em que o emocional produz a “inspiração”.

No segundo transe textual prepondera o mundo da intelecção, mas nunca o da razão pura...

– Do livro A POESIA SEM SEGREDOS, 2007/16.

http://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/734038